Trump e a agenda ‘anti-woke’

Já dediquei alguns artigos à agenda ESG, tanto para explorar os seus fundamentos, inclusive à luz da racionalidade econômica[1], como também para destacar seus riscos, dentre os quais o de se tornar mera questão de marketing ou diversionismo[2]. Não obstante, a nova era Trump mal começou e já vem trazendo desafios adicionais para o tratamento do tema em face da agenda anti-woke, que tem se mostrado uma de suas pautas prioritárias.

Antes de mais nada, é importante lembrar que a cultura woke – cujo termo remete ao fato de se acordar para a importância da diversidade, equidade e inclusão – não deixa de ser um dos desdobramentos da agenda ESG, ainda que mais voltada para a justiça social e para a igualdade, notadamente de raça e gênero. Não é sem razão que o termo woke está relacionado ao movimento de luta por igualdade racial nos Estados Unidos em meados do século 20, assim como está associado à chamada pauta DEI (diversity, equity and inclusion ou diversidade, igualdade e inclusão).

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Verdade seja dita que a forma woke de ver os negócios e o próprio capitalismo sempre esteve cercada de controvérsias e dissensos. Antes mesmo da eleição de Donald Trump, já se observava uma redução das pautas identitárias nos Estados Unidos, ainda que a onda não tivesse chegado ao Brasil na mesma proporção[3].

Todavia, a segunda eleição de Trump vem se mostrando um divisor de águas na discussão, até porque foi imediatamente seguida por inúmeras mudanças nas políticas de diversidade e inclusão (D&I) nas big techs, como Meta, Google e Amazon, e também em outras grandes empresas, como Walmart e McDonald’s. Ao que se sabe, trata-se de uma reversão consistente da tendência à diversidade que ganhou força após o famoso assassinato de George Floyd.

Aliás, a declaração de Zuckerberg quanto à mudança da política de curadoria de conteúdos da Meta, a fim de flexibilizar os controles e as testagens até então existentes, implicou, para muitos, um dos marcos do declínio da cultura woke, já que a liberdade de expressão, sem qualquer controle quanto aos seus abusos, costuma causar prejuízos especialmente para as minorias e os mais vulneráveis.

Daí não ter havido nenhuma surpresa que a Meta também tenha descontinuado seus programas de diversidade e inclusão, tendo Mark Zuckerberg chegado a declarar em uma entrevista que sentia falta de “energia masculina” na cultura corporativa. É compreensível, nesse contexto, que a executiva Daniela Sapin anunciou neste mês em seu perfil no LinkedIn sua demissão voluntária da Meta alegando que, embora seja possível que corporações se alinhem política e economicamente a governos poderosos, não poderia apoiar a velocidade e a intensidade da virada retórica da empresa[4].

Vale ressaltar que tal agenda hoje se alastra igualmente para a academia, pois vários bilionários norte-americanos decidiram apoiar apenas universidades anti-woke. O próprio Trump, além de ter determinado a retirada de fundos de escolas que ensinam teorias woke[5], associou o recente acidente entre um avião e um helicóptero militar que vitimou 67 pessoas em Washington aos critérios de diversidade que pautariam as contratações, indicando que a agenda woke estaria relacionada à incompetência[6].

Na verdade, em menos de duas semanas, Trump expediu uma série de ordens executivas  para reverter as políticas woke em prol da suposta meritocracia. Mais do que isso, afirmou que as iniciativas woke seriam medidas discriminatórias, anti-americanas e dirigidas por uma agenda de esquerda, deixando claro que a política de banimento deve abranger igualmente agências governamentais e universidades[7].

Em recente reportagem, a Reuters tenta sumarizar o que vem acontecendo nos Estados Unidos[8]. Trump vem revogando diversas políticas de diversidade e equidade, que vão desde as que asseguram direitos dos transgêneros àquelas que procuram proteger pessoas que vivem em comunidades negras ou latinas com baixo rendimento e expostas a altos graus de poluição.

Ademais, Trump acabou com o que chama de ilegal discrimination nas práticas de contratação do governo, revogando políticas e direitos trabalhistas que remontam a 1965, assim como proibindo que companhias que contratem com o governo federal ofereçam qualquer tipo de ação afirmativa.

A reportagem da Reuters ainda indica que os procuradores-gerais de 13 estados governados por republicanos enviaram cartas aos CEOs das maiores companhias do país advertindo que tratar diferentemente pessoas em razão da cor da sua pele, mesmo que para propósitos benignos, é ilícito e errado. A mensagem também afirma que as companhias que prosseguirem com tais iniciativas incidirão em discriminação racial, com todas as graves consequências jurídicas daí decorrentes.

Como se pode ver, estamos diante de um verdadeiro conjunto coordenado de iniciativas que, além de terem efeitos imediatos no setor público, também se projetam sobre o setor privado, a partir de ameaças e constrangimentos.

Logo, pelo menos no âmbito empresarial, é precipitado atribuir a reversão da agenda anti-woke a uma mera questão de oportunismo político de muitos agentes econômicos. Afinal, muitos podem estar desistindo de suas políticas de inclusão simplesmente por estarem sendo coagidos, o que compromete a espontaneidade e a voluntariedade da agenda.

Talvez por essa razão, os reflexos da onda anti-woke ainda não tenham chegado ao Brasil com a mesma intensidade, embora seus efeitos já possam ser sentidos. Recentemente, a nova vice-presidente executiva de pessoas da Vale, Catia Porto, afirmou em postagem no seu Instagram que a chamada cultura woke está perdendo espaço para o que ela chama de movimento “MEI”, sigla para “mérito, excelência e inteligência”[9].

