Corte IDH condena Brasil pelo assassinato do trabalhador rural Manoel Luiz da Silva

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil pelo assassinato do trabalhador rural sem-terra Manoel Luiz da Silva, ocorrido em 19 de maio de 1997, no município de São Miguel de Taipu (PB). A Corte entendeu que o Estado brasileiro falhou em garantir justiça e proteção aos direitos dos familiares da vítima, permitindo a impunidade do crime.

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À época com 40 anos de idade, o trabalhador rural sem-terra foi assassinado por capangas quando voltava de uma mercearia junto a outros três colegas. Eles foram atacados ao passar por uma estrada dentro da Fazenda Engenho Itaipu, que estava em processo de expropriação para reforma agrária.

Os agressores atiraram contra os trabalhadores, e Manoel morreu no local. O caso teve uma investigação falha e parcial, com demora na realização de perícia e desconsideração do contexto de violência contra trabalhadores rurais.

Em 2003, os dois acusados foram absolvidos pela Justiça brasileira, e o terceiro suspeito nunca foi localizado. Nenhuma investigação foi conduzida contra o proprietário da fazenda, apesar das ameaças contra trabalhadores rurais na região.

Atualmente, a área onde se desenvolveu o conflito agrário é um assentamento rural que leva o nome de Manoel Luiz. No entanto, muitos dos trabalhadores rurais que chegaram com ele ao local foram embora logo após o crime, por medo de represálias. Até abril de 2022, o assentamento Manoel Luiz tinha 700 pessoas e, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), se encontrava com grandes dificuldades de infraestrutura e ausência de políticas públicas.

Conforme observou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a investigação teve início no dia seguinte ao crime, mas foi marcada por falhas e omissões por parte do Estado brasileiro. Como exemplo, menciona que a polícia usou os mesmos cavalos utilizados pelos suspeitos do crime, além de não ter recolhido algumas provas consideradas essenciais para a solução do caso.

Na sentença, a Corte IDH cita a falta de uma resposta efetiva do Estado na investigação, violando também a integridade e o direito à verdade dos familiares de Manoel Luiz. A sentença determina que Brasil deve indenizar em US$ 20 mil cada um dos familiares de Manoel Luiz, assim como oferecer suporte psicológico adequado e garantir a reparação do caso a partir de um ato público de reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro. O Tribunal também estabeleceu que a sentença seja publicada, bem como haja um pedido formal de desculpas públicas por parte do Brasil. 

Além disso, a Corte IDH determinou que o Estado elabore e implemente, no prazo de dois anos, por meio de um órgão estatal competente, um sistema regional específico para o estado da Paraíba para a coleta de dados e estatísticas relativas a casos de violência contra pessoas trabalhadoras rurais.

Segundo a decisão, essas medidas visam avaliar de forma precisa e uniforme o tipo, a prevalência, as tendências e os padrões da referida violência, desagregando os dados por estado, origem étnica, militância, gênero e idade.

Também há a determinação para que seja especificada a quantidade de casos que foram efetivamente judicializados, identificando o número de acusações, condenações e absolvições. Essas informações, segundo a sentença da Corte, deverão ser divulgadas anualmente pelo governo do estado da Paraíba, garantindo seu acesso à população em geral, e deverá ser assegurada a reserva de identidade das vítimas.

Contexto de violência contra trabalhadores rurais e seus defensores

Como foi assinalado pela Corte IDH no Caso Sales Pimenta vs. Brasil, desde o período colonial o Brasil vivenciou uma distribuição desequilibrada da propriedade. Conforme observou a Corte, a concentração de terras no Brasil se manteve estável desde 1980. Os conflitos agrários existentes nas diferentes regiões do Brasil, segundo pontua, são o resultado dessa grande concentração de terras nas mãos de poucos proprietários.

Entre 1961 e 1988, foram reportadas 1.196 mortes no campo relacionadas com conflitos pela terra. No estado da Paraíba, por exemplo, ocorreram 19 casos de mortes e desaparecimentos de camponeses e apoiadores. De 1985 a 2022, registraram-se 2.107 assassinatos no campo relacionados com conflitos agrários, com uma média anual deste tipo de homicídio comparável à média observada durante a ditadura militar brasileira.

“A violência no campo na Paraíba durante a época do homicídio de Manoel Luiz da Silva levou à instalação, em 8 de maio de 2001, de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (doravante, ‘CPI’) 22 para investigar denúncias de violência no campo e a formação de milícias privadas no estado da Paraíba”, diz um trecho da sentença da Corte IDH.

Quanto à responsabilização criminal dos autores intelectuais e materiais dos homicídios perpetrados contra trabalhadores rurais, dos 1.280 trabalhadores rurais assassinados no Brasil entre 1985 e 2000, apenas 121 casos foram levados a julgamento. Em relação a esses casos, 67 pessoas foram condenadas.

“A esse respeito, a impunidade no Brasil tem sido denunciada por organismos e especialistas internacionais, como a Relatora Especial das Nações Unidas sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, que, em seu relatório sobre a visita ao Brasil em 2003, destacou que ‘em alguns casos, os juízes estão sujeitos a pressões dos governos locais ou de atores econômicos influentes, como os latifundiários’”, pontua a decisão da Corte.

Hoje eu estou com sentimento de justiça, apesar dos quase 28 anos da passagem do assassinato de Manoel Luiz. Uma vez que a justiça no Brasil absolveu os acusados, essa iniciativa da Justiça Global com a CPT e Dignitatis de levar à Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgar o país, dá uma sensação de que, mesmo tarde, a justiça tá acontecendo”, afirmou Tânia Maria, representante da Comissão Pastoral da Terra/Nordeste (CPT-Nordeste). 

“A condenação do Estado brasileiro hoje retrata um momento histórico. Como continuamos com o contexto de tantas violências no campo, essa sentença é um documento importantíssimo, não só para reconhecer e colaborar no processo de reparação das vítimas e dos familiares de Manuel Luiz, mas também para que a gente possa ter um instrumento a mais de luta e de monitoramento de políticas públicas efetivas para combater a violência no campo na Paraíba, em outros estados do Nordeste e em todo o Brasil”, declarou Hugo Belarmino, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e advogado da Dignitatis.

“A condenação do Estado Brasileiro nesta terça-feira é fruto de quase trinta anos de luta por justiça. Nesse tempo, pouco se avançou no país para efetivamente sanar a chaga da violência no campo, enfrentar os crimes cometidos pelo latifúndio e garantir justiça a todas as violações perpetradas”, disse Daniela Daniela Fichino, diretora adjunta da Justiça Global.

“Em um país em que trabalhadores rurais sem terra e seus movimentos de luta seguem criminalizados, ameaçados e intimidados, esta condenação abre mais um precedente internacional para que mudanças estruturais  sejam implementadas”, concluiu. 

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