Pesquisa aponta progressão lenta de negros em cargos de alta liderança no governo federal

Nas últimas três décadas, o Executivo federal tem observado a progressão gradual e constante da presença de pessoas negras em postos de liderança, ainda que a velocidade desse avanço seja lenta e enfrente inúmeros obstáculos, especialmente para as mulheres, nos cargos de maior relevância e em órgãos centrais da administração. Essa constatação faz parte de um amplo estudo produzido Fundação Lemann, em parceria com a fundação Imaginable Futures e o Afro-Cebrape.

Os pesquisadores analisaram dados quantitativos sobre a presença de autodeclarados pretos e pardos em cargos de assessoramento especial, a partir de coordenadores-gerais, entre 1995 e 2024 (sete gestões, do governo Fernando Henrique Cardoso até o terceiro mandato de Lula), e também investigaram, por meio de entrevistas de campo, a trajetória, as estratégias de ascensão e as avaliações pessoais de 20 agentes públicos que ocupam posições decisórias.

Na amostragem de entrevistados, a pesquisa identificou como padrão entre as pessoas negras em postos de liderança a origem em classes populares, a elevada qualificação técnica ou destacada atuação política, seja em partidos ou movimentos sociais. Esse grupo, via de regra, também apoia a política de cotas raciais e aponta dificuldades para se integrar aos círculos sociais de seus pares, um público formado majoritariamente por homens brancos.

As 20 entrevistas em profundidade foram realizadas dentro de um grupo 58 pessoas negras que aceitaram conversar, sob a condição do anonimato, sobre suas percepções enquanto ocupantes de posições de liderança na administração federal, sendo que muitos deles são servidores públicos de carreira (atualmente, 60% dos cargos comissionados devem ser exercidos por concursados).

Segundo o levantamento, no período analisado, o percentual de homens não brancos em cargos comissionados na administração federal parte de 13% no governo FH para 24% no governo Lula 3 e as mulheres não brancas partem de 9% para 15%. Os dados foram extraído do Painel Estatístico de Pessoal, mantido pelo governo federal. A pesquisa também identificou que houve uma diminuição importante de servidores de raça/cor não informada, passando de 12% na segunda metade da década de 1990 para zero no atual governo.

Ao contabilizar a presença de homens brancos em cargos de alta liderança (CCE e FCE acima de 15, posições iguais ou acima das de direção ou subsecretaria), os pesquisadores identificaram que sua presença segue preponderante, porém em constante declínio. Partiu de 75% em 1999, manteve-se entre 60% e 70% até 2020, “quando teve início uma curva decrescente que atingiu 46% em 2024”, afirma o estudo. As mulheres brancas iniciaram a série com 15% e passaram quase todo o período flutuando em torno dos 20%, atingindo 26% a partir de 2023.

Em relação aos homens não brancos, é perceptível um aumento de sua presença nas funções mais altas a partir de 2014, quando foi sancionada a Lei de Cotas no serviço público federal (lei 12.990). Segundo o estudo, houve longa estabilidade (cerca de 10% até 2014), com crescimento gradual até o pico de 18% em 2022, terminando com 16% em 2024. No caso das mulheres não brancas o aumento mais expressivo só ocorreu a partir de 2023. “Elas partiram do baixíssimo patamar de 1,6%, chegaram a 5,7% em 2022, saltando para 11% em 2023 e 2024”.

Apesar os efeitos positivos a lei de cotas, com aumento de 32% para 37,6% de pessoas negras em cargos efetivos na administração direta e de 25,8% para 33,5% nas autarquias, o estudo aponta que, em relação aos cargos de alto escalão, “quanto mais alta a posição do cargo, menor a presença de negros e mulheres”.

Representatividade nos ministérios

O estudo também se dedicou a analisar a ocupação dessas funções em diferentes órgãos da administração, o que reforça a percepção que a sub-representação de pessoas negras aumenta em órgãos centrais da administração. Foram destacados como ministérios com predomínio de homens brancos: Fazenda; Relações Exteriores; Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Planejamento e Orçamento; e Justiça e Segurança Pública.

