Incide ICMS no Sistema de Compensação de Energia Elétrica?

Desde 2012, os consumidores cativos de energia elétrica no Brasil podem gerar sua própria energia a partir de fontes renováveis ou de cogeração qualificada e fornecer o excedente para a rede da distribuidora de sua localidade.

Este sistema de geração descentralizado é denominado de Micro e Minigeração Distribuída (GD) e o controle dos excedentes e dos créditos de energia é conhecido como Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE).

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Judicialização

Observa-se um aumento considerável dos questionamentos na Justiça sobre a incidência do ICMS no SCEE. Este artigo busca ampliar o debate sobre esta tributação, visto que, até pela aridez técnica do assunto, as discussões estão sendo travadas sob um único prisma e por isso com uma visão limitada da operação.

Análise da operação e da incidência do ICMS

A tese levantada pelos defensores da não incidência do ICMS é que não há intuito comercial no uso do SCEE pelos usuários de GD pois se trata de um “empréstimo gratuito”. 

A expressão “empréstimo gratuito” consta da redação original da REN 482/12 da Aneel e foi mantida na Lei 14.300/22. Mas não custa lembrar, que estas normas regulatórias tratam dos interesses privados dos consumidores e das distribuidoras e são utilizados no Direito Tributário nos estritos termos do artigo 109 do CTN. Este é o caso do SCEE que é citado explicitamente no Convênio ICMS 16/15.

O principal motivo para a Aneel ter alcunhado a energia injetada pelo consumidor na rede da distribuidora o termo “empréstimo gratuito” é que, da mesma forma que a distribuidora cobra dos usuários quando fornece energia para suas Unidades Consumidoras (UC), esta mesma UC poderia cobrar da distribuidora a energia injetada, caso não houvesse esta cláusula contratual.

Desta forma, ao invés de cobrar monetariamente da distribuidora, esta energia é compensada no seu consumo. Veja que isso não traz só bônus, traz o ônus desta energia não poder ser revendida no Ambiente de Contratação Livre (ACL), como normalmente é feito pelos produtores independentes de energia (PIE).

No caso do ICMS, o fato gerador na GD é a “saída de mercadoria” da distribuidora (energia fornecida), já que a operação inversa (energia injetada) não é tributada. Nem mesmo com o escalonamento da cobrança da TUSD-G prevista na Lei 14.300/22 incidirá ICMS nesta parcela. O que deve ocorrer é um aumento dos percentuais das tarifas de TUSD que impactam os valores da energia faturável (consumo-injeção), mas de forma completamente alheia ao controle dos estados, ao contrário do que é normalmente divulgado na imprensa. 

Em relação à energia elétrica injetada, não há nenhum conflito interpretativo. As divergências ocorrem no seu retorno, ou melhor, na compensação desta energia. Antes de analisar a real operação com a energia elétrica, de difícil visualização, faz-se uso de um exemplo com outro produto para se compreender a operação de forma mais didática.

Imagine-se a relação comercial entre um grande distribuidor de tomate e um pequeno produtor rural. Se o distribuidor de tomate vender 100 tomates para o produtor num determinado mês e, eventualmente, este produtor venda 30 tomates para o distribuidor, como se dá a incidência do ICMS? Ocorrem dois fatos geradores, duas saídas de mercadorias, completamente independentes.

O produtor poderia fazer um contrato de mútuo e ceder gratuitamente seus 30 tomates para o distribuidor sob a promessa de ter seus 30 tomates de volta? Sim! Mas este negócio particular poderia ser usado para elidir o pagamento do ICMS? Não! Não custa lembrar o §2º do artigo 2º da LC 87/96.

Desta forma, percebe-se que o fato gerador do ICMS permanece incólume, completamente indiferente à geração distribuída, porque corresponde à saída da energia elétrica da distribuidora (energia fornecida). Além disso, basta expandir o raciocínio para outros modelos de negócios para se observar o disparate que seria, por exemplo, um atacadista fazer um contrato de empréstimo gratuito de determinada mercadoria com um varejista e o Estado ficar apenas assistindo, sem poder interferir neste negócio particular.

