O modelo dialógico e cooperativo do processo constitucional de perfil estrutural

Da questão

Litígios, tutelas e processos estruturais estão no centro da pauta da literatura jurídica processual e constitucional, da jurisdição constitucional brasileira e dos debates políticos e institucionais. Pelo menos desde a última década a agenda de pesquisa e o agir institucional e decisório dos tribunais têm se voltado para debater esse tema, considerado o incremento da complexidade dos problemas constitucionais e aqueles que envolvem políticas públicas, particularmente.

Dentre as questões que mais tomam parte desse debate, a legitimidade democrática do agir jurisdicional tem merecido destaque, em especial quando se discute os litígios e processos estruturais no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

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Perguntas como: tem capacidade institucional para lidar com esse tipo de problema? Como aferir de forma adequada a instrução probatória? Como fiscalizar o comprimento das decisões? Quais os limites dos acordos nesse tipo de processo? A consensualidade como método de solução dos problemas deve ser buscada até que limite? É possível assegurar o ideal de participação e de cooperação, para além de uma lógica formalista?

Não obstante a importância dessas e outras perguntas, no ensaio de hoje, colocaremos em pauta a ADPF 635, cujo objeto se volta para a alegação da prática de graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição pelo Estado do Rio de Janeiro na elaboração e implementação de sua política de segurança pública, notadamente no que tange à excessiva e crescente letalidade da atuação policial, a partir da pergunta teórica: o agir procedimental e decisório adotado pelo STF atendeu o ideal regulativo do processo constitucional dialógico e cooperativo?

Do ideal regulativo da bilateralidade informacional ao ideal cooperativo e dialógico

Diferente da lógica do processo civil tradicional – desenhado para atender os litígios individuais de perfil patrimonialista, marcados pela polaridade dos sujeitos do processo e pela necessária tensão entre os interesse e direitos vindicados – os processos estruturais exigem um modelo cooperativo e dialógico para o seu processamento[1].

Daí por que no desenho procedimental, que deixa de se basear no ideal regulativo do confronto, o contraditório e a participação não podem assumir o restrito perfil informacional. É dizer a mera ciência das partes quanto aos atos processuais ocorridos, como método de manifestação individual e autônoma, deixa de ser suficiente. Nessa lógica, o contraditório como direito de participação no processo refletia os valores da teoria democrática majoritária e formal.[2]

A quebra dessa ideologia predominante e do desenho institucional correspondente, ocorreu de forma paulatina no direito processual brasileiro. O marco do Estado constitucional, com o redimensionamento da lógica democrática majoritária para a de natureza consensual, baseada no constitucionalismo deliberativo e dialógico,[3] consistiu no alicerce normativo de realocação do conteúdo dos direitos processuais, classificados como direitos fundamentais[4], e, por conseguinte, na construção de um modelo de processo dialógico e cooperativo.

Exigiu-se, nesse cenário normativo, nova interpretação do sistema processual, com fundamento nos direitos fundamentais processuais, em particular, no direito ao processo justo. A lógica do processo cooperativo e da função jurisdicional dialógica, no marco do Estado constitucional consensual, funda-se, em essência, em instrumentos dialógicos, associados ao debate e à comunicação, à ética da persuasão e da boa-fé objetiva.

Com mais razão, essa abertura ao diálogo, seja na perspectiva interinstitucional, seja na de perfil interno às estruturas do Judiciário, justificou-se com a expansão da jurisdição constitucional, na proteção dos direitos fundamentais, por meio do controle das políticas legislativas e públicas. O controle da insuficiência (ou omissão) normativa de tutela, de um lado, e do excesso do agir estatal, de outro, marca o agir jurisdicional constitucional contemporâneo, em um cenário de constante diálogo e tensão com os demais poderes e instituições estatais e privadas.

As complexidades e o caráter policêntrico que conformam os novos litígios, como os estruturais, ao lado da fragmentariedade dos atores envolvidos, exigem respostas para além da lógica bipolar normativa do inconstitucional-constitucional, cabíveis na moldura normativa estabelecida pelo legislador. Vale dizer, demanda do Poder Judiciário nova postura dialógica e coordenadora.

Nesse quadro, o processo estrutural deve ser formatado procedimentalmente de modo a permitir que os diferentes grupos sociais e atores afetados pelo problema façam parte do diálogo, da contestação pública dos argumentos e da construção da decisão.

