A mercantilização da carona e os prejuízos aos sistemas de transporte público

O presente texto constitui contraponto ao artigo intitulado “A carona solidária no Brasil e o papel dos aplicativos de intermediação de caronas“, publicado pelo JOTA no último dia 23 de janeiro.

Escrevo na condição de advogado que representa a Federação das Empresas de Transporte de Passageiros dos Estados do Paraná e Santa Catarina (Fepasc) e o Sindicato das Empresas de Transporte Rodoviário Intermunicipal do Estado do Paraná (Rodopar) em litígio judicial que envolve discussão a respeito do modelo de carona promovido por empresas como a Blablacar.

Embora o artigo antes publicado toque em questões relevantes, a análise realizada é preocupante, pois o seu autor não realizou revelação essencial, indicando que ele é advogado da empresa Comuto, que disponibiliza o aplicativo Blablacar no Brasil. Essa falta de transparência é especialmente grave, considerando a discussão judicial em curso, na qual a Fepasc e o Rodopar demonstram a invalidade do modelo de carona promovido pela Blablacar.

O artigo apresenta o compartilhamento de caronas como uma forma de “carona solidária” e busca minimizar o potencial para a exploração comercial da plataforma. Alega-se que a Blablacar meramente facilita as conexões entre pessoas com planos de viagem compartilhados e não oferece serviços de transporte.

No entanto, a Fepasc e o Rodopar demonstram, apoiados em evidências concretas constantes do processo em curso, que a Blablacar opera verdadeiro serviço de transporte comercial, que concorre diretamente com o sistema de transporte público legalmente autorizado, mas sem cumprir os mesmos requisitos que a legislação exige que sejam observados pelos prestadores regulares.

Na realidade, a operação da Blablacar vai muito além do simples compartilhamento de custos e inclui aspectos de transporte comercial, como: (i) motoristas fazendo viagens frequentes com intervalos muito curtos, denotando a profissionalização da atividade, (ii) cobrança de passagens individuais para cada passageiro, (iii) partidas e chegadas nas proximidades de terminais rodoviários, e (iv) coleta massiva de dados e informações dos motoristas e passageiros, que a Blablacar declaradamente usa para sua estratégia de negócios e considera um “ativo” de sua titularidade.

A “carona comercial” promovida pelo aplicativo é apresentada como alternativa ao transporte formal.

O fato é que a mercantilização da carona (em operações como a da Blablacar) impacta o sistema de transporte público. Atinge diretamente um serviço público, de titularidade da entidade estatal, e prejudica a sua sustentabilidade. Enquanto o transporte rodoviário de passageiros deve atender do modo mais amplo possível a população de um determinado estado, a Blablacar acaba operando apenas aquelas rotas e linhas que são mais atrativas.

O resultado é uma redução significativa de passageiros pagantes no sistema regular, o que prejudica justamente aquelas localidades que não apresentam volume constante de passageiros. Além disso, essa prática invariavelmente também acarreta o aumento da tarifa cobrada aos usuários do sistema regular.

Os sistemas de transporte rodoviário de passageiros são organizados em rede, de modo que as operações realizadas em rotas e linhas com maior volume de passageiros acabam financiando as operações em linhas de baixa atratividade.

Por isso, na prática, as operações de empresas de carona comercial como a Blablacar funcionam como um serviço de transporte paralelo que mina o sistema de transporte público.

Há expressa violação ao estabelecido pelas leis e regulamentos que regem o transporte intermunicipal no Paraná, que proíbe tanto a realização de transporte com cunho comercial sem a necessária outorga como a realização de transporte comercial que acarrete concorrência ruinosa ao sistema público regular de transporte.

Viola-se igualmente o Código de Trânsito, que qualifica como “infração gravíssima” o “transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não for licenciado para esse fim, salvo casos de força maior ou com permissão da autoridade competente” (art. 231, VIII, do CTB).