A grande vantagem da GD (on grid) é a utilização da rede da distribuidora como uma bateria – retirar energia da rede quando não está produzindo. Isso reduz o valor da fatura por causa da redução do consumo faturado (energia faturada será sempre menor que a fornecida e é aferida de forma independente do ICMS).

No caso de um consumidor-gerador off grid, por óbvio, não há que se falar em ICMS por não haver fornecimento de energia (saída) nem mercancia (basta imaginar um produtor rural que produz para consumo próprio, sem ICMS, e outro que produz para consumo próprio e revende o excesso, com ICMS neste excesso).

Além da redução de consumo apontada acima, os estados, por meio do Convênio ICMS 16/15, autorizaram os signatários a concederem isenção de ICMS no SCEE na energia fornecida sobre a parcela da Tarifa de Energia (TE). Ressalte-se que este modelo de isenção condicionada foi mantido na legislação do futuro IBS (artigo 28, §3º e §4º da LC 214/25). 

Nas liminares concedidas, verifica-se que a suspensão da cobrança de ICMS está ocorrendo sobre todo o SCEE, independentemente dos montantes de energia injetada ou fornecida. Além disso, não se leva em conta os demais custos da operação (uso da rede, encargos, etc.) que não deixarão de existir apenas pode se tratar de GD e que já foram debatidos exaustivamente no julgamento do Tema 986 pelo STJ (incidência do ICMS sobre a TUSD). 

Não bastasse essas questões jurídicas, a operação em si depõe contra as argumentações trazidas até o momento ao debate. Isso porque a energia elétrica tem características tão peculiares que conceitos como “empréstimos” ou “retorno” não tem nenhuma conexão com o que ocorre de fato. O que se observa, até de forma repetitiva, é que dúvidas pertinentes são infladas com retóricas sedutoras para criar teses que camuflam a realidade, como ocorreu nos processos que culminaram no julgamento do Tema 986 pelo STJ.

Àquela época, energia foi tratada como um pacote que saia de um fornecedor (geradora), era repassada para uma transportadora (transmissora) e, ao chegar à cidade de destino, era enviada ao consumidor final por um entregador local (distribuidora). Não é assim que funciona. Ela não sai do minigerador A e vai para a concessionária B e só depois vai para o consumidor C ou retorna ao minigerador A. É tudo caótico e instantâneo por características próprias do nível subatômico que regem a eletricidade. 

Portanto, a melhor forma de compreender a energia elétrica é entendê-la como algo que está à disposição do consumidor. No âmbito jurídico, isso corresponde ao termo constitucional “operação”, que a doutrina dominante atribui como sendo o núcleo material do ICMS e que está conspicuamente relacionado às operações com energia elétrica por que a “circulação” (tradição da “mercadoria”) será sempre simbólica. Até porque, excetuando os sistemas isolados, toda a energia elétrica no Brasil é interconectada no Sistema Interligado Nacional (SIN), que corresponde ao que o mercado de energia solar considera como sendo a sua bateria.

Posto isso, verifica-se que o termo “empréstimo gratuito” da norma regulatória tem para o Direito Tributário muito mais uma função quantitativa – determinar o montante de energia que pode ser compensado com a energia consumida – do que um típico contrato de mútuo (artigo 586 do CC) ou outra modalidade de empréstimo gratuito, porque não traduz, nem de longe, o emaranhado de processos e agentes que estão por trás de toda a operação com energia elétrica do SCEE.

Conclusão

Pelo exposto anteriormente, conclui-se:

  • Incide o ICMS sobre todas as componentes tarifárias da energia elétrica fornecida no Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE)
  • A exclusão do crédito tributário da Tarifa de Energia (TE) da energia fornecida só é possível após a aplicação da isenção condicionada prevista no Convênio ICMS 16/15; e
  • As distribuidoras são obrigadas a seguir as determinações do Ajuste SINIEF 02/15 e, por conta disso, a energia faturada já leva em conta as eventuais compensações previstas no SCEE.
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