Por uma reforma estrutural na Justiça brasileira

O problema dos supersalários na magistratura brasileira é apenas a ponta do iceberg do Judiciário. Embora haja um teto constitucional para os vencimentos dos juízes, diversas brechas, como auxílios e benefícios pouco fiscalizados, fazem com que magistrados recebam valores muito acima do permitido. No entanto, o problema vai além das remunerações exorbitantes, ele é estrutural.

Essa é uma carreira engessada, que sofre com cargos vagos e que, destaca-se aqui, sofre com a falta de uma lei atualizada que estabeleça em todo o país diretrizes modernas para sua governança e gestão, condizentes com o século 21. A Lei Orgânica da Magistratura é de 1979, enquanto magistrados já estão utilizando inteligência artificial.

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A mudança poderia considerar a adoção de critérios legais que valorizam a certificação e a especialização dos magistrados, critérios estes que precisam ser considerados no processo de vitaliciamento e de movimentação da carreira, no intuito de que magistrados qualificados e comprometidos permaneçam na carreira e ocupem postos estratégicos, gerando expectativa não apenas de elevar a qualidade das decisões judiciais, mas também reduzir a rotatividade e o preenchimento de posições por eventual influência política ou conveniência pessoal, tornando a Justiça mais republicana, eficiente e conectada à realidade social.

A avaliação de desempenho atual na magistratura é predominantemente quantitativa, seguindo diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prioriza o número de sentenças e decisões proferidas em detrimento da qualidade e do impacto social das decisões judiciais. Esse modelo cria um ambiente em que juízes são pressionados a produzir estatísticas positivas, muitas vezes priorizando a velocidade na tramitação dos processos em vez de uma análise aprofundada e justa dos casos.

Como resultado desse modelo, a preocupação com metas numéricas leva a problemas de saúde física e mental, ou seja, ao adoecimento de magistrados, e a decisões automatizadas, que seguem modelos e padrões salvos em documentos de computador, que não necessariamente se amoldam melhor ao caso concreto. Gera-se o risco de ignorar a complexidade dos casos concretos, a coerência jurídica das decisões e a satisfação das partes envolvidas, reforçando um modelo que privilegia a produtividade em detrimento da qualidade.

A avaliação nessa carreira deveria incluir critérios na lei mais qualitativos, considerando, por exemplo, a qualidade da fundamentação das decisões, o impacto na pacificação dos conflitos e a contribuição para a jurisprudência. Também seria importante incluir a percepção do cidadão e de advogados sobre a condução dos processos, garantindo que a magistratura não esteja atendendo mais aos números, mas efetivamente cumprindo sua função social.

A inclusão de mecanismos como feedback institucional, ouvidorias externas e participação da sociedade civil poderia tornar a avaliação mais justa e alinhada aos interesses da população. Dessa forma, pode ser possível criar incentivos para que os magistrados se preocupem menos com a quantidade de sentenças e mais com a qualidade e a efetividade de suas decisões.

Não se pode esquecer que existem dois mundos bastante distintos no contexto do Judiciário brasileiro: dos magistrados e dos seus servidores. As críticas aos privilégios concedidos a magistrados não podem ser equivocadamente direcionadas aos servidores do Judiciário, cuja realidade profissional é marcada por desafios institucionais distintos.

A confusão entre essas duas categorias ignora o fato de que os benefícios exorbitantes são restritos aos juízes, enquanto os servidores enfrentam um cenário de desvalorização e dificuldades operacionais.

Enquanto juízes acumulam vencimentos que frequentemente ultrapassam o teto constitucional, os servidores – responsáveis por garantir o funcionamento diário da Justiça e cumprir as metas do CNJ, sejam técnicos, analistas, assessores ou oficiais – convivem com sobrecarga de trabalho, falta de reconhecimento e condições inadequadas para o exercício de suas funções, que também os leva ao adoecimento e afastamento.

Ocorre que, diferentemente dos magistrados, servidores não dispõem de prerrogativas nem de acesso aos chamados “penduricalhos” que elevam a remuneração de seus superiores por trabalhar mais. Mesmo sendo a base que sustenta o sistema judicial, não têm representação no CNJ.

