Justiça multiportas e o Marco Legal das Garantias

Tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, um conjunto de ações diretas de inconstitucionalidade questionando a Lei 14.711/2023, o Marco Legal das Garantias.

Foca-se no art. 6º, segundo o qual se o bem móvel dado em garantia não tiver sido entregue ou disponibilizado voluntariamente no prazo legal, o credor poderá requerer ao oficial de registro de títulos e documentos a busca e apreensão extrajudicial, com apresentação do valor atualizado da dívida e da planilha indicada na lei.

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Há um rol de providências a serem adotadas pelo oficial uma vez recebido o requerimento, como forma de viabilizar a busca e apreensão extrajudicial.

No caso dos veículos, os órgãos de trânsito e outros órgãos de registro poderão manter convênios com os cartórios de registro de títulos e documentos, ainda que por meio das suas entidades representativas incumbidas de promover o sistema de registro eletrônico de que trata o art. 37 da Lei 11.977/2009 (Sistema Eletrônico dos Registros).

Não se impede que o devedor, eventualmente lesado, busque o Poder Judiciário.

São medidas muito oportunas. A impossibilidade de executar, com eficiência, garantias, é um obstáculo cujo efeito é o encarecimento do crédito. Tornar o crédito um bem mais caro corresponde a aumentar o contingente de excluídos financeiros, fragilizando a realização do programa social e coletivo que dimana da Constituição.

Além disso, apresenta formas outras de resolução de conflitos que não seja ir, sempre, ao Poder Judiciário. Albie Sachs, tratando da situação na jurisdição sul-africana, pontua que meios outros de resolução de conflitos podem “ajudar a evitar a exacerbação das tensões produzidas pela luta forense”, contornando “dificuldades que talvez o processo judicial contencioso não lograsse”.

A conclusão de Albie Sachs é emblemática: “O dinheiro que poderia por outra forma ser despedido em um litígio desagradável e polarizador pode ser mais bem empregado na viabilização de um resultado que ponha fim ao impasse, promova respeito à dignidade humana e ressalte o fato de que todos vivemos em uma sociedade compartilhada”.[1]

Esse desenho jurídico tem uma teleologia – ou telos, na dicção de Konrad Hesse[2] –, qual seja, a eficiência; e a eficiência encontra vasta guarida na Constituição Federal.

Mas favorece também o crédito. É da competência privativa da União legislar sobre política de crédito (art. 22, VII). O art. 192 dispõe que o sistema financeiro nacional é estruturado “de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”. Consta ainda a necessidade de se incentivar o mercado de modo a viabilizar o desenvolvimento sócio-econômico e o bem-estar da população (art. 219). Ou seja, o acesso ao crédito é política social de matriz constitucional.

E o crédito depende de um ambiente de segurança que se materializa por categorias jurídicas clássicas, como o enforcement de contratos voluntariamente celebrados e a efetividade das garantias apresentadas. O inciso XXII do art. 5º da Constituição Federal garante o direito de propriedade, sendo que a sua função social (XXIII), nesse caso, é justamente incrementar a utilidade do bem para a coletividade.

A possibilidade de se conferir potência às garantias voluntariamente ofertadas por meio de contratos idôneos entre partes legítimas não constitui uma violação constitucional. Mesmo porque, o direito contemporâneo trabalha com uma nova dimensão do devido processo legal, que é, para Jhones Ferreira da Silva, o “devido processo legal extrajudicial”[3], ínsito ao fenômeno contemporâneo da desjudicialização.

Cuida-se do que se chama de “justiça multiportas” (multi-doored courthouse), termo cunhado em 1976, nos Estados Unidos, pelo professor Frank Sander, ao apresentar o novo desenho funcional das cortes, que deixam de ser um mero locus no qual os processos são julgados e passam a ser um dispute resolution center (centro de resolução de disputas), ecossistemas vivos nos quais as partes são dirigidas ao mecanismo mais adequado para a solução do conflito em que estejam envolvidas.[4]

Para Guilherme Kronemberg Hartmann e Marcella Martins Sardenberg, justiça multiportas é “um sistema que trabalha a oferta de variados meios de acesso aos direitos (apurados, em norma fundamental, à letra dos parágrafos do art. 3º, CPC/2015), canalizando uma lógica cooperativa e não adversarial”.[5]

O Marco Legal das Garantias não é contra o Judiciário, ele apenas compreende a possibilidade de uma nação erguer um sistema inteligente, eficiente e seguro para a execução das garantias ofertadas em contratos voluntariamente celebrados por partes legítimas, sem que esteja, esse mesmo Judiciário, privado de, se provocado, responder.

