Regulamentação da IA no Brasil: federalismo e poderes estatais

Um dos temas mais complexos no mundo contemporâneo diz respeito à inteligência artificial, impondo a reflexão sobre seus impactos nas vidas social, econômica e jurídica. Mesmo com as vantagens do seu emprego nas mais diversas áreas, o rápido incremento tecnológico aliado à transição histórica e paradigmática em torno de uma nova Era Digital coloca em risco os direitos humanos e as capacidades institucionais do Estado, dos seus poderes e dos demais entes políticos-jurídicos de assegurar a efetividade dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição de 1988.

Assim, não resta dúvidas de que a regulação normativa dos limites e possibilidades do uso da inteligência artificial é matéria da mais alta relevância. Nessa perspectiva, o foco desta coluna encontra-se na complexa forma de disciplina jurídica da inteligência artificial no Estado federal e nos poderes estatais[1].

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Federalismo e separação dos Poderes

O federalismo consiste em filosofia que reflete sobre o exercício equilibrado do poder, a partir a) do Estado moderno e b) das atribuições de competências a diversos órgãos e autoridades nacionais e subnacionais. Nas democracias constitucionais, o federalismo relaciona-se com a separação dos poderes, sendo este instituto central no Estado de Direito e no constitucionalismo.

Em primeiro lugar, o Estado moderno advém originalmente da centralização do poder no monarca, na Europa. Trata-se de fenômeno histórico que ocorreu de forma diversa em cada país, por questões peculiares dessas comunidades. Em virtude da ampliação substancial dos poderes da coroa, ainda na visão de governo misto (adoção simultaneamente de elementos da democracia, da aristocracia e da monarquia), Montesquieu propõe uma séria de instrumentos para evitar que os monarcas se transformassem em tiranos, sendo a separação de poderes relevante para esse fim[2].

Historicamente, o advento do Estado federal norte-americano promove a interligação prática entre o federalismo e o constitucionalismo, bem como entre Estado federal e Estado de Direito[3]. Esse modelo foi elaborado a partir da cessão de parte da soberania dos entes subnacionais ao ente central, formando um sistema dualista. Tanto no âmbito nacional como na esfera subnacional, existem Poderes autônomos, harmônicos e equilibrados por meio de uma repartição horizontal de competências, atuando esta como verdadeira forma de limitação e controle do poder político entre os entes federativos.

Esse desdobramento de competências se conecta à divisão do poder soberano estatal em Executivo, Legislativo e Judiciário, regidos pelo sistema de freios e contrapesos, o qual estabelece controles recíprocos, formando uma complexa rede jurídica de limitação do poder político, originando a vertente americana do rule of law.

No caso brasileiro e no aspecto institucional[4], federalismo e separação de poderes relacionam-se a partir da segunda Constituição brasileira de 1891 com o advento do Estado federal, a extinção do Poder Moderador e a implementação da tradicional tripartição de Poderes. Por sua vez, a modelagem institucional contemporânea é tributária, em linhas gerais, da estrutura da Constituição Federal de 1934, a qual atribui prevalência a competências do governo central (União), modificando o modelo brasileiro anterior de federalismo dual existente na primeira República (1891-1930).

Para fins da reflexão específica acerca da regulação da inteligência artificial em terrae brasilis, a atual Constituição Federal de 1988 adota o federalismo como um princípio estruturante e reitor da formação do Estado brasileiro, sendo enunciado já em seu preâmbulo e no caput do artigo 1º. Dada sua fundamentalidade e centralidade, o federalismo é também cláusula pétrea anunciada em seu artigo 60, §4º, I,  CF/88.

Essa preocupação é plenamente justificável porque, ao permitir participação democrática local e a convivência entre sociedades de diferentes culturas e tradições, especialmente em países populosos e de grande extensão territorial, o federalismo promove unidade na diversidade sem incorrer em governos centrais unificados e autoritários[5].

Nesse trilhar, ao adotar o modelo tripartite, a Constituição de 1998 estabelece a competência administrativa comum da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios de “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação”, conforme o artigo 23, V, o qual foi modificado pela Emenda Constitucional 85, de 2015.

Em relação à legislação, os temas de ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação são de competência concorrente, devendo a União legislar sobre as normas gerais e podendo os estados suplementar por meio de legislação estadual as normas gerais e os municípios detêm competência para suplementar tanto as normas gerais como as normas suplementares estaduais, de acordo com artigo 24, §§1º e 2º e artigo 30, II, Constituição Federal de 1988.

