Cabe à Corte IDH controlar o processo legislativo nos países-membros?

No último dia 10 de fevereiro, o STF recebeu a visita de representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para analisar a situação da liberdade de expressão no país. No dia 12, a delegação também esteve no Senado e a visita movimentou Brasília durante toda a semana passada (a agenda completa está aqui).

A delegação faz parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), fundada em 1948, com o propósito de criar “uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência” nos Estados-membros. Congregando os 35 Estados independentes das Américas, a OEA é organismo internacional regional mais antigo do mundo.

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A CIDH é o principal órgão autônomo da OEA. Criada em 1959, a CIDH é encarregada da promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano. Posteriormente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), instalada em 1979, somou-se à CIDH para integrar o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIDH).

Sem pretensões de especular sobre o diagnóstico que ensejou a visita ou sobre o conteúdo do relatório que será elaborado por Pedro Vaca Villareal, relator especial para a liberdade de expressão da CIDH, o propósito da coluna de hoje é discutir o controle de convencionalidade do processo legislativo. Mais especificamente, trata-se de saber se a Corte IDH pode sustar a tramitação de uma proposição legislativa no âmbito dos Estados-membros.

Antes, é preciso apresentar o caso paradigmático Barrios Alto vs. Peru, de 2001, o primeiro em que a Corte IDH decidiu pela declaração de invalidade de lei pertencente a um ordenamento jurídico nacional e obrigou o Estado a desconsiderar sua eficácia, no depois chamado controle de convencionalidade.

O caso concreto discutia a (in)compatibilidade das leis de anistia aos crimes praticados durante governos ditatoriais com as normas contidas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Na sentença, a Corte IDH declarou a responsabilidade do Peru pelas violações ao direito à vida de 15 pessoas e ao direito à integridade pessoal de quatro pessoas que foram gravemente feridas, sendo que uma delas ficou incapacitada de maneira permanente, em um imóvel no bairro conhecido como Barrios Altos, em novembro de 1991, em Lima.

Na esteira desse caso, a Corte IDH condenou o Peru também no caso La Cantuta vs. Peru, pelo desaparecimento forçado de 7 estudantes e um professor da Universidade La Cantuta, bem como pela execução de 2 estudantes dessa universidade, que foram arbitrariamente detidos em julho de 1992. Nos dois casos, a Corte declarou a violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial em prejuízo dos familiares das referidas vítimas.

Entre os desenvolvimentos desses casos, em 07 de junho de 2024, representantes das vítimas envolvidas nos casos Barrios Altos e La Cantuta pediram à Corte IDH o deferimento de medidas cautelares que, dentre outras providências, pediam a suspensão do Proyecto de Ley nº 6951/2023-CR, aprovado em primeira votação pelo Congresso do Peru no dia 6 de junho de 2024, com 60 votos a favor, 36 contra e 11 abstenções.

A proposta, que tinha sido apresentada no dia 1º de fevereiro de 2024, buscava limitar o alcance dos crimes contra a humanidade e crimes de guerra e declarar a prescrição dos processos relacionados a fatos anteriores a julho de 2002, prévios à vigência do Estatuto de Roma e da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade. O projeto recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição em 12 de março de 2024.

Ato contínuo à primeira votação, no dia 13 de junho, a Corte IDH determinou a suspensão imediata do processo legislativo do Proyecto de Ley nº 6951/2023-CR, em caráter liminar (solicitud de medidas provisionales), até que a Corte dispusesse de todos os elementos necessários para se pronunciar sobre o mérito do pedido e de seu impacto nos casos Barrios Altos e La Cantuta.

O fundamento legal da decisão foi a previsão do art. 63, 2, da Convenção Americana, pelo qual, em casos de extrema gravidade e urgência, e quando necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte poderá tomar as medidas provisórias (leia-se, cautelares) nos assuntos de que estiver conhecendo.

Do ponto de vista fático, alegou-se que a aprovação da iniciativa legislativa geraria um impacto sério e grave, de caráter irreparável, no direito de acesso à justiça das vítimas das violações de direitos humanos nos casos sentenciados pela Corte, pois estabeleceria uma prescrição automática, a nulidade das sanções eventualmente aplicadas, a inexigibilidade dessas e a não persecução penal de crimes por atos anteriores a 2002, que pudessem ser considerados crimes contra a humanidade ou crimes de guerra. Embora não fosse formalmente uma lei de anistia, na prática teria o mesmo efeito.

