PL 3/24 e governança das falências: solução ou retrocesso?

O Prêmio Nobel de Economia de 2024, conferido a Daron Acemoglu e James Robinson por suas contribuições sobre o papel das instituições no desenvolvimento econômico, reforça uma lição fundamental e muitas vezes negligenciada pelos formuladores de políticas públicas: mudanças legislativas, por si sós, não têm a capacidade de transformar a realidade.

Transformações sociais dependem da forma como as normas interagem com as estruturas existentes e influenciam práticas e costumes em contexto cultural complexo. É justamente aí que reside a principal fragilidade do PL 3/2024, atualmente em trâmite no Senado. O PL propõe mudança estrutural profunda ao transferir do Judiciário para os credores os mecanismos de governança do processo falimentar.

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No papel, a proposta pode parecer promissora em termos de eficiência, mas ignora as especificidades brasileiras, sobretudo os potenciais efeitos adversos dessa mudança. O PL 3/2024 equivoca-se ao presumir que o mero incremento dos poderes dos credores (com a correspondente diminuição do papel do juiz) resolverá o problema da recuperação do crédito, que parece estar muito mais ligado à escassez estrutural de ativos do que à incompetência na administração do processo falimentar.

Modelos de governança eficiente são capazes, quando muito, de evitar a destruição de valor dos ativos que compõe a massa, mas é ilusório pensar que eles seriam capazes de aumentar significativamente os recursos disponíveis para satisfação dos credores do falido (excetuados casos muito particulares, que não deveriam ditar a regra geral).

Da mesma forma que substituir o piloto de uma aeronave por outro mais qualificado não basta para fazer um avião sem combustível cruzar o Atlântico, aprimorar a eficiência do modelo de governança da falência não será capaz de viabilizar a recuperação de crédito se não houver bens.

Isso não significa que o atual modelo seja isento de falhas. Há desafios substanciais a serem enfrentados no âmbito do Judiciário, desde a morosidade processual até a dificuldade de garantir transparência e previsibilidade às decisões. No entanto, esses relevantes problemas não justificam a ruptura abrupta do modelo de governança atual, muito menos sem um desenho institucional equilibrado e que seja capaz de dialogar com as particularidades nacionais.

A ideia de uma falência conduzida prioritariamente pelos credores não é nova, e a nossa história serve de alerta. Nossas primeiras leis falimentares, que datam desde o século 19, conferiam ampla participação dos credores no processo falimentar, por vezes permitindo-lhes até mesmo escolher o liquidante dos bens da massa.

A experiência, contudo, foi marcada por casos de conluios e conflitos de interesse que comprometiam a distribuição justa dos bens do devedor entre os seus credores[1]​. A resposta veio com a lei falimentar de 1945, que institui um modelo de “governança judicial” que praticamente nulificou a participação dos credores, potencializando o papel do juiz na condução do processo falimentar.

Ainda assim, o modelo de 1945 estabelecia que função de liquidante – então chamado de síndico – seria preferencialmente exercida pelo credor mais importante da massa.  Contudo, por razões que extrapolam o espaço deste artigo, isso também não funcionou, o que levou os juízes a nomearem síndicos dativos no lugar dos credores.

Seis décadas mais tarde, a Lei 11.101/2005 aperfeiçoou o modelo de governança judicial. Incorporando diretrizes do Fundo Monetário Internacional, devolveu aos credores a prerrogativa de decidir sobre a solução para a crise do devedor, mas manteve o processo sob rígido controle do juiz.

Visando a eficiência, mas sem descuidar da equidade, o legislador estabeleceu que a administração da falência seria conduzida por um profissional tecnicamente qualificado. Por outro lado, garantiu a sua independência ao conferir a escolha desse profissional exclusivamente pelo juiz, pondo a salvo os credores mais frágeis ou desorganizados dos interesses daqueles credores mais sofisticados.

É evidente, contudo, que a preparação do profissional adequado para administrar uma falência requer tempo e experiência. Além disso, exige o desenvolvimento de uma cultura própria capaz de sedimentar a ética e distinguir os bons dos maus profissionais. Por isso, soa um enorme contrassenso que, justamente agora, quando estamos a colher os primeiros frutos da construção dessa cultura, que se proponha uma guinada brusca de paradigma, conferindo-se aos credores (leia-se: os credores mais poderosos) o controle da gestão do processo falimentar.

Conforme a proposta contida no PL 3/2024, a maioria dos credores poderia decidir sobre a nomeação, remuneração e substituição do administrador judicial da massa falida (agora denominado gestor fiduciário), sem necessidade de qualquer justificativa. É claro que isso abre um flanco perigoso para captura do processo por interesses privados, sem salvaguardas adequadas para evitar abusos e desvios.

Num mercado de crédito altamente concentrado como o brasileiro, no qual grandes bancos e fundos privados são credores recorrentes e dominantes, os incentivos para o oportunismo crescem exponencialmente quando esses atores podem influenciar diretamente a escolha e a permanência do administrador da falência. Estudos da Uncitral e do Banco Mundial já alertaram para os riscos de uma governança falimentar excessivamente centrada no credor[2].

