Compras públicas e prorrogação da contratação vencedora

É papel do jurista interpretar normas para, dentre outros, contribuir com a evolução e o desenvolvimento social. E a cada nova legislação que entra em vigor, é geralmente por meio dos operadores do direito que surgem diversas interpretações sobre a nova legislação. Quando tais interpretações vêm de autoridades e juristas renomados, é comum que se tornem referências que influenciam diretamente, de modo positivo ou negativo, a vida prática da sociedade.

O Brasil é um país com milhões de advogados, inúmeras faculdades de Direito, diversos tribunais administrativos e judiciais, contando com milhares de julgadores que possuem uma certa autonomia decisória, centenas de órgãos de controle somados às esferas municipal, estadual e federal. É um país que conta com milhares de municípios, 26 estados (além do Distrito Federal), a União e uma produção legislativa diária incessante em todas as esferas da federação.

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Em um contexto como este é natural que existam diferentes interpretações sobre cada nova legislação que é introduzida no país. Interpretações que, por vezes, trazem entendimentos completamente antagônicos criando dificuldade na compreensão sobre qual a regra correta ou forma mais adequada a ser seguida. Com o desafio de saber o que é certo ou o que traz menos risco, produtos e serviços ficam mais caros impactando o bem estar do cidadão e dificultando o crescimento econômico e social.

Como não se vislumbra a mudança da produção legislativa e a redução das diversas interpretações que são dadas às normas, resta a cada cidadão tentar realizar uma análise crítica do que está lendo. E isso não é fácil ante a baixa qualidade educacional do país. O desafio é ainda maior pelo fato de que, geralmente, os textos interpretativos foram escritos por juristas com termos técnicos. Além disso, são textos que podem estar sob a influência de interesses e vieses conscientes e inconscientes.

Foi a partir de uma destas análises críticas que me deparei com doutrinas, artigos acadêmicos e não acadêmicos interpretando, por vezes de forma distinta, o artigo 84 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que trata sobre a possibilidade de se prorrogar por mais um ano o prazo de vigência de uma ata de registro de preços, na hipótese em que ficar comprovado o preço vantajoso desta prorrogação para a Administração Pública.

De forma bem resumida e simplista, a Administração Pública utiliza de uma sistemática chamada registro de preços para, formalmente, registrar os preços de bens e serviços que poderão ser adquiridos pelo ente público licitante, se assim desejar. Nesta sistemática, fornecedores participam de um processo formal de licitação que, ao final, resulta em uma ata oficial. Tal ata, na qual são registrados o objeto, preços, entre outros, possui prazo de vigência determinado.

A legislação anterior, que ficou em vigor por praticamente 10 anos no Brasil, ao tratar sobre o prazo de vigência da ata de registro de preços definiu que este prazo determinado não poderia ser superior a 12 meses e, portanto, não poderia ser prorrogada. Essa era uma regra teórica já sedimentada. Teórica pois, no campo prático, existiam normas municipais que permitiam a prorrogação da ata ensejando controverso debate sobre a legalidade destas normas.

Com a mudança da Lei de Licitações e Contratações Públicas, já em vigor deste abril de 2021, estabeleceu-se uma nova regra sobre o prazo de vigência da ata de registro de preços. A novidade é que o prazo de um ano passou a poder ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso. Mas a mudança, introduzida com o objetivo de trazer mais flexibilidade e eficiência à Administração Pública, ainda gera debates entre juristas, gestores públicos e fornecedores.

A título de exemplo, há pessoas que defendem que essa prorrogação se aplica à totalidade dos bens e serviços que restaram registrados na ata de preços, ao passo que, outros, defendem uma aplicação mais restritiva em que apenas o saldo restante das compras que não foram realizadas é que poderia ser prorrogado. Há quem defenda a necessidade de regulamentação mais detalhada sobre o tema. E há quem defenda a inconstitucionalidade da norma.

A questão é que tais debates dificultam a compreensão sobre qual a regra correta a ser seguida. E, com isso, a realidade nos mostra uma perda de eficiência e impacto negativo na vida diária do país. O gestor público mais conservador, por exemplo, deixa de aplicar a inovação legislativa com receio de penalidades. Perde-se uma janela de oportunidade que o legislador criou para trazer agilidade e eficiência a um processo de contratação pública.

Como essa realidade insegura existe (talvez seja definitivamente resolvida após décadas), ao probo gestor público que não deseja perder uma janela de oportunidade diante de um caso concreto e, que busca simplificar e agilizar o funcionamento do Estado, que fique claro que o caminho já lhe foi dado pelo legislador ao fomentar e enfatizar a importância do planejamento prévio das licitações e expressamente facultar a extensão da vigência da contratação.

Assim, enquanto os debates ao redor do tema não cessam, cabe ao gestor público planejar o processo licitatório incluindo no edital da licitação, de forma objetiva, quais serão as regras para eventual prorrogação da contratação (ex.: se volume total ou parcial do que está registrado na ata original); e, quando e se necessário, restará ao gestor público executar motivadamente a prorrogação da ata apontando as consequências práticas decisórias e o vantajoso preço para o Estado.

Auxiliar o gestor público a não deixar se levar por visões interpretativas meramente abstratas e ideológicas é uma forma de ajudar a compreender qual a regra mais adequada a ser seguida pela sociedade. Da mesma forma, interpretar as normas conforme os fins sociais a que se destinam, tentando afastar-se o tanto quanto possível dos vieses, é uma das formas de se melhorar o ambiente de negócios e fomentar a inovação e um país socialmente e economicamente menos desigual.

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