Estratégias para um diálogo produtivo entre organizações de pacientes e parlamentares

A relação entre as organizações de pacientes e o Legislativo federal é, há muito, um desafio marcado por barreiras institucionais e burocráticas. Em um cenário em que demandas de saúde específicas – como as relacionadas ao autismo sindrômico – se misturam a um contexto de avanços científicos e restrições orçamentárias, a experiência de Ana Karine Bittencourt[1], presidente do Instituto DEAF1[2], sugere caminhos para tornar esse diálogo mais dinâmico e construtivo.

“Eu sou mãe atípica. Tenho dois filhos – um filho neurotípico e um filho com autismo, epilepsia não controlada, 8 anos e uma mutação genética rara no gene DEAF1. Depois que descobrimos isso aos 9 anos de idade – hoje ele tem 16 – eu encontrei outras mães e, juntas, acabamos fundando um instituto de pesquisa, porque essa é a grande lacuna que falta para eles e que traria o maior benefício para o dia a dia e para a saúde. Considerando que se trata de autismo sindrômico – ou seja, autismo associado a uma síndrome rara –, há questões de saúde muito profundas, e sabemos que as discussões atuais não respondem às necessidades desses pacientes. Por isso, buscamos na ciência um aprofundamento biológico – seja na área biomédica ou medicinal – para encontrar soluções. Ainda estamos evoluindo nesse apoio, tentando, sim, fomentar, discutir e incentivar a pesquisa científica nessa área”, conclui a entrevistada.

Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor

A importância da organização e da base de dados

Um dos primeiros apontamentos apresentados foi a necessidade de que as organizações se estruturarem internamente, especialmente no que diz respeito à coleta e organização dos dados. Conhecer a comunidade – quantificar o número de pacientes, identificar suas principais demandas e elaborar perfis detalhados – é fundamental para embasar qualquer diálogo com o Poder Público. Essa organização permite que as associações apresentem argumentos consistentes e tangíveis aos parlamentares.

“Acho que é essencial organizar a casa primeiro. Você deve chegar ao parlamento conhecendo bem os dados da sua comunidade – tanto internamente quanto organizados em uma planilha – sabendo quantas pessoas a compõem, quais são as principais demandas e qual é o perfil do grupo. Às vezes, uma consultoria ajuda bastante, se ela puder nos aconselhar para enxergarmos o potencial do poder social e a estrutura já estabelecida sociologicamente, bem como o papel de cada um”.

Fomento à estruturação das associações e ao empreendedorismo social

Outro aspecto crucial apontado por Ana Bittencourt é a necessidade de fortalecer a estrutura interna das associações para evitar que a manutenção da causa recaia exclusivamente sobre esforços gratuitos e voluntários. Conforme ela expõe:

“Infelizmente, muitas vezes fazemos isso de forma gratuita e voluntária, pois não é algo que se consegue sem uma decisão muito forte de manter a causa. E, quando a causa é mantida sem o suporte do poder público, você acaba tendo que estruturar tudo sozinho, o que não é ideal. Portanto, do ponto de vista público e político, para ampliar esse movimento social, seria muito bom fomentar a estrutura das associações – isto inclui assessoria jurídica, gestão de redes sociais, gestão contábil, gestão de recursos humanos e um planejamento estratégico claro, que ajude a definir o que se quer e a levar a causa adiante. Muitas vezes, sobrecarregar o presidente com cursos e tarefas não funciona. Na verdade, é preciso fomentar uma forma de financiar o empreendedorismo público – ou melhor, o empreendedorismo social. Você pode ter uma pessoa disposta a fazer tudo pela causa, mas sem o suporte de uma secretária, de um computador, de um HD, de um software ou de uma equipe de comunicação, ela precisará ser um hub em pessoa para suportar o empreendedorismo social. E, nesse sentido, é fundamental fomentar também o empreendimento social na ciência, pois não podemos deixar a ciência de lado – ela move o país, a economia e nossa saúde, além de oferecer soluções reais. A família e a sociedade também precisam ser fomentadas nesse ambiente”.

Estabelecendo canais de comunicação diretos e eficientes

Outra estratégia crucial é a criação de canais de comunicação diretos entre as associações e os gabinetes parlamentares. A experiência relatada por Ana Bittencourt evidencia que a formalidade não precisa ser um entrave para a efetividade das interações. Em vez disso, a manutenção de um contato aberto – seja por meio de telefone, WhatsApp ou outras ferramentas – pode ser suficiente para iniciar e consolidar um relacionamento. “Acho que um canal aberto já seria suficiente para começar. Não é necessário que o assessor seja formalmente destacado; um contato por telefone ou WhatsApp já serve.”