Isso sem considerar que não há emissão de qualquer documento fiscal para as viagens ou adoção de medidas de segurança com relação aos veículos, passageiros e motoristas.

Os pretensos aspectos “sociais” da atividade, bem como seus supostos benefícios ambientais, constituem justificativas genéricas e vazias para o descumprimento das normas vigentes. Vão na contramão do entendimento consolidado de que uma rede de transporte coletivo público é muito mais eficiente e ambientalmente mais adequada do que centenas ou milhares de veículos de passeio.

Basta verificar um exemplo: o que é ambientalmente mais eficiente, um ônibus transportando 50 passageiros ou 20 veículos de passeio transportando o mesmo número de pessoas?

Nem se diga que a tecnologia evoluiu e que tal circunstância propiciou uma revolução no transporte de pessoas. O discurso é frequentemente usado por empresas de tecnologia que buscam desenvolver atividades em diversas áreas. Recorre-se frequentemente aos exemplos de Uber, do Airbnb e iFood. Note-se que, em todos esses casos, não se está diante de serviços públicos.

No caso da Uber, os serviços de táxi sempre foram considerados serviços privados regulamentados (basta verificar que os táxis não seguem linhas específicas e não precisam atender a todos os locais e bairros da cidade).

O serviço de locação de imóveis por temporadas ou pequenos períodos também não tem qualquer relação com serviços públicos (embora já esteja levantando muitos questionamentos em cidades turísticas, pelo prejuízo que causa à disponibilidade de imóveis para a própria população local). O serviço de entregas de refeições também é estritamente privado e não envolve qualquer prestação de serviço público.

Em todos esses casos, a única nota comum com a carona comercial promovida pela Blablacar é o intuito de lucro. A Uber e seus motoristas visam ao lucro. A Airbnb e aqueles que colocam sua propriedade na plataforma também miram o lucro. O iFood e seus entregadores buscam o ganho privado a partir da atividade. E é isso que também pretende a Blablacar com as suas operações.

Na realidade, é possível identificar em algumas empresas que atuam à margem da lei uma busca pela aprovação popular e pela “normalização” de sua atividade. Trata-se de um fenômeno que pode ser referido como “clandestech”. Empresas que se valem de novas tecnologias para promover a realização de atividades irregulares.

Quando tais empresas violam a legislação e atingem diretamente atividades que constituem serviços públicos, há prejuízo não apenas aos operadores dos serviços públicos – que geralmente são estigmatizados como antiquados, embora haja investimento maciço por parte destes em novos veículos e tecnologias, inclusive para o atendimento da legislação aplicável – mas prejuízo à própria população e aos usuários que mais dependem da disponibilização de tais serviços pelo Estado.

Nesse sentido, basta verificar que as caronas comerciais não atendem às exigências de gratuidades ou de isenções, como por exemplo, no caso daquelas asseguradas pela Constituição e por leis para idosos. Esse ônus recai unicamente sobre o sistema público de transporte e seus operadores.

Portanto, o artigo antes publicado, embora aparente oferecer uma perspectiva neutra, apresenta verdadeira defesa da Blablacar, deixando de divulgar o conflito de interesses do seu autor.

A verdade é que há muitos aspectos relevantes, inerentes à prestação dos serviços públicos de transporte, que são violados quando se constitui um sistema de transporte paralelo baseado em caronas comerciais, que são apelidados de “caronas solidárias” ou “caronas colaborativas” visando a contornar as restrições legais. Essas limitações são estabelecidas justamente para se preservar o serviço público de transporte de passageiros, que é considerado essencial e um direito social pela Constituição brasileira.

Trata-se de situação que não pode ser admitida. A legislação e as normas que regulam e protegem o serviço de transporte público de passageiros devem ser respeitadas, sob pena de prejuízo e destruição do próprio serviço público essencial de titularidade do Estado e cuja existência e disponibilidade são garantidas constitucionalmente.

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