Brasil é condenado pela Corte IDH em caso emblemático de discriminação racial no trabalho

O Brasil foi omisso na investigação de uma denúncia de discriminação racial no âmbito do trabalho e falhou em dar resposta judicial adequada, disse a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Em sentença divulgada nesta quinta-feira (21/02), o Tribunal entendeu que atos e falhas das autoridades judiciárias brasileiras as levaram a reproduzir o racismo estrutural também durante o processo na Justiça. Foi a primeira vez em que um processo sobre o tema chegou à Corte IDH. 

Em março de 1998, Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira Gomes, ambas mulheres negras, tentaram se candidatar a vagas de pesquisadoras na companhia de seguros Nipomed, em São Paulo. Ao chegarem à sede da empresa, o recrutador se recusou a entrevistá-las e se negou a fornecer um formulário de inscrição, alegando que todas as vagas para o cargo “já tinham sido ocupadas”. 

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Na tarde do mesmo dia, porém, uma amiga das vítimas, de pele branca, candidatou-se ao mesmo cargo e foi contratada de imediato. À época, o recrutador disse a ela que havia muitas vagas e pediu que, caso conhecesse “mais pessoas como ela”, divulgasse o processo seletivo. 

Ao ouvir a informação da amiga, Gisele Ana Ferreira Gomes voltou à empresa no dia seguinte. Foi recebida por outro recrutador, que deu a ela o formulário de candidatura e prometeu contatá-la, o que nunca aconteceu. 

Gisele e Neusa tinham o mesmo nível de escolaridade e a mesma experiência como pesquisadoras da amiga contratada. Elas já haviam trabalhado juntas em um projeto para um instituto de pesquisa do Governo do estado de São Paulo.

Gisele e Neusa apresentaram denúncia em agosto do mesmo ano, e uma investigação pelo crime de racismo foi aberta contra o primeiro recrutador. Em outubro do ano seguinte, ele foi absolvido por falta de provas suficientes de que teria agido por discriminação racial. 

As duas amigas recorreram e, em 2004, o recrutador foi condenado a dois anos de reclusão. Mas a pena foi declarada prescrita. O Ministério Público ainda interpôs um recurso de embargos de declaração, alegando que a Constituição brasileira estipula a imprescritibilidade do crime de racismo. 

O recurso foi decidido em 2005, ordenando o levantamento da declaração de prescrição e condenando o acusado ao cumprimento da sanção em regime semiaberto. Em 2009, porém, o Tribunal de Justiça do São Paulo decidiu pela absolvição por insuficiência de provas em resposta a um recurso de revisão interposto pelo recrutador.

Reconhecimento parcial

Gisele e Neusa participaram de audiência na Corte IDH em 2023. Na ocasião, Gisele disse que o sentimento foi de desemparo ao receber a notícia de que haviam perdido.

“Foi como se a Justiça tivesse dito para mim que podem me tratar com racismo, que podem me tratar mal, não tem problema. Eu saí do escritório com a notícia e falei: eu não quero mais voltar aqui, não quero mais ouvir isso, não quero mais viver isso. Ninguém vai me defender e eu preciso trabalhar. Então eu nunca mais quis saber sobre o processo. Eu também parei de procurar empregos de pesquisadora ou empregos em que a minha aparência fosse importante. Eu fui trabalhar com minha mãe, de empregada doméstica, porque como empregada doméstica você não precisa falar, sua aparência não é importante e você ganha um dinheiro honesto”, afirmou aos juízes na audiência com a Corte IDH.

O Brasil realizou um reconhecimento parcial de responsabilidade à época pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial devido ao não processamento célere da apelação interposta pelas vítimas e o indevido reconhecimento da prescrição do crime de racismo.

Mas, ao analisar o caso, a Corte IDH entendeu que, mesmo contando com fortes indícios de discriminação devido à raça e cor, tanto a decisão de primeira instância quanto a decisão de revisão criminal concluíram que Gisele e Neusa não comprovaram a existência de um tratamento discriminatório. 

Com isso, afirmou o Tribunal, as autoridades judiciárias brasileiras transferiram às vítimas a responsabilidade pela produção de provas, tirando do Estado seu papel de esclarecer o caso de discriminação racial.

O Ministério Público também falhou, acrescentou a Corte, ao interpor recurso contra a sentença absolutória em primeiro grau, o que demonstrou descumprimento do seu dever de devida diligência reforçada na proteção do direito à igualdade e à não discriminação. 

Ambos, Ministério Público e Poder Judiciário, foram omissos, e seus atos geraram um impacto profundo no acesso à justiça em condições de igualdade, em um contexto de discriminação racial estrutural e de racismo institucional, acrescentou a Corte. 

A falta de acesso à justiça em condições de igualdade gerou sentimentos de humilhação, sofrimento, angústia e falta de proteção em Gisele e Neusa. Além de não superar a discriminação racial estrutural no âmbito trabalhista, o Estado brasileiro permitiu que a discriminação seguisse durante todo o processo penal. 

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Na sentença, a Corte IDH ordenou que o Brasil realize um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional e pedido público de desculpas. Além disso, o Estado deve adotar protocolos de investigação e julgamento para crimes de racismo e inclua nos currículos de formação permanente dos funcionários do Poder Judiciário e do Ministério Público do estado de São Paulo um conteúdo específico sobre discriminação racial direta e indireta. 

Ordenou, ainda, que o Brasil adote as medidas necessárias para que aqueles que exercem funções no Poder Judiciário notifiquem o Ministério Público do Trabalho sobre supostos atos de discriminação racial no ambiente de trabalho.

Participaram da emissão da sentença os juízes Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Eduardo Ferrer Mac- Gregor Poisot (México); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile). 

O juiz Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte, não participou da deliberação e assinatura da sentença, por ser de nacionalidade brasileira. O regulamento do Tribunal não permite a participação dos magistrados em casos que envolvem seus países de origem.

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