Essa abordagem menos burocrática e mais direta propicia uma interlocução contínua, na qual o parlamentar pode conhecer as demandas em tempo real, enquanto as associações se sentem mais acolhidas e legitimadas para apresentar seus argumentos. Para ambos os lados, esse modelo reduz o desgaste e facilita o acompanhamento das ações propostas.

Apropriação da pauta e o papel do parlamentar

O diálogo não deve se limitar a reuniões isoladas ou a uma comunicação pontual. É imprescindível que o parlamentar se aproprie da pauta apresentada pelas organizações, promovendo um envolvimento que vá além da mera menção em pronunciamentos ou postagens. A participação ativa – por meio de reuniões periódicas, visitas à comunidade e encontros – é determinante para transformar projetos em ações efetivas.

Nesse sentido, a atuação do Legislativo precisa ser de mão dupla. Por um lado, cabe à associação estruturar e apresentar suas demandas com clareza e embasamento; por outro, o parlamentar deve demonstrar interesse genuíno, alocando tempo e recursos para viabilizar as iniciativas apresentadas. Essa sinergia pode resultar em encaminhamentos que garantam, por exemplo, o acesso a emendas públicas ou a criação de mecanismos de apoio que fortaleçam o empreendedorismo social na área da saúde e da pesquisa científica.

“É importante ter audiências públicas, sessões solenes, sessões comemorativas – mas isso não basta. A comunicação deve refletir as ações concretas do parlamentar e não o contrário. Se ele comunica que defende uma causa, mas na prática não age, a comunicação perde sua coerência. Se ele realmente abraçou a causa, não basta apenas postar; a comunicação precisa ajudar a resolver algum problema da comunidade. Caso contrário, continuaremos sendo utilizados apenas como instrumento eleitoral, em vez de promover uma ação genuína. Se a comunicação e a ação não caminharem juntas, tornam-se incoerentes. Muitas vezes, as associações e a sociedade civil são convocadas a aparecer em nome da causa, mas também devem promover ações concretas para que a situação evolua”, alerta.

Fortalecimento da interlocução com a comunidade científica e familiar

Outro aspecto central é a integração entre a comunidade científica, as associações de pacientes e os próprios familiares. As associações, tradicionalmente voltadas para a assistência e defesa de direitos, precisam ampliar sua atuação para incorporar a dimensão científica, colaborando na elaboração e acompanhamento de projetos de pesquisa.

Esse movimento gera um ciclo virtuoso: ao unir o conhecimento técnico-científico com a realidade vivida pelas famílias, cria-se uma narrativa mais robusta e convincente para a aprovação de políticas públicas. Além disso, a valorização das diversas vozes – especialmente a dos cuidadores, que muitas vezes representam os interesses dos pacientes não verbais – reforça a legitimidade das reivindicações apresentadas.

A articulação entre esses atores possibilita que o Legislativo tenha acesso a dados e experiências que não apenas revelam as dificuldades enfrentadas, mas também apontam caminhos para inovações terapêuticas e melhorias no sistema de saúde. Dessa forma, o diálogo deixa de ser um exercício pontual para se transformar em uma parceria estratégica em prol do avanço científico e social.

“Às vezes, me incomoda quando as pessoas falam sobre autismo sem conhecer a realidade. É importante que elas saibam que existem três níveis de suporte. Em termos populares, há autistas leves e autistas severos, e cada grupo necessita de tratamentos diferentes. Ambos são pessoas com autismo, mas não se deve resumir uma pessoa ao seu autismo – o autismo faz parte dela. Contudo, os casos mais graves, que costumo defender, muitas vezes não têm a voz que precisam, e as mães e os cuidadores acabam sendo a voz desses indivíduos. Por isso, é preciso escutar essas pessoas também”, afirma Bittencourt.

“Não estou dizendo que os autistas verbais ou com comunicação alternativa não devam ser ouvidos, mas as mães não podem ser excluídas, pois, ao excluí-las, elimina-se a possibilidade de participação e respeito a uma parcela importante da comunidade. Além disso, essas pessoas têm impacto, já que mães, pais, cuidadores, profissionais e professores também votam”, conclui.


[1] Para conferir a entrevista completa, visite: https://open.spotify.com/episode/2r16HlWQfCVqh4fmFtwoqt?si=dLfZjaPEQ06qG7blqaoHMg

[2] Instituto DEAF1: https://deaf1.com.br/ 

Adicionar aos favoritos o Link permanente.