No âmbito do Judiciário, não se pode olvidar que os tribunais possuem autonomia administrativa, sendo recentemente aprovada Resolução do Conselho Nacional de Justiça sobre o uso e o desenvolvimento de IA, no Procedimento de Ato Normativo 0000563-47.2025.2.00.0000, em 18 de fevereiro de 2025. Desse modo, o CNJ buscou equilibrar uma regulamentação nacional com a autonomia e com a pluralidade dos tribunais brasileiros[6].

Além da fixação das competências administrativa e legislativa e do desenho da estrutura dos tribunais, a Constituição Federal brasileira de 1988 possui o relevante Capítulo IV, o qual é denominado “Da ciência, tecnologia e inovação” do Título VIII, que também foi alterado pela Emenda Constitucional 85, de 2015.

Dentre as principais regulamentações constitucionais sobre o tema à luz do federalismo, o Estado brasileiro incentivará a articulação entre entes privados e públicos, nas diversas esferas de governo (federal, distrital, estadual e municipal) para o desenvolvimento científico, a capacitação tecnológica e a inovação, além de incentivar que os atores nacionais atuem também no exterior, segundo o artigo 218, §§ 6º e 7º.

Corretamente a tônica constitucional é a cooperação entre entes públicos de todas as esferas federativas e privados, ainda que seja possível vislumbrar a proeminência da União na coordenação dessas políticas públicas e da produção legislativa, deixando para os entes subnacionais maiores funções executivas e suplementares.

De qualquer modo, o artigo 219-A, Constituição Federal de 1988 estabelece a possibilidade de construção de instrumentos de cooperação com compartilhamento de recursos humanos e capacidade instalada, sendo possível a realização de contrapartida financeira. O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) foi desenhado para a efetiva colaboração dos atores públicos e privados, também fixando a competência legislativa concorrente para disciplinar esse sistema, de acordo com o artigo 219-B, Constituição Federal de 1988.

Poderes estatais e inteligência artificial

Os dilemas da IA no Brasil, a qual trata claramente de assunto relacionado à ciência, à tecnologia e à inovação, são enfrentados no Brasil pelos três Poderes. No âmbito legislativo, foi aprovado pelo Senado em 10 de dezembro de 2024 o PL 2338/2023[7]. Nos marcos da moldura constitucional, o artigo 1º, caput, indica que o projeto legislativo é composto por normas gerais de caráter nacional “para a concepção, o desenvolvimento, implementação, utilização, adoção e governança responsável de sistemas de inteligência artificial no Brasil”.

No que se refere às medidas de governança ao poder público para sistemas de inteligência artificial de alto risco, todos os entes da Administração Pública direta e indireta adotarão protocolos de acesso e utilização do sistema, direito de explicação, revisões humanas das decisões tomadas pela inteligência artificial e publicização dos estudos preliminares dos sistemas utilizados pela União, estados, Distrito Federal e municípios, de acordo com o artigo 23, I a III.

No âmbito do Poder Executivo, na 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, no período de 30 de julho a 1º de agosto de 2024, foi apresentado o Plano Nacional, que é designado IA para o Bem de Todos[8], buscando desenvolver a Inteligência Artificial a) centrada no ser humano e acessível a todos, b) orientada a superar desafios sociais, ambientais e econômicos e c) fundamentada no desenvolvimento e na soberania nacional, d) na transparência e e) na cooperação globalmente em bases justas.

Apesar de a implementação das medidas imediatas estarem centradas em órgãos do governo federal como, por exemplo, o Ministério da Saúde, também se observam formas cooperativas de atuação de diversos entes federais, estaduais e municipais como na área de educação com os desenvolvimentos de sistema para reduzir o número de alunos que abandonam as escolas e as universidades e de sistema de apoio aos professores e gestores escolares na avaliação das atividades estudantis para melhorar a alfabetização.

Sobre o Judiciário, o direito constitucional positivo, por meio principalmente do entendimento do Supremo Tribunal Federal, estabelece que o Judiciário é um poder nacional, inexistindo propriamente dois ramos distintos da justiça: um federal e outro estadual[9]. Em outras palavras, todos os órgãos e autoridades judiciais integram o Judiciário nacional, não sendo as Justiças Estaduais nada mais do que ramos do poder nacional.

Mesmo com essa compreensão adotada pela jurisdição constitucional, não se pode negar o caráter federativo do Judiciário[10]. Nesse contexto, um caso envolvendo temas de IA pode, por meio do sistema recursal e das competências atribuídas aos inúmeros órgãos e tribunais, ser decidido pelos diversos juízes e tribunais.