A Justiça brasileira sofre ainda com outro problema, que agrava todos os demais, e que não depende apenas de mudança na legislação: é persistente um perfil elitizado da magistratura, com pouca ou nenhuma formação em gestão pública e políticas públicas, que afasta o Judiciário da realidade de estados e, principalmente, de municípios, estes muito desiguais entre si.

O processo de seleção para a magistratura reforça o perfil elitizado, em uma espécie de reprodução institucional, uma vez que o concurso público, embora formalmente baseado no mérito, favorece o conteudismo. O alto custo da preparação, que envolve cursos especializados, materiais caros e anos de dedicação sem garantia de retorno imediato, limita o acesso de pessoas de baixa renda, restringindo a diversidade na carreira.

Por essas e outras questões que podem ser tratadas, mas que não se faz aqui por falta de espaço, o texto “Fake news”, assinado pelo desembargador do TJSP Ricardo Pessoa de Mello Belli e publicado no jornal O Estado de S. Paulo, reforça a necessidade de mudança estrutural na Justiça, embora essa mudança, visivelmente, não seja a intenção do seu autor.

O texto tenta desqualificar a atuação legítima da imprensa e críticas feitas aos supersalários e privilégios da magistratura brasileira, sugerindo que a imprensa seja responsável por uma suposta campanha de difamação contra juízes. Ao afirmar que matérias jornalísticas exageram números e utilizam termos pejorativos para desmoralizar magistrados, ignora o fato de que as reportagens sobre supersalários e privilégios não são uma invenção, mas uma realidade amplamente documentada.

Relatórios do CNJ, de órgãos independentes e de setores organizados da sociedade civil, bem como trabalhos acadêmicos publicados no Brasil e no exterior, mostram que magistrados brasileiros recebem remunerações muito acima do teto constitucional, devido a artifícios como auxílios, indenizações e outras benesses, que escapam ao controle direto da lei.

Em decisão recente, o ministro do STF Flávio Dino, que presidiu a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), classificou a concessão de benefícios a magistrados, fora do teto do funcionalismo público, como “inaceitável vale-tudo”. Segundo Dino, é praticamente impossível determinar com precisão qual é o teto seguido, quais parcelas são pagas e se elas possuem, de fato, caráter indenizatório devido à grande variedade de pagamentos realizados, que são justificados por diferentes razões, como isonomia, acervo, compensações e venda de benefícios.

Essa realidade contrasta fortemente com a ideia de que os juízes brasileiros são injustamente atacados e sacrificam-se em prol da sociedade. Na verdade, o texto falha ao tentar desviar o foco da discussão sobre os privilégios da magistratura e da necessidade de uma mudança estrutural, sugerindo que os juízes trabalham excessivamente e que a crítica ao Judiciário é uma ameaça ao Estado democrático de Direito.

A retórica ignora o fato de que a insatisfação da população com o Judiciário decorre da lentidão dos processos, da falta de acesso à Justiça e da sensação generalizada de que a magistratura vive realidade paralela, uma “ilha de prosperidade”, e não responde aos anseios da sociedade.

Vale dizer que o texto converge com a histórica resistência da magistratura a qualquer tentativa de controle externo democrático efetivo. Quando o CNJ foi criado pela Emenda Constitucional 45 de 2004, sofreu forte oposição de associações de classe dos magistrados, justamente em um contexto de graves escândalos de corrupção no Judiciário, como o caso do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo entre as décadas de 1990 e 2000. O episódio, que envolveu o desvio de milhões de reais, revelou a fragilidade dos mecanismos de controle e a conivência interna com práticas ilícitas, um problema que, passadas duas décadas, ainda não foi resolvido.

Hoje, as notícias que escandalizam não são milhões de reais, mas bilhões de reais anuais escorrendo para contracheques de magistrados, sem que, de fato, tenha-se controle externo sobre rubricas criadas, pagamentos efetuados e atividades exercidas. O CNJ não realiza controle externo porque sua composição mantém a predominância de magistrados, o que compromete sua capacidade de fiscalização sobre a magistratura e, no que tange aos supersalários, tem sido fundamental em legitimar pagamentos acima do teto constitucional.

