O STF e a denúncia contra a cúpula da tentativa de golpe

Nos últimos dias, ganhou destaque a denúncia apresentada pela PGR ao STF contra a cúpula da articulação da tentativa de golpe de Estado no Brasil entre 2021 e 2023, envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e integrantes das Forças Armadas.

A denúncia tem peso histórico significativo, mas tem levantado questões sobre a condução do caso pela relatoria atual e sabemos que decisões judiciais em casos politicamente sensíveis são sempre debatidas no futuro, conforme a conjuntura institucional muda.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

A nossa história recente comprova isso: em 2014, poucos imaginavam que dez anos depois a Lava Jato estaria quase inteiramente anulada, mas a revisão ocorreu justamente após variações políticas e, no fundamento jurídico, em razão da atuação questionável do juiz do caso.

Alguns dos críticos daquela operação, não todos, mantêm a coerência e criticam eventuais exageros verificados hoje[1], inclusive para que o resultado desta histórica ação penal (seja ele qual for) não tenha o mesmo destino da Lava Jato.

De fato, é inegável que a condução do inquérito do golpe tem repetidamente dobrado a aposta e despertado diversos questionamentos, no mínimo razoáveis. Um exemplo disso é a possibilidade de que o julgamento de uma ação de relevância histórica para o país — e, possivelmente, para o mundo — ocorra restrito à 1ª Turma do STF, afastando-o do crivo do plenário da corte[2].

Há, no entanto, alternativas para conferir maior credibilidade ao julgamento, como a aplicação do artigo 3º-C do CPP, que prevê a separação entre o juiz das garantias e o magistrado responsável pela ação penal. O STF já declarou a constitucionalidade desse artigo na ADI 6.298, fixando que a atuação do juiz das garantias se encerra com o oferecimento da denúncia. Aplicando-se esse entendimento ao caso, a ação penal poderia ser redistribuída, mitigando críticas sobre a condução do inquérito e reforçando a imparcialidade do resultado do processo.

Não se ignora que o STF decidiu que o juiz das garantias não se aplica aos processos de competência originária dos Tribunais Superiores, por ter acolhido o argumento da Ajufe e da AMB de que “a lei não previu a criação do ‘Juiz das Garantias’ no âmbito dos Tribunais, uma vez que o rito dos inquéritos e das ações penais está disciplinado, para o STJ e STF, nos artigos 1º a 5 da Lei 8.038/90”.

Na ADI 6.298, o ministro Dias Toffoli, em decisão liminar, acolheu esse argumento e excluiu a aplicação do juiz das garantias no STF. No julgamento de mérito, reafirmou a posição, destacando que o artigo 2º da Lei 8.038 estabelece o relator como juiz da instrução e que essa norma não foi alterada pela Lei 13.964. A tese foi acolhida sem maiores aprofundamentos por outros ministros.

Assim, o STF entendeu que o juiz das garantias “não se aplica aos processos de competência originária dos tribunais“, sob o argumento de que a Lei 8.038/90, por ser mais específica, afastaria a aplicação do artigo 3º-B do CPP.

Ocorre, porém, que esse é um argumento equivocado, pois não há conflito normativo que justifique a prevalência da Lei 8.038/90 com base no critério da especialidade.

Primeiro, porque em uma avaliação sistêmica e estrutural, se vê que o artigo 3º-C, conforme sua própria numeração, está no Livro I, “Do Processo em Geral” do CPP. Isso evidencia seu caráter abrangente, aplicável a todo o processo penal no que couber, sem se restringir a um rito específico, como o ordinário, o sumário ou os procedimentos de competência originária.

Segundo, a Lei 8.038/90 estabelece o rito para a ação penal, não para o inquérito policial. Embora essa lei trate de um procedimento especial nos Tribunais Superiores, fica evidente que sua disciplina recai exclusivamente sobre a ação penal, sem qualquer regulamentação sobre a fase investigativa. Isso se comprova desde o artigo 1º, que inaugura a lei, o qual dispõe que “nos crimes de ação penal pública, o Ministério Público terá o prazo de quinze dias para oferecer denúncia ou pedir arquivamento do inquérito ou das peças informativas”.

O título do capítulo inicial é “ação penal originária”, demonstrando que sua regulamentação se inicia apenas com o oferecimento da denúncia. Então, não há regulamentação sobre a fase do inquérito nos Tribunais Superiores na Lei 8.038, pois o seu primeiro dispositivo trata, já, da ação penal.

Assim, a Lei 8.038/90 não afasta a aplicação do artigo 3º-C do CPP, pois apresenta uma aparente lacuna normativa no que se refere à competência do juízo na fase preliminar de investigação, suprida pela regulamentação geral do CPP.

Além disso, a própria Lei 8.038 busca harmonizar-se com o CPP, como evidencia seu artigo 9º ao determinar que, no rito das ações penais originárias nos Tribunais Superiores, “a instrução obedecerá, no que couber, ao procedimento comum do Código de Processo Penal”.

Se até no âmbito da instrução processual – objeto específico da Lei 8.038 – há previsão expressa de aplicação subsidiária do CPP, com ainda mais razão deve-se reconhecer que o trâmite do inquérito policial segue as normas do Código.

Terceiro e confirmando isso, a razão de ser do artigo 3º-C do CPP é clara: impedir que o magistrado que supervisionou a investigação conduza o julgamento da ação penal, evitando o viés de confirmação. Trata-se de uma regra de ordem estrutural advinda da estrutura acusatória do CPP (artigo 3º-A). A norma não diferencia instâncias e não há fundamento para afastar sua aplicação nos Tribunais, especialmente porque inquéritos policiais também embasam ações penais originárias.

Em resumo, a interpretação que harmoniza a Lei 8.038 com o CPP é a seguinte:

  • Nos Tribunais Superiores, como a Lei 8.038/90 não disciplina a fase de inquérito, aplica-se a norma geral do juiz das garantias prevista no CPP;
  • O artigo 3º-C do CPP determina que o magistrado responsável pela investigação não conduzirá a ação penal, assegurando imparcialidade;
  • Aplicando-se essa regra, a relatoria da ação penal deve ser redistribuída nos Tribunais Superiores, como ocorre na primeira instância;
  • Após a redistribuição, a ação penal segue o rito previsto na Lei 8.038/90.

No caso em questão, essa interpretação fortaleceria a legitimidade do julgamento e reduziria questionamentos sobre sua condução.

Diante disso e da sujeição do resultado de ações penais como essa às variações políticas, a pergunta que fica é: o STF dobrará a aposta e manterá o julgamento sem ajustes e restrito à 1ª Turma, ou buscará alternativas para reforçar a legitimidade da ação penal?

O tempo responderá e a história revelará o acerto ou não da escolha da corte.


[1] Folha de S.Paulo: “STF repete procedimentos de Moro, diz criminalista que sempre criticou Lava Jato”. “Alberto Toron afirma que postura da corte entra em atrito com ‘uma visão democrática de Justiça e com a própria Constituição’”. 25.05.2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/05/stf-repete-procedimentos-de-moro-diz-criminalista-que-sempre-criticou-lava-jato.shtml.

[2] R7: “Moraes vai manter na 1ª Turma julgamento contra Bolsonaro por suposta tentativa de golpe”. “Um ministro ouvido pelo R7 afirmou que o mais correto seria o caso ser julgado pelo plenário”. 22.02.2025. Disponível em: https://noticias.r7.com/brasilia/moraes-vai-manter-na-1-turma-julgamento-de-denuncia-contra-bolsonaro-por-tentativa-de-golpe-22022025/.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.