Toda essa combinação entre desjudicialização e justiça multiportas está consagrada no Código de Processo Civil, que nos §§ 2° e 3° do art. 3° diz: “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.[6] O próprio caput do art. 3º ressignifica a ideia de acesso à justiça. Eis a sua redação: “Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”. Trata-se, agora, de “apreciação jurisdicional”.

Houve, no Brasil, uma intensa evolução legislativa em direção à desjudicialização, ressignificando as cortes do país, estabelecendo, ao seu lado, e sem excluí-las, novas portas de acesso capazes de acolher com dignidade cidadãos e cidadãs, de orientá-los com pedagogia e simplicidade e de resolver conflitos com efetividade.

Em resumo, a desjudicialização pode acontecer, desde que em respeito ao princípio da legalidade (promovida por lei, portanto), por meio de mecanismos proporcionais (necessários, adequados e proporcionais em sentido estrito), que não comprometam o núcleo essencial de direitos fundamentais e sem que jamais prive o Poder Judiciário de ser provocado por quem quer que seja.

No caso do Marco Legal das Garantias, ao direito de propriedade é promovida uma ponderação eficacial de modo a que também possa ele, voltado a bens escassos, gerar utilidade para a coletividade.

A reserva de jurisdição está assegurada por meio do acesso à justiça, que pode ser requerido a qualquer momento. O Judiciário não é excluído da equação legislativa, apenas deixa de ser a primeira e única opção de resolução de conflitos.

O domicílio do particular segue inviolável, ninguém nele podendo penetrar, nos exatos termos da Constituição.

O devido processo legal é assegurado, e, ao seu lado, ganha-se o incremento do que a doutrina tem chamado de devido processo extrajudicial, capaz de conferir salvaguardas necessárias a todos aqueles que, agora, disporão de uma justiça verdadeiramente multiportas, aquela que se abre, em flancos distintos, para distintos problemas, oferecendo distintas soluções.

As medidas analisadas são, por fim, proporcionais, pois são necessárias, são adequadas e são proporcionais em sentido estrito.

Esses são fundamentos robustos que nos levam a reiterar a plena constitucionalidade da Lei 14.711/2023, o Marco Legal das Garantias.


[1] Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva: 2016 (Série IDP: Linha Direito Comparado), p. 108.

[2] Hesse, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 104.

[3] Silva, Jhones Ferreira da. A evolução da atividade satisfativa: dos meios de execução atípicos à desjudicialização da execução civil (Capítulo 7, p. 139/152). In: Desjudicialização: atualidades e novas tendências. Ana Cláudia Rodrigues Theodoro; Flávia Pereira Hill; Humberto Dalla Bernardina de Pinho (orgs.). Londrina, PR: Thoth, 2024, p.147.

[4] Goldberg, Stephen B. Sander, Frank E.  A.  Rogergs, Nancy H. Cole, Sarah Rudolph. Dispute Resolution. Ed. Nova York: Aspen Publishers. 2003, p. 07. Para aprofundamento: Pinho, Humberto Dalla Bernardina de. A releitura do princípio do acesso à justiça e o necessário redimensionamento da intervenção judicial na resolução dos conflitos na contemporaneidade. In: Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Vol. 21, nº 3, set/dez 2019, p. 248. Em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/139955.

[5] Hartmann, Guilherme Kronemberg. Sardenberg, Marcella Martins. Adjudicação compulsória extrajudicial: Desjudicialização como locus adequado de acesso ao direito (Capítulo 13, p. 227/239). In: Desjudicialização: atualidades e novas tendências. Ana Cláudia Rodrigues Theodoro; Flávia Pereira Hill; Humberto Dalla Bernardina de Pinho (orgs.). Londrina, PR: Thoth, 2024, p. 228.

[6] Para aprofundamento: Faria, Márcio Carvalho. Reformar e racionalizar a execução civil: um caminho necessário. Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 3, n. 1, p. 239-282, jan./jun. 2023. DOI: https://doi.org/10.53798/suprema.2023.v3.n1.a236.

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