O perigo de captura da falência é evidente: um credor majoritário pode agir para manter um administrador complacente com seus interesses ou, inversamente, destituir um gestor que questione a legalidade de seus créditos ou investigue eventuais fraudes em que ele esteja envolvido.

Sem contrapesos, a balança pende para os credores mais fortes e sofisticados, em detrimento dos trabalhadores, consumidores, pequenos fornecedores e do interesse público. Vale notar que os países que adotam modelos com maior poder dos credores, como a Inglaterra e Singapura, implementam mecanismos rigorosos de controle para mitigar esses riscos. Nesses sistemas, profissionais de insolvência precisam de licenciamento, obedecem a códigos de ética estritos e estão sujeitos a órgãos de supervisão independentes[3]​. No Brasil, contudo, nenhuma dessas salvaguardas foi incorporada ao PL 03/2024, que vem tramitando de forma acelerada e sem debate público aprofundado. Estamos importando uma solução estrangeira pela metade, negligenciando aspectos fundamentais da sua operacionalização.

Talvez o aspecto mais preocupante da reforma proposta esteja na fragilidade do diagnóstico que a embasa. O argumento central do PL 03/2024 é que a baixa recuperação de crédito nas falências decorre de uma governança judicial ineficiente marcada pela má atuação dos administradores judiciais. De fato, a taxa de recuperação de créditos em processos falimentares no Brasil é desanimadora – segundo o Banco Mundial, credores recuperam, em média, apenas 18% do valor devido[4]. Mas atribuir esse resultado ao modelo de governança é uma simplificação leviana.

Para concluir-se que a governança judicial é a causa problema, seria necessário primeiro demonstrar ela foi responsável pela destruição de ativos do falido. Afinal, só se poderia cogitar de culpa do juiz ou do administrador judicial se, por ocasião da decretação da quebra, o falido contasse com ativos capazes de saldar uma fatia substancial do passivo e que, ao longo do processo, a massa objetiva foi desidratada pela má condução da falência. No entanto, tais dados simplesmente não existem. Em suma, não há evidência empírica de que o magistrado e o administrador judicial sejam os principais responsáveis pela baixa recuperação de crédito.

É claro que há espaço para melhorias no sistema de insolvência. Os números insatisfatórios de recuperação de créditos e a morosidade de muitos processos falimentares demonstram que ajustes são necessários. Porém, qualquer modificação deve se apoiar em diagnóstico preciso, estudos sérios e amplo debate com os atores envolvidos. Alterações legislativas estruturais não podem ser guiadas por suposições ou por pressões egoísticas deste ou daquele setor.

Não podemos menosprezar o que está em jogo: há um risco real de desperdício do amadurecimento institucional e da experiência prática acumulada ao longo das últimas décadas. O desenvolvimento de um sistema jurídico requer tempo para depuração e ajustes progressivos, permitindo que a praxe se refine e que os operadores da insolvência – juízes, administradores judiciais, advogados e credores – desenvolvam práticas mais eficientes. Mudar abruptamente o modelo de governança significa descartar todo esse percurso de experiências acumuladas em troca de soluções não só irreais, mas que podem abrir espaço para retrocessos.

Em vez de aprimorar a eficiência dos processos de falências, a aprovação do PL 03/2024 pode intensificar a opacidade, os conflitos de interesse e a litigiosidade, fatores que já são sensíveis no atual cenário. Ademais, não será tarefa fácil convencer os magistrados de que o profissional indicado e sujeito ao crivo do bloco majoritário dos credores atuará com a independência e imparcialidade necessárias ao bom funcionamento do processo.

É preciso cautela e prudência. Antes de promover mais uma alteração legislativa desconectada da realidade brasileira, é essencial aprofundar estudos e debater alternativas que fortaleçam a implementação das regras existentes. Reformas estruturais devem ser conduzidas com responsabilidade, pois modificar o ordenamento sem permitir o desenvolvimento de protocolos e a consolidação das engrenagens institucionais que garantam sua efetividade pode ser não apenas inócuo, mas profundamente prejudicial, desperdiçando o conhecimento acumulado ao longo de décadas.

Em suma, o compromisso do PL 03/24 deve ser com a solução de problemas reais da insolvência, não com o resgate de fórmulas ultrapassadas e incompatíveis com a atual conjuntura brasileira.


[1] MENDONÇA, Carvalho de. Tratado de Direito Comercial. Vol. VIII. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 53-54.

[2] CNUDMI-NACIONES UNIDAS. Guía Legislativa sobre el Régimen de la Insolvencia. Nueva York, 2006, p. 205-217; WESTBROOK, Jay Lawrence; BOOTH, Charles D.; PAULUS, Christoph G.; RAJAK, Harry. A Global View of Business Insolvency Systems. Leiden/Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2010, p. 210.

[3] FINCH, Vanessa. Corporate Insolvency Law: Perspectives and Principles. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 179-239.

[4] WORLD BANK. Doing business 2020: Comparing Business Regulation in 190 Economies – Economy Profile Brazil. 2020

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