Litigância predatória: abuso do direito de ação contra o Estado

Na última quarta-feira (19), o julgamento do Tema Repetitivo 1.198, que aborda a litigância predatória, foi adiado. Esse fenômeno, caracterizado pela interposição de milhares ações sem fundamento legítimo – muitas vezes sem que os próprios autores tenham consciência disso –, não apenas sobrecarrega o sistema de justiça como um todo, mas também compromete a celeridade processual e impõe custos elevados ao Estado.

É essencial, no entanto, distinguir a litigância predatória da litigância de massa, um conceito frequentemente confundido. A litigância de massa envolve grande número de demandas sobre um mesmo tema, geralmente com o objetivo de defender direitos legítimos de um número considerável de pessoas.

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Já a litigância predatória é a distorção do sistema judicial por meio do abuso do direito de ação, com processos infundados ou fraudulentos, através do ajuizamento de centenas ou milhares de ações em um intervalo de tempo pequeno, normalmente pelo mesmo grupo de advogados, com petições repetidas, genéricas, sem documentos mínimos.

Um aspecto muitas vezes ignorado é que a litigância predatória não se limita ao Direito Privado: ela também impacta diversas áreas do Direito Público. Demandas sobre benefícios previdenciários, fornecimento de medicamentos e tratamentos médicos, além de ações contra empresas concessionárias de serviços públicos, estão entre os casos mais recorrentes.

Esse cenário impõe um volume expressivo de respostas da Advocacia Pública, intensificando a sobrecarga do sistema e exigindo novas estratégias de gestão processual, para tentar identificar e destacar o objetivo fraudulento do processo.

Os reflexos desse fenômeno vão além das estatísticas processuais e atingem a administração pública como um todo. A enxurrada de ações infundadas gera congestionamento processual, reduzindo a efetividade da prestação jurisdicional e prejudicando tanto o Estado quanto os cidadãos que buscam a Justiça de forma legítima.

Além disso, os impactos no orçamento público são alarmantes. De acordo com pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o prejuízo anual decorrente da litigância predatória ultrapassa R$ 24,8 bilhões. Em outras palavras, a litigância predatória não apenas sobrecarrega o sistema de justiça como um todo: é também desperdício de dinheiro público, comprometendo recursos que poderiam ser direcionados a políticas públicas essenciais.

Para lidar com esse problema, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem analisado a questão. A discussão sobre o Tema Repetitivo 1.198 começou na 2ª Seção do STJ, mas a ministra Nancy Andrighi levantou questão de ordem sugerindo que fosse encaminhado à Corte Especial. Isso porque o tema envolve tanto o direito privado quanto o direito público, tornando mais adequado seu julgamento por esse colegiado.

Discute-se a possibilidade de o magistrado, ao identificar indícios de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial e apresente documentos que minimamente sustentem suas alegações, por meio do poder geral de cautela. Entre os documentos que podem ser requeridos estão procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias de contratos e extratos bancários. A medida busca garantir maior segurança jurídica e evitar o ajuizamento indiscriminado de demandas abusivas.

No STJ, o julgamento teve início em fevereiro de 2024, com o voto do relator, ministro Moura Ribeiro, que defendeu a fixação de tese reconhecendo a validade da exigência judicial de documentos que “lastreiem minimamente as pretensões deduzidas” na fase inicial da ação. No entanto, enfatizou que tal determinação deve ser fundamentada e levar em consideração as peculiaridades de cada caso concreto.

Com o julgamento suspenso por vista coletiva aos ministros, em outubro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Recomendação 159/2024, indicou medidas de identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva. Conforme art. 1º, parágrafo único, do referido ato, a litigância predatória ocorre quando há condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos.

O Anexo-A da recomendação traz lista exemplificativa, com algumas das condutas processuais potencialmente abusivas, como, por exemplo: proposição de várias ações judiciais sobre o mesmo tema, pela mesma parte autora, distribuídas de forma fragmentada; apresentação de procurações incompletas, com inserção manual de informações, outorgadas por mandante já falecido(a); ajuizamento de ações com o objetivo de dificultar o exercício de direitos, notadamente de direitos fundamentais, pela parte contrária (assédio processual).

Em manifestação sobre a recomendação, o Conselho Federal da OAB afirmou que isso comprometeria o direito constitucional de acesso à Justiça, além de destacar que cabe à Ordem fiscalizar o exercício da advocacia.

No entanto, conforme destacou Didier Jr em entrevista ao JOTA, a advocacia, especialmente a que age de maneira ética e sem fraudes, está em risco. Por isso, é fundamental que os profissionais da área se envolvam na discussão e no estudo do tema. Negar a existência do problema não contribui para a busca de soluções: o caminho ideal é debater e participar ativamente.

A litigância predatória, portanto, é um problema estrutural que consome recursos públicos expressivos, sobrecarrega o sistema de justiça e compromete a efetividade da atividade jurisdicional. Seu combate demanda um esforço coordenado entre magistrados, procuradorias, advocacia e demais instituições envolvidas, com a adoção de mecanismos eficazes de controle e monitoramento.

Mais do que coibir práticas abusivas, o enfrentamento da litigância predatória protege a integridade do direito de ação, assegurando que o acesso à Justiça permaneça um instrumento legítimo para a defesa de direitos, e não um meio de sobrecarregar o Estado com demandas artificialmente infladas, sem qualquer lastro.

É importante observar: o CNJ apenas fez apenas uma recomendação. O Superior Tribunal de Justiça, com seu papel constitucional de uniformizar e interpretar a legislação federal, através de uma tese firmada em repetitivo, terá força obrigatória.

O julgamento pautado na Corte Especial foi adiado, sem uma definição clara ou vinculante sobre litigância predatória. Essa indefinição não apenas favorece aqueles que atuam de má-fé, mas também enfraquece as bases do Estado de Direito, colocando em risco a própria confiança nas instituições jurídicas.

A ausência de uma decisão vinculante sobre essa questão reverberará de maneira profunda, afetando não só o sistema judiciário, mas o sistema de justiça como um todo, comprometendo a capacidade da Advocacia Pública de cumprir seu papel fundamental na defesa do interesse público.

O futuro da nossa justiça está em jogo.

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