Reforma tributária precisa ser acompanhada de reforma do Judiciário

Após ótima reflexão publicada aqui no JOTA por Sérgio Grama Lima e Bruno Romano em texto intitulado “Reforma tributária da simplificação vs. caos no contencioso fiscal”, pareceu um bom momento para sugerir outra ponderação, talvez um pouco mais arrojada, sobre as soluções para evitar a insegurança jurídica que, após as definições iniciais sobre a reforma tributária, se tornou quase certa diante da nova divisão de competências tributárias.

Em resumo, como muito bem apontado no texto anterior, a (bem-vinda) implementação dos tributos CBS e IBS em substituição às diversas imposições tributárias sobre receita e circulação de bens (PIS, Cofins, ICMS, ISS, IPI, etc.) fará surgir um problema óbvio e que não vem sendo tratado com a devida importância, especialmente em um país em que, infelizmente, a litigiosidade é extremamente presente, seja: como funcionará a jurisprudência sobre esses tributos, considerando que incidem sobre um mesmo fato gerador, porém serão interpretados por tribunais totalmente distintos e autônomos?

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Será que a simplificação pretendida pela reforma tributária não poderá ser comprometida em razão da existência de entendimentos diversos entre os vinte e seis tribunais estaduais sobre o conceito de bens e serviços para fins de incidência do IBS, enquanto as seis cortes federais poderão ter uma interpretação totalmente distinta sobre a definição dessa mesma base de incidência?

Até se poderia concluir que a divergência de entendimentos não seria um problema real diante da existência do STJ e do STF como “pacificadores” da jurisprudência pátria. Porém, enxergar a solução nos Tribunais Superiores, apesar de privilegiar o pragmatismo, ignora outros fatores que, no dia a dia, poderão minar a reforma tributária a partir de situações que implicarão violações à segurança jurídica, à isonomia e à livre concorrência.

Afinal, como sabemos, é cada vez maior o movimento dos Tribunais Superiores para limitar os recursos que efetivamente serão ali julgados, o que possibilitará o trânsito em julgado de decisões com soluções absolutamente conflitantes. Além disso, as diferentes tramitações processuais em competências diversas farão com que, enquanto alguns contribuintes tenham que aguardar anos para verem suas causas julgadas– o que lhes obriga a arcar com custos de garantias e advogados, por exemplo –, outros terão causas que versem exatamente sobre o mesmo assunto julgadas de forma mais célere.

Por isso, a reforma tributária não poderia deixar de ser acompanhada por uma reforma constitucional também do Poder Judiciário, de modo a garantir que a simplificação das relações tributárias – que certamente ocorrerá com as normas já aprovadas – não seja ameaçada em razão de problemas que podem ser evitados, especialmente se forem encarados tempestivamente e com a coragem exigida para tanto.

A solução, então, passa por olhar para o lado e enxergar o exemplo mais óbvio e bem-sucedido de reforma do Poder Judiciário visando à pacificação nacional de relações jurídicas de mesma natureza, qual seja, a criação da Justiça do Trabalho.

Atualmente, seria quase impossível imaginar o Poder Judiciário sem a existência da Justiça do Trabalho. Imagine-se, por exemplo, causas trabalhistas sendo julgadas por juízes que também possuem competência para julgar relações cíveis e criminais e, posteriormente, revisadas em segunda instância por órgãos colegiados que decidissem sobre matéria administrativa e tributária.

Essa, porém, já foi uma realidade no Brasil, vez que, enquanto a “extinção” do trabalho escravo ocorreu em 1888, fazendo crescer as relações de emprego teoricamente bilaterais, a Justiça do Trabalho foi instituída formalmente apenas em 1934, com a Assembleia Constituinte convocada por Getúlio Vargas. Nesses quase 50 anos, as relações de trabalho eram tratadas individualmente, sem que houvesse um órgão nacional para garantir a estabilidade destes vínculos jurídicos.

E, como nos conta o site do Tribunal Superior do Trabalho, a instituição da Justiça do Trabalho exigiu coragem por parte daqueles que defendiam a ideia, especialmente em razão de debates acalorados sobre tal possibilidade naquela época, destacando-se a ocorrida entre Waldemar Ferreira (deputado liberal e advogado que acreditava que as relações trabalhistas correspondiam a relações cíveis e poderiam, por isso, ser resolvidas como as demais causas dessa natureza) e Oliveira Viana (consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e defensor da existência de um órgão autônomo visando à proteção dos direitos trabalhistas).

