A propriedade intelectual como meio de recuperação no âmbito da Lei 11.101/05

A propriedade intelectual e a recuperação judicial são assuntos relacionados à vida cotidiana de sociedades empresárias, embora não haja muitos estudos sobre a contribuição desses ativos como meio de recuperação. Apesar disso, sua relevância social, jurídica e econômica é inegável, uma vez que marcas, invenções, modelos de utilidade, desenho industrial e softwares representam parte expressiva do patrimônio das empresas inovadoras com elevados investimentos em tecnologia, conforme estudo da OCDE [1]–[2].

Assim, a propriedade intelectual é parte do que se denomina ativo intangível, para fins de classificação contábil, ou propriedade imaterial, que envolve todos aqueles bens e direitos que não possuem corpo ou substância física, mas são identificáveis e ensejam um registro contábil porque contribuem para a atividade operacional das empresas.[3]

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Sua relevância é reconhecida pelo Brasil desde a adesão à Convenção de Paris em 1884 e proteção constitucional de o titular da propriedade intelectual ter direito de uma utilização exclusiva, desde que cumpridos determinados requisitos atribuídos pelo Estado.

Em tese, quando uma empresa recorre ao instituto da Lei 11.101/2005, visa-se à recuperação do devedor com a observância de princípios basilares, tais como a preservação da empresa, a satisfação dos interesses dos credores, a fim de promover a eficácia do princípio da eficiência econômico-jurídica.[4]

Isso porque a recuperação judicial contempla tanto questões de ordem econômica quanto de ordem jurídica e acaba por ser dependente do contexto econômico no qual será aplicado, sem prejuízo do respeito aos limites legais, de ordem processual e material, existentes no ordenamento jurídico, e para que se cumpra a função social do direito.[5]

Nos termos do art. 51 da Lei 11.101/2005, o pedido de recuperação judicial da empresa em crise deve vir acompanhado de demonstrações contábeis; relação dos bens particulares dos sócios controladores e administradores do devedor; relação de bens e direitos integrantes do ativo não circulante, para a correta compreensão dos ativos que compõem a empresa.

Por sua vez, o Plano de Recuperação Judicial (PRJ) deve prever os mecanismos de recuperação da empresa, com as alternativas de pagamento aos fornecedores, reorganizações societárias, alienação de ativos, entre os quais a propriedade intelectual, ou o acesso a recursos de terceiros, mediante participação acionária ou financiamento.

Nesse sentido, para o soerguimento empresarial, é mister que sejam identificados os ativos capazes de gerar valor para pagamento dos credores, o que inclui a propriedade intelectual, mediante a premissa de que todos os bens e direitos da empresa em crise contribuem para o soerguimento da empresa, seja no sentido de a empresa em crise mantê-los na nova configuração pós-crise, seja mediante a realização de direitos intelectuais, isoladamente ou em conjunto com outros ativos.

Logo, dada a importância da propriedade intelectual no patrimônio dos agentes econômicos,[6] é natural que sejam exploradas as alternativas de utilização, por si ou por terceiros, temporária ou definitiva dos direitos intelectuais, com a possibilidade de desfazimento de uma fração dos ativos intangíveis, mantendo suas atividades (incluindo bens e ativos) essenciais, ainda que em diferente formato e tamanho do que exercia antes da recuperação judicial.

Para fins de análise do potencial da propriedade intelectual num momento de crise, houve o levantamento de recuperações judiciais de empresas brasileiras em andamento, partindo, primordialmente, da listagem de empresas de capital aberto em recuperação judicial desde 2017[7], a fim de ser verificar as múltiplas possibilidades de interação entre propriedade intelectual e recuperação judicial, no sentido de que ambos os institutos jurídicos exercem uma função social importante, com a devida harmonização de leis específicas[8].

