Utopia conservadora deve ser combatida com resgate do futuro como lugar desejável

No final do século 20 e início do 21, circulava nos meios acadêmicos uma frase que sintetizava o “espírito do tempo” daquele momento: “Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo muito bem”. Esse sentimento de desencanto com a realidade permeou esse período marcado por uma série de acontecimentos que geraram aquilo que se convencionou chamar de “pós-modernidade” ou “modernidade líquida”, para citar o termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman.

Um período de colapso das “grandes narrativas” e certezas que visavam explicar o mundo e a vida e que indicavam caminhos para o futuro da humanidade, entre elas o marxismo, o cristianismo e as religiões em geral, e o racionalismo apoiado no projeto iluminista de emancipação por meio da razão.

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Viveu-se neste período o fim do comunismo e da sua crença na revolução salvadora. Emergiu a percepção de vitória do capitalismo tecnocrático neoliberal e do seu “fim da História”, com a adoção de uma racionalidade meramente instrumental, focada apenas na eficácia e não na crítica e transformação da realidade.

Os frutos de tal conjuntura foram a naturalização do desemprego em massa, o fim dos direitos trabalhistas, a precarização do trabalho e o avanço ultra-acelerado da tecnologia — que trouxe consigo transformações profundas nas relações de trabalho e da vida cotidiana. Isso tudo somado ao agravamento do aquecimento global e consequente colapso ambiental que vivemos.

Todos esses fatos representaram o fim da fé no progresso e na capacidade humana de construir um futuro melhor para todos — ou pelo menos para a maioria da população mundial. Essa sensação histórica de desamparo produziu desilusão, cinismo e medo do futuro, sendo este não mais concebido como algo promissor.

A falta de confiança nas grandes narrativas determina a impossibilidade de se prever o futuro com bases filosófico-científicas, restando apenas o presente. Nesse contexto, a política já não promete mais transformações e torna-se responsável apenas em administrar o que já existe, igualando ideologias e transformando partidos em gestores tecnocratas do capitalismo.

Porém, o capitalismo neoliberal, modelo político e econômico ainda vigente na maior parte do mundo, claramente se mostrou incapaz de resolver os problemas da humanidade. Pelo contrário, ele é a principal causa de muitos dos males contemporâneos.

Portanto, se o presente é desolador e o futuro causa medo e insegurança, só resta aos indivíduos refugiarem-se no passado. Surge então a ideia de “retropia” de Bauman, uma espécie de utopia às avessas que, ao invés de buscar as soluções para os problemas da humanidade no futuro, retrocede procurando essas respostas em um passado idealizado.

O slogan dos dois governos de Donald Trump revela bem esse sentimento: “Make America Great Again”. É a nostalgia de um passado, vivido ou não, mas concebido de maneira idílica, que guia as massas do mundo atual e serve como mecanismo de defesa contra o presente terrível e o futuro amedrontador.

Nessa conjuntura de perda completa da esperança de alcançar a felicidade em algum lugar no futuro, o medo transforma-se em um afeto político central, capitaneado pela extrema direita, criando-se a ideia de que não há alternativas para o mundo, o futuro é sombrio e o passado, glorioso. No entanto, o medo costuma ser um péssimo conselheiro, inibindo a razão e a capacidade de vislumbrar novas possibilidades, como pode ser atestado olhando-se para a realidade atual.

Diante dessa encruzilhada, cabe à política ressuscitar o seu potencial utópico de imaginar novos mundos possíveis e é papel das esquerdas e dos movimentos progressistas recriar e mobilizar o sentimento de esperança que busque no futuro “uma luz no fim do túnel”, mobilizando ideias e projetos que objetivem solucionar os problemas da humanidade.

Para isso, entretanto, é preciso superar o medo. É verdade que as ideias, por mais bem intencionadas que sejam, podem gerar catástrofes, fato constatável ao longo da História. Porém, não existe ação política sem risco. Toda ação é uma aposta na qual pode-se acertar ou errar, mas isso não quer dizer que a tentativa, caso seja fracassada, tenha sido menos importante do que o acerto porque ela gerou aprendizado, o qual deve se tornar um processo de autocrítica constante daqueles que desejam transformar a realidade.

Na recente eleição alemã, todos os holofotes se voltaram para o inédito crescimento da extrema direita no país, que recuperou expressão política que não possuía desde 1945. De certa forma, foi uma vitória do medo e da “retropia”.

No entanto, outro fato inusitado merece atenção. O partido A Esquerda (Die Linke, em alemão) conquistou o dobro das suas expectativas de votos, obtendo 64 cadeiras no Bundestag, o parlamento alemão, apontando para o futuro e ressuscitando o sentimento de esperança, especialmente do eleitorado mais jovem.

Por meio do uso de vídeos virais com discursos combativos nas redes sociais, especialmente no TikTok, e propostas que atacam problemas que foram deixados de lado pelas outras legendas em meio ao debate sobre imigração, como o preço das moradias e do custo de vida, o partido conseguiu ser o mais votado não apenas pelos jovens entre 18 e 24 anos, mas também entre aqueles que votaram pela primeira vez, além de ter obtido a maioria na capital, Berlim. Ou seja, se as eleições dependessem apenas dos jovens, a Alemanha seria governada pela esquerda radical.

Realizando a maior campanha já feita pelo partido, que ouviu a população batendo de porta em porta em mais de 680 mil casas, promoveu-se o resgate da política da esperança por meio dos jovens e recriou-se novamente o futuro como um lugar desejável a ser alcançado.

É preciso existir um processo contínuo de autocrítica sobre os resultados das ações políticas visando o seu aperfeiçoamento. É necessário ter a confiança de que, apesar dos fracassos, é através do aprendizado da ação que se pode superá-los.

O que não pode ocorrer é a insistência nos mesmos erros esperando resultados diferentes. Esse é o caso do governo brasileiro, que, acuado pelo mercado e por um Congresso e mídia subservientes aos interesses financeiros de poucos, prefere insistir no “mais do mesmo” em vez de buscar na mobilização da esperança e dos afetos transformadores novos rumos para o país.

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