Prevaleceu, como sabemos, o lado que lutou pela autonomia do Direito do Trabalho e, com isso, possibilitou a consolidação de importantes conquistas dos trabalhadores, as quais talvez não ganhassem o devido palco caso tivessem ainda que dividir espaço com questões de natureza cível, criminal, tributária, etc.

A reforma tributária, com isso, faz surgir uma oportunidade única de se pensar o mesmo para o Direito Tributário – a criação da Justiça Tributária, privilegiando, assim, a autonomia e complexidade do Direito Tributário, o que certamente fará consolidar importantes conquistas do contribuinte e permitirá uma maior segurança jurídica sobre as relações entre particulares e fisco.

É claro que tal reforma – em nível constitucional – é extremamente complexa, já que demandaria uma comunicação entre os orçamentos dos Poderes Judiciários estaduais, distrital e federal, além de, em um primeiro momento, exigir o deslocamento de magistrados que atuam nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais para os novos órgãos das cortes tributárias.

Porém, se ao legislador brasileiro já foi possível alterar algo que, até então, era considerado impossível (sejam, as relações tributárias diante do bem definido e enrijecido federalismo brasileiro), é plenamente possível se imaginar que a reforma constitucional do Poder Judiciário para criação da Justiça Tributária também seria viável, ainda mais no contexto de que, para que o primeiro movimento realmente se mostre certeiro, o segundo é necessário.

Se no âmbito do Brasil podemos tomar como exemplo a bem-sucedida Justiça do Trabalho, em âmbito internacional existem alguns casos que demonstram que a criação da Justiça Tributária não seria uma “jabuticaba” (lembrando aqui o excelente texto “O mito da Jabuticaba: a Justiça do Trabalho no mundo”, publicado por Rodrigo de Lacerda Carelli também neste JOTA.

Logo nos nossos vizinhos estadounidenses, podemos apontar a existência da United States Tax Court, tribunal vinculado ao Poder Judiciário norte-americano instituído com o objetivo de, em livre tradução, “fornecer um fórum nacional para a resolução rápida de disputas entre os contribuintes e a Receita Federal”[1].

Um pouco mais ao norte, outro ótimo exemplo: a Tax Court of Canada, criada em 1983 e que atua no mesmo nível hierárquico da Federal Court (Justiça Federal), das Martial Courts (Justiça Militar) e das Provincial Superior Courts (correspondente a uma Justiça Estadual), estando, ainda, submetida à Federal Court of Appeals (equivalente a um TRF em solo brasileiro) e, ao final, à Supreme Court of Canada (Supremo Tribunal Federal).

O site da Tax Court of Canada apresenta um ótimo infográfico acerca da jurisdição naquele país e que explica a forma na qual a Justiça Tributária está incluída no sistema judiciário canadense.

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Por fim, saindo do território americano, podemos citar um dos países nos quais o Direito brasileiro mais bebe da fonte: a Alemanha, com o seu Bundesfinanzhof – ou, na língua inglesa, Supreme Court of the Federation for Taxes and Customs, que tem como missão, em tradução-livre, “interpretar a legislação fiscal no contexto da concessão de proteção jurídica e esclarecer termos jurídicos indefinidos[2].

Ainda de acordo com o site do tribunal alemão, a corte é a “instância suprema da jurisdição fiscal”, “um dos cinco Supremos Tribunais da Alemanha” e o “tribunal de última instância para os litígios em matéria de direito fiscal e aduaneiro, mas não para os processos penais conexos, que são da competência dos tribunais criminais gerais”.

Portanto, apesar de parecer uma inovação demasiadamente profunda no sistema judiciário brasileiro, fato é que exemplos mundiais permitem o estudo acerca da efetividade da criação de cortes judiciais especializadas em Direito Tributário, o que já se mostrava necessário em território brasileiro em razão das complexas relações entre fisco e contribuintes, mas que, agora, nos parece indispensável, já que, apenas assim, estarão asseguradas as conquistas da tão sonhada reforma tributária.


[1] No original: provide a national forum for the expeditious resolution of disputes between taxpayers and the Internal Revenue Service (https://www.ustaxcourt.gov/mission.html)

[2] No original: ist es, im Rahmen der Rechtsschutzgewährung die Steuergesetze auszulegen und dabei unbestimmte Rechtsbegriffe auszufüllen (https://www.bundesfinanzhof.de/de/gericht/aufgaben/oberster-gerichtshof-des-bundes-fuer-steuern-und-zoelle/) .

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