Perda de legitimidade da ordem constitucional afasta Bolsonaro da prisão

Aconteceu. Finalmente a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pela tentativa de golpe de Estado. Ele teria sido o líder da organização criminosa cujas movimentações culminaram no 8 de janeiro de 2023. Porém, o líder-mor da extrema direita nacional será julgado e, caso condenado, cumprirá pena?

Nos jornais do último domingo e desta segunda-feira, 10 de março, notas de colunistas – entre os quais o experiente Elio Gaspari – sugerem que Bolsonaro poderá pedir asilo político para alguma embaixada de país governado por líder a ele simpático. É o caso da Argentina de Javier Milei, conforme apontado por Gaspari. A conjuntura atual, porém, favorece o ex-presidente a ficar no Brasil sem maiores temores de perder a liberdade encarcerado numa instalação militar, com regalias como ex-chefe de Estado e integrante da reserva do Exército brasileiro.

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A despeito de sempre ter manifestado pretensões golpistas, Bolsonaro é amplamente favorecido pelo zeitgeist atual. Num país em que reiteradas pesquisas demonstram que a população critica a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), qual será a legitimidade de uma eventual sentença aplicada pela corte contra o ex-presidente e demais membros do movimento que teria inaugurado uma nova era de autoritarismo no país?

Tudo que o bolsonarismo quer é uma narrativa de vitimismo e, por mais que haja provas de que os manifestantes que acamparam em frente aos quartéis e militares próximos ao então presidente cometeram crimes, tende a prevalecer entre a bolha à direita da política nacional um sentimento de injustiça.

Afinal, perguntam-se os direitistas — e não apenas aqueles extremistas por convicção — ao se lembrarem de fatos relevantes dos últimos dez anos da política nacional: se o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o PT foram de certo modo perdoados pelos escândalos de corrupção, por que o mesmo não pode ocorrer com aqueles situados do outro lado do espectro político?

A resposta é simples para quem tem mínimo letramento sobre o Estado democrático de Direito: quaisquer crimes contra a democracia e, portanto, a ordem constitucional são muito mais graves que quaisquer outros. Ademais, Lula teve seus processos anulados pelo mesmo STF que manteve sua prisão em 2018, pressionado pelo então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que havia aderido ao bolsonarismo.

Bolsonaristas podem argumentar que, agora, o objetivo é o mesmo do golpe desferido por Villas Bôas em nome do establishment que queria se livrar de Lula e do PT em 2018. Com Bolsonaro fora da disputa, o atual presidente teria o caminho facilitado para a reeleição. Nada mais equivocado: a condenação de Bolsonaro et caterva permitiria o retorno à normalidade democrática-constitucional dentro dos marcos legais.

Todavia, falta combinar com outras lideranças da direita. Nenhuma delas veio a público para dizer que jamais anistiariam Bolsonaro caso venham a ocupar o Palácio do Planalto a partir de 2027, num cenário em que o ex-presidente já estivesse condenado. Não o farão porque a lealdade à ordem constitucional é secundária diante da necessidade de contar com os votos de bolsonaristas e da direita em geral para conquistar o poder.

Voltamos, portanto, à questão da legitimidade: são inúmeros os sinais de que parcela significativa do país não mais vê a ordem constitucional como legítima. Ela seria parte fulcral de um sistema que quer manter a direita longe do poder em nome de uma suposta continuidade da corrupção do erário e valores sociais. Eis a essência do populismo autoritário: libertar a população da tirania do Estado sem contar que, em seguida, dobra-se a aposta no estado de exceção.

A salvação de Bolsonaro não passa apenas pelo descrédito doméstico com o sistema. As tendências internacionais antiliberalismo também importam. Não antevejo Donald Trump beneficiando diretamente seu homólogo tropical, mas chama a atenção a ação de uma empresa do presidente americano contra o ministro do STF Alexandre de Moraes numa corte dos EUA por suposta violação do direito à liberdade de expressão com a suspensão pela Justiça brasileira do funcionamento da plataforma Rumble em território nacional. A ação foi rejeitada.

No entanto, outras formas de lawfare — ou seja, instrumentalização do direito para fins de política externa — hão de ser empregadas na tentativa de empoderar a extrema direita em países historicamente próximos a Washington e sob crescente influência chinesa, como é o caso do Brasil.

Tal como a democracia brasileira foi salva de um golpe por conta da ação decisiva do governo democrata de Joe Biden em rechaçar qualquer apoio a uma aventura golpista, Bolsonaro e a extrema direita empoderam-se com Trump no poder. No fim, para o bem e para o mal, dependemos mais de Washington do que gostamos de admitir.

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