Ações judiciais climáticas

Guerra ou paz, o mundo está preocupado em sobreviver. 

O ilustre Stéphane Doumbé-Billé, nascido na República dos Camarões (África Central), era professor de Direito Internacional Ambiental da Universidade de Lyon 3, na França. Foi um dos maiores negociadores da Convenção Internacional de Combate à Desertificação e Erradicação da Pobreza (UNCCD). Lembro da última vez que nos vimos no campus da universidade e ele pronunciou “Paz, Flavia, Paz!”. 

Esta incumbência me caiu como missão. Com o passar dos anos, a percepção por conflitos ambientais, sem dúvida, aumentou. Mas não o suficiente, pois boa parte deles não transparecem para a sociedade. 

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Cheguei a essa conclusão recentemente, ao preparar uma palestra que apresentei na Universidade Pompeu Fabra, na Espanha, na conferência La crisis climática ante los tribunales, em Barcelona, em 30/01/25.

Dos estudiosos participantes, afora os próprios espanhóis, a maioria provinha de países sul-americanos (Peru, Colômbia, Costa Rica e Equador). Todos foram unânimes em demonstrar o aumento de contenciosos climáticos. A maioria falou sobre demandas que chegaram ao Poder Judiciário em suas jurisdições, mas também perante a Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

Ante à evidência da crise climática, as pessoas — tanto as causadoras quanto as sujeitas aos efeitos adversos da mudança do clima — ainda não têm conhecimento exato da relação entre atos (omissivos ou comissivos) e suas consequências perigosas para o meio ambiente. Com isso, o volume de pedidos (individuais ou coletivos) para as cortes decidirem sobre questão decorrente de efeito climático está abaixo do que a ordem jurídica já autoriza.

Na minha fala La jurisprudencia brasilera sobre causas climáticas: cambios y perspectivas, escolhi quatro casos brasileiros, que analisei checando a ênfase na área climática. Observei a autoria (pessoa física ou jurídica; em representação a interesses particulares, movimentos, instituições); a causa de pedir (alegação de violação) remota ou próxima, com relação à repercussão ou caráter climático (principal ou tangencial).

Do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação Cível 1068508-84.2021.8.26.0053, no âmbito de Ação Popular, ressaltei a autoria ter sido de cidadãs representantes de dois movimentos globais que defendem ações imediatas para contenção das mudanças do clima por parte de governantes, na figura de Famílias pelo Clima e Fridays for Future.

Do pleito por exigência de contrapartida ambiental, para redução de emissões de GEE, nos atos administrativos que instituíram política pública criada a fim de incentivar fabricantes de veículos automotores no estado de São Paulo (a qual estaria contradizendo a política climática), assinalei o enquadramento da ação como relativa a matéria ambiental atribuída às Câmaras Especializadas (de Meio Ambiente). O Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao agravo, e o processo foi classificado como sendo lide relativa a poluição.

Do Agravo Interno em Suspensão de Liminar e de Sentença 3050, acerca de Ação Civil Pública interposta no Rio Grande do Sul, acentuei a percepção de autonomia técnica da matéria, por parte do STJ referindo-se aos oceanos e aos recursos naturais na atividade da pesca como merecedores de proteção preventiva, precautória, efetiva e urgente, “sobretudo em período de incertezas de toda ordem provocadas pela crise da biodiversidade e pela crise das mudanças climáticas”, segundo o julgamento proferido em 2023. Levantou-se o fator climático, mesmo que tangencialmente.

A suspensão foi concedida, o princípio in dubio pro natura foi utilizado e ficou explicitado que a análise do mérito (de cunho técnico), pelo tribunal de apelação e pelo próprio STJ, se daria por instâncias portadoras de condições de, com abrangência, debruçar-se sobre as múltiplas questões deduzidas na ação civil pública (AgInt na SLS 3050 / RS).

Do Mandado de Segurança 28123/DF, de número 2021/0328548-8, denegado, trouxe o caso da empresa-autora, atuante do ramo de óleo e gás, que não foi habilitada em processo licitatório, por inobservância à exigência do certame, de apresentação de um plano de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE).

A empresa argumentou que o custo dos compromissos ambientais impactaria a modicidade tarifária. O pleito não foi aceito. O curioso, em análise ampla, está no fato daquela licitação dizer respeito a instalação de termoelétrica, portanto, de fonte energética emissora de GEE dependente de combustível fóssil. Perder a ação pode ter sido um ganho para o meio ambiente, na visão coletiva (assumir compromissos ambientais é legítimo); por outro lado, aceitar termoelétrica desde que sejam assinados compromissos ambientais pode ser um trade off bem ruim para o meio ambiente.

Melhor mesmo seria poder viver sem essa fonte energética, algo possível no território brasileiro que felizmente possui matriz hidrelétrica, rede única de transmissão e diversas outras fontes renováveis (solar, eólica, biomassa). Nesse sentido, a decisão para o indivíduo (empresa) do ramo das termelétricas pode ter sido um ganho subliminar para si e para outras empresas que também se prestam a servir emitindo mais do que as outras formas de geração de eletricidade não movidas a combustíveis fósseis. Como se vê, uma decisão envolvendo o clima, mesmo sendo de caráter individual, pode provocar consequências coletivas para a temperatura global. Tanto para o bem, quanto para o mal. 