Em breve síntese, em razão de a propriedade intelectual ser um ativo pouco explorado, de forma isolada, na recuperação judicial, sendo mais comum a alienação em conjunto com outros bens, por meio de unidades produtivas isoladas, há a necessidade de redução da assimetria informacional, por meio do fornecimento da documentação obrigatória posta pela da Lei 11.101/2005, de laudos de avaliação e viabilidade econômica de qualidade, inclusive mediante consulta quanto à existência de propriedade intelectual em nome da empresa em crise aos órgãos responsáveis pelo registro de propriedade industrial (INPI).

Além disso, é também crucial uma participação mais ativa dos credores na tomada de decisões para alienação de ativos[9][10], objetivando uma apropriada governança para a devida segurança jurídica, inclusive para prevenir um eventual esvaziamento de bens ou a inadequada monetização da propriedade intelectual pois a avaliação de empresas em crise é uma importante ferramenta para mensurar as oportunidades de investimento.[11]

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Este artigo é de única e exclusiva responsabilidade da autora, não havendo qualquer vinculação com o BNDES.


[1] Nesse sentido, Kone Prieto Fortunato Cesário e Ricardo Carvalho Rodrigues opinam: “Será um erro grave se o futuro governo esquecer os ativos intangíveis, o INPI e a educação da propriedade intelectual. Lá fora estes ativos são cada vez mais o principal motor da criação de valor para as empresas, na medida em que a economia global continua a evoluir em meio à proliferação de serviços e empresas orientadas à tecnologia” (Futuro governo deve proteger propriedade intelectual de olho na competitividade. Jota, 23 nov. 2022. Disponível: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/futuro-governo-deve-proteger-propriedade-inte lectual-de-olho-na-competitividade-23112022. Acesso em: mar. 2024).

[2] OCDE. Bridging the gap in the financing of intangibles to support productivity. OCDE Publishing, Paris, p. 2, 2021. Disponível em: https://www.oecd.org/global-forum-productivity/events/Bridging-the-gap-in-the-financing-of-intangibles-to-support-productivity-background-paper.pdf. Acesso em: set. 2022.

[3] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial. Introdução – Evolução histórica da propriedade industrial no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1946. v. I, p. 73.

[4] PACHECO, Rodrigo Otávio Soares; CHAGAS, Carlos Orlandi. O movimento reformista. In: SALOMÃO, Luis Felipe et al. Recuperação de empresas e falência: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Barueri: Atlas, 2021. p. 21-26.

[5] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo, 1.a Vara de Falência e Recuperação Judiciais, Processo 1057756-77.2019.8.26.0100. A íntegra da decisão pode ser acessada em https://www.conjur.com.br/ dl/recuperacao-judicial-odb.pdf. Acesso em: out. 2022.

[6] UNCTAD – UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT. Technology and Innovation Report 2021. Catching technological waves Innovation with equity. Geneva: UNCTAD, 2021. p. 16.

[7] RIBEIRO, Janaína; DE NUCCIO, Dony. 22 empresas em recuperação judicial listadas na B3. InvestNews, 14 dez. 2020. Disponível em: https://investnews.com.br/cafeina/22-empresas-em-recuperacao-judicial-listadas-na-b3/. Acesso em: ago. 2023.

[8] São leis específicas: Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), da Lei de Proteção da Propriedade Intelectual de Programa de Computador (Lei 9.609/1998), da Lei de Direito do Autor (Lei 9.610/1998), da Lei de Proteção de Cultivares (Lei 9.456/1997) e da Lei de Proteção das Topografias e Circuitos Integrados (Lei 11.484/2007).

[9] “Art. 35. A assembleia-geral de credores terá por atribuições deliberar sobre: […] g) alienação de bens ou direitos do ativo não circulante do devedor, não prevista no plano de recuperação judicial.”

[10]  SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 196.

[11] DAMODARAN, Aswath. Avaliação de investimentos: ferramentas e técnicas para a determinação do valor de qualquer ativo. 5. ed. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2010. p. 6-7.

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