Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo canadense

No último dia 2 de fevereiro, publicamos o artigo intitulado Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo indiano. Hoje, dando sequência a uma série de artigos que buscam comparar o novo sistema tributário brasileiro com o de outros países, faremos um exame comparativo do novo sistema, recentemente regulado pela LC 214/25, com o modelo canadense de tributação.

O exame parece pertinente, porque, desde o início dos debates, os defensores da atual reforma buscavam inspiração no modelo canadense, ao fundamento de que “um modelo de IVA que foi adotado em um país federativo de maneira bem sucedida e que poderia nos servir de guia é o sistema canadense”[1].

O leitor verificará que a nossa conclusão permanece inabalada: o novo sistema brasileiro distancia o país das características de uma verdadeira federação, sendo substancialmente distinto do modelo canadense, que, mesmo em um contexto de harmonização tributária, minimamente preserva a autonomia e flexibilidade de suas províncias.

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Distribuição desigual de poder no Brasil

Conforme destacamos no texto anterior, a reforma tributária promoveu mudanças profundas na estrutura de arrecadação e gestão de tributos no país, o que, aliás, também foi apontado pelo professor Fernando Facury Scaff, sob o prisma federativo, em debate recentemente realizado conosco[2].

De fato, antes da reforma, estados e municípios brasileiros detinham capacidade ativa plena sobre seus tributos, que incluía funções como arrecadação, fiscalização, julgamento administrativo e formulação de políticas tributárias regionais.

Cada ente subnacional tinha autonomia para decidir sobre questões fundamentais, como incidência do tributo, prazos de pagamento e organização de tribunais administrativos, assegurando um nível de controle adaptado às suas realidades econômicas e sociais.

Com a centralização do IBS, essas prerrogativas foram transferidas para o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS), que concentra a administração do tributo em uma estrutura colegiada. Composto por representantes de estados, municípios e da União, o CG-IBS regula os procedimentos fiscais e define normas e interpretações comuns.

Ocorre que a representação das entidades parciais de poder nesses colegiados, essenciais para estabelecer as regras comuns do IBS/CBS e equilibrar os interesses da União, dos estados e dos municípios, ocorre de forma indireta, por meio de indicações feitas pelo presidente do Comitê Gestor (artigo 320, III da LC 214/25). Essa estrutura se distancia significativamente do modelo clássico de órgão federativo, no qual os interesses de todos os entes subnacionais possuem representação direta na União.

A distribuição de poder nesses colegiados também é desigual. A União possui uma estrutura monolítica, com interesses alinhados e representação de 50% nos comitês (quatro representantes, todos indicados pelo ministro da Fazenda – artigo 320, III da LC 214/25).

Em contrapartida, os 27 estados e o Distrito Federal, com dois representantes (25%), e os mais de 5.570 municípios, também com dois representantes (25%), compartilham os demais 50%, mesmo enfrentando uma ampla diversidade de interesses regionais e locais, muitas vezes conflitantes entre si. Essa configuração impede que os entes subnacionais, mesmo somados, alcancem a maioria necessária para defender seus interesses nos comitês.

A União, por outro lado, conta com quatro representantes que atuam de forma coordenada, garantindo uma posição de vantagem nas decisões. Além disso, na ausência de consenso, a União detém a prerrogativa de decidir unilateralmente sobre a CBS.

A exigência de unanimidade para as deliberações, prevista no artigo 320, I da LC 214/25, agrava o problema. Com os interesses de estados e municípios frequentemente divergindo, a articulação para decisões eficientes torna-se improvável. Em casos de impasse, como já ocorreu historicamente no CONFAZ em relação ao ICMS, a União assume a responsabilidade de decidir sozinha sobre a CBS, consolidando seu papel hegemônico na estrutura tributária nacional.

Modelo canadense garante autonomia

O sistema tributário canadense é distinto do brasileiro, pois o modelo de harmonização foi flexível, gradual e preservou a autonomia das províncias.

Com efeito, a reforma tributária sobre o consumo no Canadá constitui um processo complexo de mais de 25 anos de debates. Em 1989, propôs-se a substituição dos tributos federais e provinciais por um imposto sobre valor agregado (IVA) amplo, não cumulativo e com uma carga tributária equivalente à vigente.

Essa iniciativa foi frustrada, uma vez que as províncias resistiram à ideia de abdicar de sua autonomia para definir tanto a forma quanto a intensidade da tributação sobre as vendas. Diante disso, na reforma de 1991, o governo federal implementou o Goods and Services Tax (GST), optando por postergar discussões sobre uma eventual harmonização com os impostos provinciais.

A província de Québec, que inicialmente demonstrou resistência ao modelo proposto, aceitou, em 1992, implementar um IVA semelhante ao GST, sob a condição negociada com a União de que, em seu território, tanto o GST quanto o Québec Sales Tax (QST) fossem legislados, administrados, arrecadados e fiscalizados pelas autoridades locais, que posteriormente transfeririam à União os valores arrecadados.