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 708, no Supremo Tribunal Federal, adveio de impulso político; e, assim, resultou em uma decisão política favorável à agenda climática. Nesse caso, funcionou muito mais como uma resposta da Justiça a um movimento, em atenção à sinalização da seriedade com que os recursos financeiros e humanos precisam se referenciar nas preocupações de ordem climática. Restou asentado deverem ser rechaçadas quaisquer tentativas de deixar a questão da mudança do clima como secundária no âmbito de uma atuação do Poder Executivo.

Dois pesos, duas medidas. O que mais chama à atenção nesses casos é a diversidade de aspectos da questão da mudança do clima que a reivindicação de respeito a direitos pode trazer dentro de uma ação judicial. Nestes termos, decidiu-se “O Poder Executivo tem o dever constitucional de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do Fundo Clima, para fins de mitigação das mudanças climáticas, estando vedado seu contingenciamento, em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente (CF, art. 225), de direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (CF, art. 5º, par. 2º), bem como do princípio constitucional da separação dos poderes (CF, art. 2º c/c art. 9º, par. 2º, LRF)” (Órgão julgador: Tribunal Pleno).

Ao final, quando da classificação do caso, o órgão julgador enquadrou o mérito nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de números 3 (Saúde e Bem-estar); 13 (Ação contra a Mudança Global do Clima); 15 (Vida Terrestre); 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes); 17 (Parcerias e Meios de Implementação).

Nesse âmbito, detectamos como saudável a evidência de uma parcialidade climática. Assim como o princípio do in dubio pro ambiente. Nos quatro casos, na certeza (da mudança do clima), pró-sobrevivência — da pessoa humana, da humanidade. 

Verificou-se que o Judiciário está em tese disposto a “aprender” sobre a materialidade da mudança do clima.

Claro que a prevenção vale sempre mais do que o litígio; que as políticas de planejamento e preventiva valem mais e implementá-las são as medidas mais econômicas. Seria muito melhor simplesmente cumprir as políticas públicas nacionais e os tratados internacionais, sem pressão. 

Estamos de acordo que o ideal mesmo seria haver paz; sem a necessidade de perpetuação de conflitos climáticos nas agendas dos poderes. 

Mas a verdade é que um número indeterminado de pessoas já estão com suas vidas e economias perdidas por força dos efeitos adversos da mudança do clima já causada. Pergunto-me quem lhes defenderá, a todas elas, para que vivam mais e para que sofram menos? Não penso que deixar todas as necessidades de interesses difusos ao encargo do Ministério Público ou das organizações não governamentais vá ser o suficiente — dados o aumento da temperatura média global e a intensidade dos eventos extremos, recorrentes.

Seguimos, infelizmente, hesitantes em reclamar por danos climáticos. Estes, contudo, são passíveis de ser medidos e de serem efetivamente provados. 

Não se trata de um alarde; muito menos de instigar litigância perante as cortes. Mas os tribunais, sem dúvida alguma, têm um papel importante a desempenhar nos litígios dessa natureza.  

Não se está aqui, de jeito nenhum, a incitar conflito. Ao contrário, falamos com vistas a resolvê-los. Preferencialmente, pelos meios de soluções alternativas de controvérsias (como uso da arbitragem). Trata-se de lidar com a natureza das coisas como elas são, isto é, de tomar como justo o alvoroço da sociedade em atribuir as responsabilidades aos causadores das ameaças e dos danos relacionados ao aquecimento global. 

Se apenas tivéssemos três opções: (i) inércia em se dar resposta a medidas radicais para não se emitir mais; (ii) o fomento a litígios; ou (iii) o empenho de um movimento por justiça climática; se fosse para escolher, eu escolheria a terceira — e brigaria por ela. Essa é a lógica do presente, segundo a qual temos a obrigação de alcançar a estabilização dos níveis de concentração de GEE, de amortizar passivos ambientais, bem como o dever de adotar uma visão de longo prazo ante a essas questões globais e as oportunidades de se respaldar em produtos paliativos, embora mais verdes, como no comércio de créditos de carbono (e similares conforme o marco legal brasileiro atualizado) ou na celebração de contratos de seguros de riscos climáticos ou similares.

Sob a lógica do futuro, porém, temos mais opções. A porta de entrada aos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) pode encontrar uma saída simples, que consiste na demonstração da materialidade da mudança do clima mediante a contabilização proporcionada pela utilização da métrica universal do clima, que é a métrica da temperatura média global, como forma de avaliação quantitativa de cada política climática pública, de medição da eficácia do processo judicial e das contribuições dos particulares para resolver o problema.

Segundo ela, cada emissão implica um montante de mudança do clima e essa por sua vez um outro montante de impactos negativos. Comprometimentos espontâneos podem se constituir em cláusulas de contratos de legados intergeracionais (tendo a representação das gerações mais novas como uma das partes da relação jurídica bilateral), homologáveis em juízo e executáveis se não cumpridos.

Esses contratos intergeracionais podem ser de grande ajuda para os tribunais conseguirem fazer valer o dever de cada um de nós proporcionarmos um mundo melhor (com menos mudança do clima) para as futuras gerações. Aliás, outro ponto de nítido consenso, nas discussões na Espanha, foi a abordagem intergeracional. 

Pela paz.

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