De outro lado, a corte precisa capacitar-se de expertise técnica e conhecimentos especializados que não detém, descortinando o véu da abstração fática e da indiferença às variabilidades sociais na solução normativa dos litígios estruturais. Daí, mais uma vez, o impacto na redefinição do contraditório e do modelo cooperativo e dialógico de processo, em particular na tutela dos direitos nos litígios estruturais.

Do experimentalismo processual na ADPF 635

Esse foi o cenário enfrentado na ADPF 635. Entre as práticas adotadas, destacou-se em um primeiro momento, no lapso temporal que se estendeu desde o ajuizamento da ação até o julgamento dos primeiros embargos de declaração, a atenção fornecida pela corte às sucessivas denúncias realizadas pelo autor da ação e pelos diversos amici curiae em relação ao descumprimento das medidas cautelares (à época havia cautelar deferida para que se exigisse justificação para a realização de operações policiais durante o contexto da pandemia da Covid-19)[5].

Em face das denúncias apresentadas, o ministro Edson Fachin, relator, determinou ao Estado do Rio de Janeiro, ao Ministério Público e aos demais órgãos envolvidos o fornecimento de informações atualizadas sobre o cumprimento das medidas fixadas, a fim de viabilizar a construção de um aporte informacional qualitativo.

Avaliadas as informações prestadas, foi convocada audiência pública[6], com a intenção de promover debate aberto e plural quanto aos aportes argumentativos apresentados, a audiência ocorrida nos dias 16 e 19 de abril de 2021, para além do ministro relator, contou com a participação de 81 habilitados[7].

Destaca-se que na ocasião foram ouvidas as vítimas e as instituições do Estado. Como metodologia de trabalho da audiência, foi empregada a técnica de confronto dialógico dos ministros com os participantes expositores, assim como entre esses em si, de modo a promover contestação pública dos argumentos e dados levantados naquele espaço, fornecendo subsídios para melhor compreensão da realidade fática subjacente ao problema por parte do STF.

A participação dos diferentes grupos afetados pelo problema e os atores institucionais responsáveis pela política pública, por técnicas de representação direta no processo dos seus interesses, foi considerada na formação do convencimento do tribunal, conforme a análise das razões de decidir da decisão tomada no julgamento dos embargos de declaração[8], que deferiu o pedido consistente na elaboração de plano visando à redução da letalidade policial, com a observância de parâmetros destacados na decisão, oportunidade em que se imputou ao Estado do Rio de Janeiro essa responsabilidade, a ser cumprida no prazo máximo de 90 dias, com o encaminhamento do plano para homologação pelo tribunal.

Ainda no julgamento dos embargos de declaração foi determinada a criação de grupo de trabalho sobre Polícia Cidadã no Observatório de Direitos Humanos, constituído no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pela produção de informações e relatórios a respeito da implementação da decisão proferida pelo tribunal.

Em momento processual subsequente, a técnica dialógica de contínua abertura ao diálogo por meio da oitiva dos moradores, da imprensa e de observatórios de violência permitiu ao tribunal concluir que estavam sendo realizadas inúmeras operações policiais sem atender ao critério da excepcionalidade e às demais determinações estabelecidas, permitindo a ciência do descumprimento da decisão.

No trâmite da ação, chama-se atenção para o tratamento dado ao Decreto Estadual 47.802/2022-RJ, que estabelecia o Plano Estadual de Redução de Letalidade, posteriormente republicado como Decreto Estadual 48.002/2022- RJ. Em face da constatação que o documento não atendia aos elementos indispensáveis, nos termos do que decidido pela corte, o relator determinou a oitiva da Defensoria Pública, do Ministério Público e do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, bem como a realização de audiência pública pelo Estado do Rio de Janeiro, a fim de colher informações da sociedade[9].

Somam-se também as audiências realizadas pelo NUSOL/NUPEC, voltadas para a coleta de dados e esclarecimento sobre a implementação dos comandos decisórios adotados, que assumiram distintos perfis e funções[10], não se concentrando apenas no ideal de pluralização das perspectivas argumentativas ou oitiva de experts do problema em debate[11].

Essa prestação de informações à corte, bem como a possibilidade de impugnação pública dos dados apresentados pelos interessados manifesta a abertura dialógica do STF, como também permite o aporte de novos dados acerca da implementação da decisão proferida. Técnica processual que permite o conhecimento adequado da realidade subjacente à incidência da decisão, com a retroalimentação de informações e fatos necessários para eventual reajuste do plano homologado ou proferimento de novas decisões.