Outros ministérios, como Minas e Energia, Ciência, Tecnologia e Inovação, Transportes, Agricultura e Pecuária e Comunicações, tiveram significativa diminuição na proporção de homens brancos. Porém, afirma o estudo, “essa redução foi compensada com o crescimento da participação de homens não brancos”. Já as maiores proporções de mulheres ocorrem no Turismo, Esporte, Saúde, Educação, Defesa, Gestão e Inovação em Serviços Públicos e Desenvolvimento e Assistência Social.

“As maiores participações de pretos, pardos e indígenas ocorreram nos ministérios da Defesa (Forças Armadas), Desenvolvimento Agrário, Povos Indígenas e Desenvolvimento Regional. As maiores proporções de mulheres não brancas (entre 24% e 20%) foram observadas nas áreas de Defesa, Cultura, Povos Indígenas, Esporte, Educação e Gestão e Inovação em Serviços Públicos”, aponta o relatório do levantamento.

Percepção das lideranças

De acordo a responsável pela pesquisa e coordenadora de projetos do Afro-Cebrap, a socióloga Flavia Rios, o estudo demonstra, tanto nas análises quantitativas quanto qualitativas, que o Estado reproduz o viés da sociedade, com mudanças lentas, porém em menor grau à medida que aumenta o grau de autoridade da função. Em relação aos dados qualitativos, a pesquisadora fez um apanhado dos principais achados, que demonstram, como características comuns aos entrevistados, a origem em classes sociais populares e qualificação profissional e/ou educacional elevados.

“Raramente, são pessoas com trajetória de elite. Na verdade, a gente tem uma qualificação nos quadros que chama bastante atenção. Apesar dessa formação, esses ocupantes de funções de liderança não tem discurso meritocrático e apoiam a lei de cotas”, pontua Flávia Rios.

A coordenadora do estudo indica ainda desafios estruturais para a ascensão aos cargos mais altos. Em primeiro lugar, há uma percepção de deslocamento desses profissionais, em um ambiente social adverso, tipicamente formado por homens brancos.

“No conjunto das entrevistas não faltaram exemplos de situações constrangedoras pelas quais passaram as pessoas entrevistadas. Tais situações têm em comum o fato de que a pessoa negra ocupando cargos de lideranças frequentemente não são reconhecidas pelo público externo ou mesmo pelos próprios trabalhadores do Estado, sejam eles funcionários públicos ou funcionários terceirizados”, aponta o relatório do estado.

Também há a percepção de que pessoas não brancas acabam aceitando funções de menor relevância e remuneração, mesmo em condições de disputar funções ainda mais destacadas. “Parece que as pessoas brancas podem escolher mais para onde vão. A pessoa negra pega o que tem para hoje. Há um sentimento de que ‘não vou esperar’. Muita gente qualificada poderia ter ocupado posições de liderança, mas não ocuparam”, complementa Flávia Rios.

Além do diagnóstico e da curva de tendência da participação de negros em funções de liderança, o estudo aponta 10 caminhos para acelerar a representatividade nessas funções. Entre os destaques, o monitoramento periódico da presença negra nas carreiras burocráticas; investimento em recrutamento e visibilidade de perfis com carreira pública e com experiência em cargos de gestão visando a diversidade nos altos cargos decisórios; e investimento na formação de lideranças negras em altas carreiras, especialmente nas áreas centrais e de infraestrutura do Estado.

Também sugere o aperfeiçoamento das políticas de ações afirmativas e incentivo a boas práticas institucionais e fortalecimento das assessorias de Participação e Diversidade dos ministérios. Vale notar que a renovação da lei de cotas no serviço público, com a ampliação de 20% para 30% da reserva de vagas nos concursos para os cargos efetivos, ainda carece de votação no Senado, em uma tramitação que se arrasta desde o início do ano passado.

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