Não obstante, várias companhias brasileiras, como Banco do Brasil e Natura, continuam defendendo a importância da diversidade[10], assim como a B3 se mantém firme na defesa da pauta. Nesse sentido, o presidente da B3 deu recente declaração dizendo que não vai recuar da agenda de diversidade, o que foi reforçado pela presidente de marketing, comunicação, sustentabilidade e investimento social da B3, inclusive sob o fundamento de que a pauta gera melhores resultados para os negócios[11].

Entretanto, não se pode ignorar que as iniciativas anti-woke avançam no Brasil, inclusive por meio do Legislativo. Como exemplo, pode ser citada a Câmara Municipal de São Paulo, onde a bancada da direita criou verdadeira agenda anti-woke, a fim de lutar contra pautas identitárias e direitos de minorias[12].

Ainda que não se possa extrair conclusões definitivas sobre as repercussões e os resultados de médio e longo prazo do processo ora descrito, as informações atualmente disponíveis já nos permitem extrair ao menos algumas conclusões importantes.

Em primeiro lugar, os fatos recentes reforçam o quanto a teoria econômica tradicional, ao ignorar a importância do poder e da política para a conformação dos mercados, é descolada do mundo real, onde são intensas as relações entre o poder político e o poder econômico.

Na verdade, este último costuma ser fonte do primeiro e dele se utilizar para uma série de vantagens, assim como a recíproca também é verdadeira. Trata-se de reflexão relacionada ao capitalismo de camaradagem (crony capitalism), que é um problema crônico desde os primórdios do capitalismo[13].

Em segundo lugar, observa-se na justificação da agenda anti-woke argumentos incorretos, como é o caso da busca da meritocracia, ignorando que esta não existe em um mundo real que não assegura as mesmas oportunidades para todos e que, sem as ações afirmativas, a chamada pauta MEI – mérito, excelência e inteligência – torna-se fácil subterfúgio para a defesa dos privilégios das classes dominantes.

Com efeito, a principal razão das pautas identitárias é precisamente a de promover maior igualdade de oportunidades para minorias que, por uma série de razões não justificáveis, como as inúmeras formas de discriminação ilícita ou abusiva, foram historicamente excluídas do acesso à educação de qualidade e a melhores empregos. Daí por que, sob vários aspectos, tais ações afirmativas são medidas que, longe de burlarem o mérito, buscam assegurá-lo.

Outro argumento que aparece reiteradamente, mas de forma insuficiente, é o que relaciona a agenda anti-woke à defesa da eficiência, sem que sejam considerados os inúmeros estudos que apontam para a importância da diversidade na inovação e na criatividade, com a consequente geração de melhores resultados para as companhias.

Em terceiro lugar, observa-se a importância dos governos no desenho dos mercados. Não bastasse o papel simbólico das declarações e dos vários atos de Trump no setor público e nas universidades que dependem de fundos estatuais – o que já seria bastante relevante – fato é que se criou nos Estados Unidos um ambiente de ameaça e temor para os agentes econômicos, que acaba criando forte e indevida pressão para a implementação da agenda anti-woke.

É bastante grave que empresários americanos estejam recebendo comunicados dos procuradores-gerais de seus estados com ameaças de punição caso mantenham suas pautas de diversidade. Esta circunstância, somada a muitas outras, evidenciam que, muito mais do que o oportunismo e a conveniência política que fazem com que empresários possam querer se alinhar a governos, existe aqui um exemplo de verdadeira coerção, que afasta a possibilidade de se entender que se trata de adesão voluntária.

Dessa maneira, há boas razões para se concluir preliminarmente que, na atualidade, a agenda anti-woke, pelo menos no contexto norte-americano, longe de avançar em razão da iniciativa espontânea dos empresários ou da solidez e robustez dos seus argumentos, ganha espaço também por uma questão de poder e ameaça. Resta saber se os empresários efetivamente comprometidos com o tema, tanto nos Estados Unidos como nos demais países, terão condições de resistir.


[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/capitalismo-de-stakeholders-e-investimentos-esg

[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/diario-secreto-dos-investimentos-esg

[3]

Como a onda anti-woke interfere nas políticas de diversidade

[4] https://istoedinheiro.com.br/executiva-saida-da-meta-nao-posso-apoiar/

[5] https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/trump-assina-ordem-para-retirar-fundos-de-escolas-que-ensinam-agenda-woke/

[6] https://www.nytimes.com/2025/01/30/us/politics/trump-plane-crash-dei-faa-diversity.html

[7] https://www.theguardian.com/us-news/2025/feb/02/trump-woke-dei-culture-wars https://www.theguardian.com/us-news/2025/feb/02/trump-woke-dei-culture-wars

[8] https://www.reuters.com/sustainability/boards-policy-regulation/analysis-can-diversity-inclusion-survive-trumps-war-woke-2025-02-17/

[9] https://investalk.bb.com.br/noticias/economia/compromisso-ou-marketing-movimento-anti-woke-reacende-debate-sobre-diversidade-nas-empresas

[10] https://investalk.bb.com.br/noticias/economia/compromisso-ou-marketing-movimento-anti-woke-reacende-debate-sobre-diversidade-nas-empresas

[11] B3 não vai recuar em agenda de diversidade, diz presidente. Folha de São Paulo. Edição de 13.022025, A10

[12] https://www.metropoles.com/sao-paulo/bancada-de-direita-cria-agenda-anti-woke-na-camara-de-sp-entenda#google_vignette

[13] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/direito-da-concorrencia-e-democracia-o-que-um-tem-ver-com-o-outro; https://www.jota.info/coberturas-especiais/as-claras/precisamos-falar-sobre-lobby

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