Nesse sentido, importa dizer que a decisão nos processos estruturais deve, como regra, ser o resultado da comunidade de trabalho instaurada no processo, ou seja, do diálogo construído entre as coletividades afetadas, os atores com conhecimento técnico (das áreas em que inserido o problema) e aqueles competentes institucionalmente pela reorganização burocrática.

Os métodos de solução consensual e dialógico, portanto, preferem àquele de perfil impositivo. Ao Poder Judiciário, nesse modelo de processo, compete mais a função de coordenador e fiscalizador dos limites da solução encontrada, em especial, na fase de implementação da decisão, que tem uma natureza progressiva, prospectiva e experimental[12].

Assim que a condução procedimental e decisória adotada na ADPF 635, ao se valer de técnicas processuais e experimentos institucionais de abertura à participação de diversos atores sociais e institucionais, por meio de audiências públicas e mecanismos de supervisão contínua dos comandos decisórios, e do vetor regulativo do agir procedimental dialógico, exemplifica essa fase de transição para o modelo de processo constitucional cooperativo e consensual na tutela dos direitos fundamentais e dos valores democráticos.


[1] Cf. ARENHART, Sergio Cruz; OSNA, Gustavo; JOBIM, Marco Félix, Curso de processo estrutural. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021; JOBIM, Marco Félix. Medidas estruturantes na jurisdição constitucional: da Suprema Corte estadunidense ao Supremo Tribunal Federal. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2024; VITORELLI, Edilson. Processo Civil estrutural: teoria e prática. Salvador: Juspodivm, 2020; CASIMIRO, Matheus. Processo estrutural democrático: participação, publicidade e justificação. Belo Horizonte: Fórum, 2024.

[2] Cf. LIJPHART, Arend. Patterns of democracy: governments and forms in thirty-six countries. 2 ed. New Haven: Yale University Press, 2012.

[3] GARGARELLA, Roberto. El nuevo constitucionalismo dialógico frente ao sistema de lós frenos y contra-pesos. In: GARGARELLA, Roberto (Comp.). Por uma justicia dialógica: el Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014. p. 119-158.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

[5] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Relatório. ADPF 635. Relator, Ministro Edson Fachin. Data: 04/11/2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371744475&ext=.pdf >. A medida cautelar referente à excepcionalidade das operações policiais foi proferida em 05/06/2020 e referendada em 18/08/2020. Disponível em:<https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344901720&ext=.pdf>.

[6] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Relatório. ADPF 635. Relator Ministro Edson Fachin. Data: 04/11/2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371744475&ext=.pdf >.

[7] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Despacho.  ADPF 635. Relator Ministro Edson Fachin. Data: 08/01/2021. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15345318261&ext=.pdf>.

[8] ADPF 635 MC-ED, Relator Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/2022, DJe 03/06/2022.

[9] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Relatório. ADPF 635. Relator Ministro Edson Fachin. Data: 04/11/2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371744475&ext=.pdf >.

[10] Sobre o papel das audiências no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ver artigo nosso escrito com Luiz Hnrique Krassuski sobre os papeis das audiências públicas no Supremo Tribunal Federal, “Vamos aos fatos?” Instrução probatória e as diversas funções da Audiência Pública na jurisdição do STF, disponível no site do Conjur. Importantes também o artigo escrito por Trícia Navarro, Audiência de contextualização: um novo formato de diálogo de processo, disponível em: https://www.jota.info/artigos/audiencia-de-contextualizacao-um-novo-formato-de-dialogo-processual. No mesmo sentido, o artigo publicado nessa Coluna do Observatório Constitucional por André Rufino do Vale, Audiências de conciliação no STF: conciliações precisam ser compreendidas no contexto das práticas argumentativas do Supremo Tribunal Federal, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/audiencias-de-conciliacao-no-stf.

[11] Sobre os fatos na interpretação constitucional, ver artigo que escrevemos com o Professor Luiz Guilherme Marinoni, nessa Coluna, A (re)descoberta dos fatos e sua adequada deliberação no processo constitucional. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/a-redescoberta-dos-fatos-e-sua-adequada-deliberacao-no-processo-constitucional. Ainda, MARINONI, Luiz Guilherme. Fatos constitucionais: a (re)descoberta de outra realidade do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.

[12] Ver, ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de processo. São Paulo. vol. 38, n.225, p. 389-410, nov. 2013. CABRAL, Antonio do Passo; ZANETI, Hermes. Entidades de infraestrutura específica para a resolução de conflitos coletivos: as claims resolutions facilities e sua aplicabilidade no Brasil. Revista de Processo, vol. 287/2019, p. 445 – 483.

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