Soberania estatal e direitos humanos

A crítica recorrente de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) “ultrapassa a tipicidade e as garantias constitucionais brasileiras” reflete um equívoco sobre o papel dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.

Essa visão pressupõe que a atuação da Corte IDH representa uma afronta à soberania nacional e à competência do Judiciário brasileiro, desconsiderando que a própria adesão do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) foi um ato de autodeterminação estatal, assumido voluntariamente. Mais do que um embate entre jurisdições, o que se tem é um diálogo multinível que busca alinhar os ordenamentos jurídicos internos a um patamar mínimo de proteção dos direitos fundamentais.

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A incorporação da CADH ao ordenamento jurídico brasileiro não foi meramente simbólica. Nos termos do artigo 68.1 da Convenção, os Estados signatários obrigam-se a cumprir as decisões da Corte Interamericana em todos os casos em que forem partes, sob pena de responsabilidade internacional.

Esse compromisso é reforçado pelo artigo 4º, inciso II, da Constituição Federal, que estabelece a prevalência dos direitos humanos como princípio norteador das relações internacionais do Brasil. Além disso, o artigo 5º, §2º, determina que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

O argumento de que a Corte IDH “ultrapassa a tipicidade” ignora que o controle de convencionalidade não substitui ou anula arbitrariamente o controle de constitucionalidade, mas opera de forma complementar. Como demonstrado no caso García Rodríguez e outros vs. México, a Corte IDH não impôs uma alteração direta na Constituição mexicana, mas determinou que o Estado adotasse medidas concretas para harmonizar sua legislação com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

A respeito, observa Sarlet que a Corte IDH não age como um tribunal constitucional supranacional que revoga normas internas, mas como um órgão que exige a adequação dos ordenamentos jurídicos nacionais aos compromissos internacionais assumidos. O controle de convencionalidade, portanto, não significa uma intervenção arbitrária, mas uma garantia de que os Estados signatários respeitem os tratados de direitos humanos aos quais aderiram.

Esse entendimento encontra respaldo na jurisprudência da própria Corte IDH. No caso Gelman vs. Uruguai, a corte afirmou que todos os órgãos do Estado — inclusive o Poder Judiciário — estão submetidos à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e devem exercer o controle de convencionalidade ex officio, observando a interpretação já consolidada pela Corte IDH. Tal diretriz reforça a obrigação dos Estados de harmonizar suas normas internas com os parâmetros interamericanos, assegurando a máxima proteção aos indivíduos.

O Brasil já foi condenado em diversas ocasiões pela Corte IDH por falhas estruturais em seu sistema de justiça e por omissões que resultaram em graves violações de direitos fundamentais. A mais recente condenação, no caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil, é emblemática.

A corte reconheceu que o Estado brasileiro falhou ao investigar e julgar um caso de discriminação racial no acesso ao mercado de trabalho, violando os artigos 8, 24 e 25 da CADH. Como consequência, impôs ao Brasil a obrigação de adotar medidas estruturais para evitar a repetição dessas violações, incluindo a implementação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A responsabilização internacional do Brasil não implica uma desqualificação do sistema judiciário nacional, tampouco sugere que “os juízes interamericanos sejam melhores que os nossos”, mas evidencia o compromisso global com a uniformização da interpretação dos direitos fundamentais e com a proteção efetiva da dignidade humana.

Como observa Piovesan (2019, p. 68), a dignidade da pessoa humana deve ser compreendida como um superprincípio do constitucionalismo contemporâneo, conferindo-lhe unidade e sentido. Para a autora, os direitos humanos não podem ser tratados como uma questão restrita à soberania estatal, pois sua proteção representa um interesse legítimo da comunidade internacional.

Essa perspectiva implica a superação da noção tradicional de soberania absoluta, permitindo que mecanismos internacionais atuem para garantir direitos fundamentais, sobretudo em situações em que os Estados falham nessa tarefa. Assim, afasta-se a ideia de que a forma como um Estado trata seus cidadãos seja uma questão exclusivamente doméstica.

A invocação da soberania estatal, quando utilizada sem limites, pode se tornar um escudo retórico para justificar violações de direitos humanos, legitimando práticas incompatíveis com os compromissos internacionais assumidos pelos próprios Estados.

Um exemplo notório dessa instrumentalização política da soberania ocorreu no discurso do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na Assembleia Geral da ONU, em 25 de setembro de 2018. Ao reafirmar a doutrina “America First” e rejeitar o “globalismo”, Trump defendeu que “nações soberanas e independentes são o único meio para salvaguardar a liberdade, a democracia e a paz” e que os Estados deveriam “proteger sua soberania e independência acima de tudo” (Piovesan, 2019, p. 68). Esse episódio exemplifica como a soberania, quando distorcida, pode ser utilizada para legitimar práticas que violam princípios fundamentais da proteção internacional dos direitos humanos.

A resistência ao controle de convencionalidade decorre de uma compreensão equivocada sobre sua natureza. Longe de representar ingerência externa ou ameaça à soberania, trata-se de um instrumento que reafirma o compromisso do Estado com os direitos fundamentais. Como destaca Burgorgue-Larsen, tanto a Corte IDH quanto tribunais constitucionais latino-americanos têm recorrido ao direito internacional dos direitos humanos como parâmetro interpretativo, evidenciando uma abertura ao diálogo normativo em favor da proteção da dignidade humana.

A Corte IDH não substitui os tribunais nacionais, mas atua de forma subsidiária, apenas diante de falhas internas na tutela dos direitos humanos. Ao aderir à Convenção Americana e reconhecer a jurisdição da Corte, o Brasil assumiu que seus cidadãos podem recorrer ao sistema internacional após o esgotamento das vias internas, reafirmando o princípio da prevalência dos direitos humanos previsto no artigo 4º da Constituição Federal.

O controle de convencionalidade não reduz a competência do Judiciário brasileiro, nem o subordina à Corte Interamericana. Trata-se de um mecanismo destinado a assegurar que as decisões nacionais estejam em conformidade com os compromissos internacionais livremente assumidos pelo Brasil. Negar a legitimidade da Corte IDH é, por consequência, negar o próprio princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos.

O sistema interamericano de proteção de direitos humanos não compromete a autonomia dos tribunais nacionais, mas exige deles um compromisso ativo com os valores democráticos. Como observa Piovesan (2019, pg. 97), a consolidação do Estado de Direito, em todas as suas dimensões, passa necessariamente pelo fortalecimento da justiça internacional, uma vez que o Judiciário, como poder desarmado, tem a última palavra na proteção jurídica dos direitos fundamentais.


BURGORGUE-LARSEN, Laurence. La Corte Interamericana de Derechos Humanos como Tribunal Constitucional. México: UNAM, 2014.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2023.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gelman vs. Uruguai. Sentença de 24 de fevereiro de 2011.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso García Rodríguez y Alpízar Ortíz vs. México. Sentença de 12 de abril de 2023.

MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Eficacia de la Sentencia Interamericana: Estándares de Cumplimiento y Reparación. San José: IIDH, 2018.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Corte IDH e o Controle de Convencionalidade de Norma Constitucional. Conjur, 30 abr. 2023.

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