Ou seja, além da administração, Québec possui competência tributária para, por meio de sua Assembleia, legislar sobre as regras, alíquotas e especificidades do QST, embora o imposto seja estruturalmente semelhante ao GST. Essa estrutura harmônica permite que Quebec mantenha controle sobre sua política fiscal, enquanto coordena a administração dos impostos federal e provincial[3][4][5].

Em 1997, três províncias do Atlântico — Nova Scotia, New Brunswick e Newfoundland e Labrador[6] — adotaram o sistema harmonizado. Somente em 2010, Ontário, a província mais populosa e economicamente significativa, aderiu ao HST, após negociações que garantiram sua autonomia em certos aspectos.

Outras províncias, como British Columbia, Saskatchewan e Manitoba[7], optaram por manter sistemas próprios, não aderindo ao HST. Essa flexibilidade demonstra como o modelo canadense respeita as particularidades regionais e assegura uma ampla autonomia administrativa.

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Conclusão comparativa Brasil-Canadá

No modelo canadense, mesmo dentro do sistema harmonizado, as províncias mantêm influência sobre as alíquotas e a administração do imposto, garantindo um equilíbrio entre uniformidade e particularidades regionais. O governo central define o GST, mas as províncias podem decidir harmonizar-se (HST) ou manter sistemas próprios, como o Quebec Sales Tax (QST). Essa flexibilidade preserva a capacidade legislativa e administrativa subnacional, sendo uma característica de uma federação descentralizada.

No modelo brasileiro os estados e municípios não têm a opção de decidir sobre sua adesão ao IBS; são obrigados a submeter-se à lei complementar (federal) e à uniformização nacional definida pelo CG-IBS, com ampla ingerência da União nos assuntos relacionados à uniformização com a CBS em razão estrutura dos fóruns de harmonização em que há representação indireta, falta de maioria dos entes subnacionais e exigência de unanimidade para qualquer deliberação. Portanto, diferentemente do que ocorreu no Canadá, a reforma brasileira enfraqueceu a autonomia dos entes subnacionais e amesquinhou a Federação.


[1] “Um modelo de IVA que foi adotado em um país federativo de maneira bem sucedida e que poderia nos servir de guia é o sistema Canadense. A experiência do Canadá mostrou que um IVA federal pode perfeitamente funcionar em um país onde os entes federativos subnacionais têm seus próprios sistemas de tributação de bens e serviços, tal como ocorre no Brasil”. ROCHA, Melina de Souza. Reforma Tributária: a solução é o modelo canadense. JOTA, 03 jul. 2017. Disponível em: < https://www.jota.info/stf/supra/reforma-tributaria-a-solucao-e-o-modelo-canadense>. Vide também: AGÊNCIA SENADO. Relator diz que reforma tributária deve desonerar consumo e especialistas apontam vantagens do IVA. Agência Senado, 16 ago. 2021; OBSERVATÓRIO DA REFORMA TRIBUTÁRIA – FIESP; IDP. Boletim do Observatório da Reforma Tributária. São Paulo, Jun/Jul 2024.

[2] SCAFF, Fernando Facury. O federalismo e o mito do barco de Teseu após a reforma tributária. 14 de janeiro de 2025. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2025-jan-14/o-federalismo-e-o-mito-do-barco-de-teseu-apos-da-reforma-tributaria/>; SOUZA e SZELBRACIKOWSKI,  Reforma tributária e federação, um diálogo com Fernando Scaff. 23 de janeiro de 2025. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2025-jan-23/reforma-tributaria-e-federacao-um-dialogo-com-fernando-scaff/ >; SCAFF, A federação da União e suas autarquias: diálogo com Hamilton Dias de Souza. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jan-28/a-federacao-da-uniao-e-suas-autarquias-dialogo-com-hamilton-dias-de-souza/.

[3] SOUZA, Hamilton Dias; CARRAZZA, Roque Antonio & ÁVILA, Humberto. A reforma tributária de que o Brasil precisa. In: Polifonia – Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, n. 3., p. 284-305.

[4] BOADWAY, Robin & WATTS, Ronald. Fiscal federalism in Canada. Queen’s University: Ontario, júlio/2000. PP. 82-85.  

[5] BIRD, Richard. The GST/HST: creating an integrated sales tax in a federal country. Georgia State University: Atlanta, abril/2013. PP. 2-14.  

[6] Canada. Excise tax act, parte IX e item 277.1 e ss..  

[7] Ernst & Young. Worldwide VAT, GST and Sales Tax Guide, 2019. Disponível em: https://www.ey.com/Publication/vwLUAssets/ey-2019-Worldwide-VAT-GST-and-Sales-Tax-Guide/$FILE/ey-2019-Worldwide-VAT-GST-and-Sales-Tax-Guide.PDF.  

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