No universo das relações empresariais, a figura contratual assume papel de protagonista, delineando os contornos das obrigações e direitos entre as partes. Dentre a miríade de cláusulas que podem adornar um contrato, emerge a cláusula non cedendo, um pacto restritivo que veda ou restringe a cessão de direitos creditórios. Esta estipulação, comumente encontrada em contratos de fornecimento visa assegurar que a relação creditícia original não seja alterada sem o conhecimento do devedor.
Contudo, a proteção conferida pela cláusula non cedendo começa a ruir quando confrontada com a Lei 13.775/2018 (Lei das Duplicatas), e com os princípios basilares do sistema econômico, que preconizam a livre circulação de riquezas e a fluidez do crédito como motores do desenvolvimento.
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Neste contexto, emerge um debate jurídico de suma relevância: qual o alcance da validade da cláusula non cedendo frente ao imperativo da livre circulação de crédito garantido pela Lei das Duplicatas? A resposta a esta indagação perpassa pela legislação e pela compreensão dos efeitos econômicos e sociais da restrição à circulação de um título de crédito tão fundamental para o desenvolvimento comercial e para o fomento da economia.
A essência e a funcionalidade da duplicata no mercado de crédito
A duplicata, em sua essência, configura-se como um título de crédito causal, emitido em decorrência de uma compra e venda mercantil ou de prestação de serviços, representando o valor da obrigação assumida pelo sacado (devedor) perante o sacador (credor), que não apenas formaliza a existência do crédito, mas permite a sua circulação com mais segurança.
O credor, munido da duplicata, pode antecipar o recebimento de recursos por meio de diversas operações financeiras, tais como o desconto bancário e o factoring. Essa antecipação de recebíveis pode ser crucial para as empresas, especialmente para as de pequeno e médio porte, que frequentemente dependem do fluxo de caixa para manter suas operações e investimentos.
No contexto do fomento comercial, empresas de factoring e outras instituições especializadas podem adquirir as duplicatas emitidas pelas empresas, adiantando os valores correspondentes, mediante o pagamento de uma taxa de desconto. Dessa maneira créditos a prazo se convertem em recursos financeiros imediatos, impulsionando o capital de giro e a capacidade de investimento de quem as emitiu, conferindo mais dinamismo à economia.
Duplicatas podem compor a carteira de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs), lastreando a emissão de cotas e atraindo investidores e também podem ser utilizadas em operações de securitização.
A antieconomicidade das cláusulas restritivas à circulação de duplicatas
Diante da relevância das duplicatas para o fomento comercial, torna-se evidente o caráter antieconômico de cláusulas contratuais que busquem restringir sua emissão ou circulação. Impor entraves à fluidez do crédito traz reflexos negativos para os setores da economia que dependem da antecipação de recebíveis para financiar suas operações.
Tais cláusulas também reduzem o interesse de instituições financeiras, elevando os custos de financiamento, com impactos negativos no crescimento econômico e na geração de empregos. Sob a ótica da eficiência econômica, a livre circulação de duplicatas se apresenta como um mecanismo fundamental para otimizar a alocação de recursos na economia.
Nulidade das cláusulas restritivas e segurança jurídica nas operações de crédito
A Lei 13.775/2018, ao estabelecer em seu art. 10 serem nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que impeçam a emissão ou a circulação de duplicatas, busca justamente mitigar os efeitos antieconômicos das restrições à livre circulação de crédito.
Ao erigir a livre circulação de duplicatas como um princípio fundamental do sistema creditício nacional, a lei visa garantir a fluidez do crédito, o fomento comercial e a segurança jurídica das operações financeiras que se valem desse importante título de crédito.
A nulidade das cláusulas restritivas, portanto, não se limita a uma questão de interpretação legal, mas se erige como um imperativo para a manutenção da segurança jurídica e da estabilidade do mercado de crédito. Ao afastar a possibilidade de que acordos particulares possam obstar a circulação de duplicatas, a lei confere maior previsibilidade e confiabilidade às operações financeiras, incentivando a participação de investidores e instituições financeiras no mercado de crédito.
A segurança jurídica proporcionada pela nulidade das cláusulas restritivas se revela especialmente relevante em operações complexas como a securitização e os FIDCs. Nesses mercados, a previsibilidade e a liquidez dos ativos subjacentes são elementos cruciais para a atratividade dos títulos emitidos e para a confiança dos investidores. Ao garantir que as duplicatas possam ser livremente circuladas e negociadas, a lei contribui para a solidez e o desenvolvimento desses mercados, impulsionando o financiamento de longo prazo para as empresas e para a economia como um todo.
Ademais, a nulidade das cláusulas restritivas protege terceiros de boa-fé que adquirem duplicatas no mercado. Ao afastar a possibilidade de que cláusulas contratuais de conhecimento apenas das partes envolvidas possam obstar a cessão de créditos, a lei confere maior segurança aos adquirentes de duplicatas, que podem confiar na livre negociabilidade desses títulos de crédito.
Essa proteção aos terceiros de boa-fé é fundamental para o bom funcionamento do mercado de crédito, pois incentiva a participação de investidores e garante a liquidez dos títulos de crédito.
Análise jurisprudencial: consolidação do entendimento pela nulidade
A jurisprudência dos tribunais pátrios tem se consolidado no sentido de reconhecer a nulidade da cláusula non cedendo frente à Lei das Duplicatas, reforçando o entendimento de que a livre circulação de crédito é um valor jurídico superior que prevalece sobre o interesse particular.
No Agravo de Instrumento 2176967-65.2020.8.26.000, o TJSP reafirmou a nulidade de pactos privados que busquem impedir a circulação de duplicatas e decretou a nulidade de cláusula proibitiva de cessão de crédito, consolidando uma jurisprudência robusta nesse sentido.
O TJDFT, por sua vez, no Acórdão 1358731, também confirmou esse entendimento e reconheceu a nulidade de cláusula non cedendo por restringir a circulação de duplicatas.
É de se destacar a Apelação Cível 1064371-49.2020.8.26.0100, do TJSP, na qual o Tribunal paulista reconheceu a validade da cláusula non cedendo apenas para contratos celebrados antes da vigência da Lei 13.775/2018, aplicando a eles o artigo 290 do Código Civil, preservando-se a validade das cláusulas pactuadas anteriormente à Lei, em respeito ao princípio da segurança jurídica e à vedação da retroatividade da lei.
Os tribunais pátrios, em sintonia com a ratio legis da Lei 13.775/2018, têm priorizado a livre circulação de crédito como um valor jurídico fundamental para o desenvolvimento econômico e para a segurança das operações financeiras.
Orientações finais às empresas: adaptação à nova realidade jurídica
Diante do atual panorama jurídico, é imperativo que as empresas busquem adequar-se à realidade.
Uma possível solução para empresas protegerem seus interesses sem restringir a circulação de duplicatas é a adoção de mecanismos de mitigação de riscos, como a análise de crédito e a adoção de políticas de cobrança eficientes. A utilização de tecnologias e sistemas de gestão de crédito também pode auxiliar as empresas a gerenciarem seus riscos de inadimplência de forma mais eficaz.
A assessoria jurídica especializada é fundamental para auxiliar as empresas na identificação e implementação das melhores soluções para proteger seus interesses em conformidade com a legislação vigente e a jurisprudência consolidada.