De acordo com a fundamentação apresentada pela Corte, o uso das faculdades outorgadas pelo art. 63, 2, da Convenção Americana, era necessário, pois a proposição já estava agendada para segundo debate no Congreso de la República del Perú.

A admissibilidade do pedido formulado à Corte IDH foi discutida pelo Estado, que considerou que o projeto de lei não alcançava as pessoas que foram condenadas nos casos supracitados e que não havia risco de dano irreparável, uma vez que, em caso de aprovação, as partes poderiam acionar um mecanismo interno estatal por meio do controle de constitucionalidade.

Como se vê, a determinação de suspensão implicou uma intervenção no processo legislativo nacional, afetando tanto o Poder Legislativo responsável pela tramitação, quanto o Poder Judiciário nacional, cujas funções de controle de constitucionalidade e de convencionalidade (de forma abstrata ou em caráter difuso) restaram esvaziadas. A decisão substituiu os poderes do Estado peruano no exercício de suas funções constitucionais.

Inclusive, a manifestação apresentada pelo Estado do Peru nos autos foi nesse sentido, tendo avançado também para outras considerações, em especial, o fato de que o processo legislativo ainda não fora finalizado; e que o Estado vinha demonstrando seu compromisso com a proteção e defesa dos direitos humanos. No entanto, as informações não foram suficientes.

Ao julgar o mérito, a Corte IDH exigiu que o Estado do Peru, por meio de seus três poderes de governo, tomasse as medidas necessárias para garantir que o Proyecto de Ley nº 6951/2023-CR, ou outros projetos de lei similares – que versem sobre a prescrição dos crimes contra a humanidade a que se referem as sentenças Barrios Altos e La Cantuta – não fossem aprovados, fossem tornados ineficazes ou não tivessem efeitos, a fim de garantir o direito de acesso à justiça das vítimas desses casos.

O fundamento central foi o de que a aprovação do projeto de lei constituiria um desrespeito à ordem dada pela Corte ao Peru no que se refere à proibição de aplicar a prescrição na investigação, julgamento e punição de condutas que, para além da tipificação no direito interno, constituem crimes contra a humanidade. In casu, entendeu-se que a tramitação legislativa contrariaria os padrões interamericanos sobre a obrigação de investigar graves violações de direitos humanos, que causariam um dano irreparável ao direito de acesso à justiça das vítimas nos casos concretos, em condições que geram um alto risco de que não se possa realizar um controle judicial de constitucionalidade e convencionalidade interno.

Para a Corte IDH, a promulgação de uma lei manifestamente contrária às obrigações assumidas por um Estado parte na Convenção Americana constitui, por si só, uma violação desta e gera responsabilidade internacional para o Estado.

Nada obstante a decisão da Corte IDH que suspendeu o processo legislativo do Proyecto de Ley 6951/2023-CR, o Congresso peruano, por meio de um comunicado compartilhado no X em 14 de junho de 2024, rejeitou “a intromissão” da Corte IDH e afirmou que, “com total independência e autonomia e nas oportunidades que julgasse convenientes”, tramitaria os projetos de lei com pareceres favoráveis aprovados nas comissões competentes.

Dias depois, em 4 de julho de 2024, com 15 votos a favor, 12 contra e nenhuma abstenção, a Comissão Permanente aprovou, em segunda votação, o parecer referente ao projeto de lei em comento. Ao final, no dia 10 de agosto de 2024, por sanção tácita, foi publicada a Ley 32107, que especifica a aplicação e o escopo do crime contra a humanidade e dos crimes de guerra na legislação peruana.

Em dezembro de 2024, foi apresentado o Proyecto de Ley 9761/2024, que pretende autorizar o Peru denunciar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a sair da jurisdição da Corte IDH, condicionando eventual pedido de reintegração à reserva sobre assuntos que devem ser tratados de forma soberana pelos peruanos (como a pena de morte) e o efeito vinculante das sentenças da Corte.

Dados os acontecimentos, vê-se que essa primeira tentativa (de que se tem conhecimento) de a Corte IDH realizar um controle de convencionalidade para suspender o processo legislativo nacional saiu fracassada.

Nada obstante, isso não significa a irrelevância do controle de convencionalidade, que poderá ser realizado pelo próprio Poder Legislativo, atento à jurisprudência da Corte IDH. Acionar a Corte IDH para barrar a tramitação de proposições eventualmente contrárias à Convenção Americana, sobretudo quando há chance de que sequer avancem, realmente parece excessivo.

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