Assim, os tribunais inferiores corriqueiramente enfrentam temas relevantes de inteligência artificial como o caso de uma conta de e-mail que “foi desativada após detectada, por meio da inteligência artificial, suposta contrariedade às regras de conduta do usuário, sendo crível que, nesse contexto, tenham sido apagados todos os arquivos armazenados naquele endereço eletrônico”[11].

De outro lado, os juízes, servidores e estagiários do Poder Judiciário estão desenvolvendo e empregando a inteligência artificial em diversas atividades. O CNJ com razão aprovou relevante resolução, estabelecendo “diretrizes para o desenvolvimento, utilização e governança de soluções desenvolvidas com recursos de inteligência artificial no Poder Judiciário”.

No âmbito material, o desenvolvimento, o uso e a implantação da inteligência artificial necessitam, por exemplo, respeitar os direitos fundamentais, os valores democráticos, a centralidade da pessoa humana, além de promover o bem-estar dos jurisdicionado, nos termos do artigo 2º da Resolução.

No âmbito do federalismo judicial, o Ato Normativo deixa claro que a resolução fixa normas gerais, conforme seu artigo 1º, caput, buscando preservar a autonomia dos tribunais para diversas atividades como, por exemplo, o estabelecimento de “processos internos aptos a garantir a segurança dos sistemas de inteligência artificial”, no artigo 12.

Ainda, o Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário, de acordo com o artigo 15 da Resolução do CNJ, é composto por integrantes da Justiça Federal Comum, da Justiça Federal do Trabalho, da Justiça Eleitoral, da Justiça dos Estados e do Distrito Federal e de juízes escolhidos pelas associações nacionais de magistrados, representando assim a pluralidade do Judiciário.

Conclusão

Não há dúvidas de que a devida regulamentação jurídica da inteligência artificial, no Brasil, demanda um esforço cooperativo entre os entes federativos, de modo que, a partir de diagnósticos comuns e específicos a cada realidade combinados com o devido planejamento e avaliação de resultados, a novel regulamentação seja efetiva, plural e dotada de maior legitimidade democrática.

Como resultado desse processo, a cooperação se impõe não apenas como um dever constitucional, mas também como uma exigência de maior eficiência da regulamentação jurídica a ser aprovada, de modo a otimizar as capacidades institucionais públicas e das entidades privadas no cumprimento da legislação. Dessa forma, uma maior participação democrática e a transparência e a preservação dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente estabelecidos, no advento da chamada Era Digital, podem ser implementadas.


[1] Para uma análise mais detalhada e ampla dessas questões, cf. ROBL FILHO, Ilton Norberto; MARRAFON, Marco Aurélio. Federalismo, Separação dos Poderes e Regulamentação da Inteligência Artificial no Brasil. In: SANTOS, Gustavo Ferreira. O Direito desafiado pela Inteligência Artificial. Recife: Arraes, 2024.

[2] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[3] Cf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. 3. ed. Campinas: Editora Russell, 2009.

[4] Cf. ALMEIDA, Marina Hermínia Tavares de. O Estado no Brasil contemporâneo: um passeio pela história. In: MELO, Carlos Ranulfo; SÁEZ, Manuel Alcántara (org.). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 17-37.

[5] MARRAFON, Marco Aurélio. Federalismo brasileiro: reflexões em torno da dinâmica entre autonomia e descentralização. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin. Direito constitucional brasileiro: organização do Estado e dos poderes. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, 2ª ed. p. 101-128.

[6] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução que estabelece diretrizes para o desenvolvimento, utilização e governança de soluções desenvolvidas com recursos de inteligência artificial no Poder Judiciário. Procedimento de Ato Normativo de autos nº 0000563- 47.2025.2.00.0000 na 1ª Sessão Extraordinária de 2025, realizada em 18 de fevereiro de 2025.

[7] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº. 2338/2023. Parecer nº. 1/2024 da Comissão Temporária Interna de Inteligência Artificial no Brasil. 5 de dezembro de 2024.

[8] MINISTÉRIO DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO. Proposta do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial 2024-2028. Brasília, 2024.

[9] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3367/DF. Brasília, DF, 13 abr. 2005, p. 197-396.

[10] Sobre o tema, cf. RUIZ, Gregorio. Federalismo judicial: el modelo americano. Madrid: Editorial Civitas, 1994.

[11] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Acórdão 1612007, 0704515-02.2022.8.07.0000, Relator(a): GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, 7ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 08/09/2022, publicado no DJe: 19/09/2022.

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