Democracia, Estado de Direito e lawfare

O voto concede poder. E poder político é mando e organização social. Todavia, em uma democracia autêntica, autoridade não é autoritarismo, independentemente de onde venha o poder exercido. Tais conceitos básicos se esvaem em um tempo no qual os significados perdem sentido. Na desconstrução estrutural do presente, sentada na ruptura de padrões tradicionais e no desmonte cultural da razão superior, não é somente a democracia, mas a própria civilização que está em risco.

Sim, os conceitos de paz e prosperidade são construções sociais recentes. Historicamente, a humanidade passou por longos períodos de guerras, pestes e misérias absolutas. A longevidade era baixa, a mortalidade infantil altíssima, a pobreza era regra, a riqueza, exceções majestáticas. Aliás, faz menos de 100 anos que o mundo viveu um conflito armado de larga proporção que devastou a Europa e, após anos de destruição e ruína absoluta, só chegou ao fim com uso do poder atômico e consequente estabelecimento de um novo norte de hegemonia global.

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Com o fim da Guerra Fria, o poder hegemônico se consolidou sob direção de Washington, possibilitando a implantação de pautas capitalistas de largo alcance com geração de prosperidade, desenvolvimento econômico, científico e impressionante aprimoramento da qualidade de vida e bem-estar humano.

Por certo, algum sabujo indagar-se-á: quer dizer então que todos os males sociais foram resolvidos? Ora, é lógico que não, até mesmo porque a gravidade da hora dispensa ingenuidades juvenis. Agora, negar os avanços promovidos pelo capitalismo é fechar os olhos para a realidade evidente, preferindo-se a cegueira ideológica que usa a ignorância e a miséria dos que ainda sofrem para mantê-los na agonia da dor e da pobreza. Na verdade, como o progresso os ofende, preferem mentir despudoramente.

Infelizmente, a mentira elege fácil, pois ser verdadeiro exige o peso da responsabilidade e o compromisso com valores pessoais. No inverno das virtudes, os sistemas de poder se tornam ocos, sendo preenchidos por perigosos gases asfixiantes.

Por assim ser, as democracias perdem vitalidade, reduzindo o espaço público a um jogo de interesses rasteiros, sem visão superior e despido de raízes de sustentação. A consequência é direta: a política decai, fulminando a crença dos cidadãos nas instituições republicanas. Entre angústias e desmandos, a esperança por justiça se torna premente, mas a relativização da legalidade a torna ilusória. Onde não há lei, as injustiças se tornam reais.

O Estado teoricamente de Direito passa a ser uma ilegalidade prática. Como último freio, chama-se o poder togado para resolver problemas que a política democrática se tornou incapaz de resolver, seja por covardia, omissão ou ausência de espírito público. Sobre o ponto, em artigo seminal, o general americano Charles J. Dunlap Jr cunhou a expressão lawfare para indicar o uso da legalidade para fins bélicos, vindo a pontuar a “evidência perturbadora de que o Estado de Direito está sendo sequestrado em outra forma de luta (lawfare), em detrimento de valores humanitários, bem como da própria legalidade”.

A manobra, através de expedientes jurídicos de ocasião, embrulha matérias políticas fundamentais em ações judiciais, colocando na decisão jurisdicional o exercício de opções democráticas de titularidade prioritária da política.

O fato é que, por maior que seja o talento do julgador, não terá ele o poder de consertar ou suprir o exercício político responsável. Afinal, política democrática não se faz com um homem só. Plenamente ciente das imperfeições da democracia, bem como dos limites da jurisdição constitucional, o grande Oliver Wendell Homes afirmou: “if my fellow citizens want to go to Hell I will help them. It’s my job”.

A expressão do notável juiz americano, antes de indiferente fatalismo, expõe que há escolhas democráticas que, independentemente de boas ou más, estão acima do poder de interferência judicial. Até mesmo porque, entre escolhas erradas, a cidadania aprende a escolher certo. E, entre erros e acertos, entre idas e vindas, a democracia aprimora-se como instrumento pulsante de poder.

No cair da noite, os desafios da contemporaneidade exigem prudência máxima. A busca de atalhos apenas acelerará imprevisíveis processos de ruptura. Com tato e sensibilidade, o resgate institucional da democracia não se fará por litígios, mas pela hábil construção de pautas majoritárias que impactem a vida das pessoas.

Antes de bravatas, precisamos de lideranças públicas e privadas com capacidade de dizerem palavras sinceras que cativem a confiança dos cidadãos em um projeto de futuro factível. Tudo com respeito, altura e dignidade. Com verdade e sem ilusões. Uma força democrática séria, honesta e com a simplicidade que faz conquistar. Enfim, valores que somos e que precisamos representar.

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