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O problema é clássico e tem sido articulado ao viés elitista e corporativista da magistratura em diferentes países. A questão é que, em outras democracias, como mostra a produção acadêmica internacional sobre o assunto e que cita o caso do CNJ, como são os trabalhos de Tom Ginsburg e de Nuno Garoupa, o modelo que zela somente pela autonomia em detrimento do controle tem sido superado, sendo adotados conselhos que asseguram controle externo democrático de fato.

É preciso compatibilizar a necessária independência das instituições judiciárias e a exigência de accountability democrática por parte da magistratura. No Brasil, no entanto, muito por conta da sua composição e perfil, o CNJ se tornou um órgão cuja autonomia é limitada pela estrutura corporativa, funcionando mais como um mecanismo de autocontrole corporativista do que como um órgão de controle externo democrático.

Nunca é demais dizer que em uma democracia, autonomia não é um valor absoluto, e todos, sem exceção, devem estar submetidos a mecanismos de controle, não apenas integrantes dos poderes Executivo e Legislativo, os políticos profissionais, mas também os ramos jurídicos da burocracia do Estado, incluindo as instituições judiciárias.

A permanência do modelo atual de controle sobre a magistratura ajuda a explicar por que os escândalos de corrupção no Judiciário continuam se repetindo, mesmo após 20 anos da criação do CNJ. Casos de venda de sentenças ainda são recorrentes e a punição mais grave que se tem notícia, quando ocorre, é aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais. Esse é um aspecto que precisa de mudança urgente na legislação.

Outro problema que expõe o CNJ é o fato de magistrados de instâncias inferiores simplesmente ignorarem ou interpretarem de maneira indiferente decisões do STF e do STJ, criando ambiente de insegurança jurídica no país, o que deveria ser coibido de forma rigorosa, pois compromete a previsibilidade das decisões judiciais e gera instabilidade sobretudo para o cidadão, para empresas e negócios, que não podem confiar plenamente na uniformidade da Justiça.

A independência do Judiciário é pilar do Estado de Direito e não se defende que magistrados devam ser mal remunerados, pelo contrário. O que é inconcebível é o cenário atual, em que a magistratura, instrumentalizando sua autonomia administrativa e financeira, drena o fundo público para contracheques de juízes de centenas de milhares de reais, muitas vezes em estados que atravessam grave crise fiscal. Todavia, esse é um dos problemas, talvez o mais evidente no momento.

Sem mudanças estruturais, como na composição do CNJ, na seleção e formação de juízes, no seu processo de vitaliciamento, na avaliação de desempenho e movimentação dessa carreira, a magistratura seguirá distante da realidade da maioria dos brasileiros e continuará sendo alvo de críticas legítimas, que não podem ser simplesmente desqualificadas como uma suposta perseguição da imprensa. Sem mudanças estruturais que incluam os servidores da Justiça, não se pode cogitar a democratização e eficiência desse Judiciário. É necessário, portanto, qualificar o debate.

Por fim, ponto alarmante é a sugestão no texto do desembargador, ainda que indireta, de que a magistratura deveria instrumentalizar, por suas associações de classe de juízes, o sistema jurídico contra a imprensa. Ao insinuar que o jornalismo “mascara, deturpa e exagera”, e ao enfatizar que os magistrados devem agir contra essas supostas injustiças, o autor parece defender a possibilidade de retaliação judicial contra veículos de comunicação, jornalistas e críticos que denunciam supersalários e privilégios do Judiciário.

Essa postura é perigosa porque pode ser interpretada como manifesto à defesa do assédio judicial, da censura e do enfraquecimento do papel fiscalizador da imprensa e da ciência produzida na academia, essenciais para qualquer democracia.

É fundamental destacar que a crítica aos supersalários e privilégios no Judiciário não representam um ataque ao Estado democrático de Direito, mas sim um esforço legítimo para aprimorar as instituições e garantir que a Justiça esteja adequada à Constituição, seja mais eficiente, acessível e justa para todos.

Ao adotar um tom corporativista e defender supersalários e privilégios sem reconhecer os problemas estruturais do Judiciário, distancia-se da realidade e reforça-se a percepção de que há, sim, uma elite operando dentro do Estado preocupada, principalmente, em manter seus privilégios intocados, em detrimento do interesse público.

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