As novas gramáticas políticas e o risco do deslocamento da função controladora

O livro do professor Edson Nunes, derivado de sua tese de doutorado concluída em 1984 na Universidade de Berkeley, traz a interessante ideia de gramáticas políticas, trabalhando categorias centrais para a compreensão de nosso país, como o clientelismo, o corporativismo e o insulamento burocrático.

Essa construção encontra aderência na teorização desenvolvida por Ludwig Wittgenstein, em sua fase tardia ou madura (investigações filosóficas), momento em que abandona a busca de uma linguagem perfeita para representar o mundo de forma unívoca (tratactus lógico-philosophicus).

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Ao se afastar do engessamento e do essencialismo dos conceitos (representação), passa a compreender a linguagem em uma perspectiva (constitutiva) na qual as significações são mutáveis e contextualizadas em função do seu uso nas práticas sociais em que estão inseridas (jogos de linguagem), constituindo assim regras gramáticas (ou gramáticas) particulares em função das dimensões sintática, semântica e pragmática que se lhes dão contornos próprios.

Nesse cenário desafiador trazido pelo giro linguístico-pragmático da linguagem, é que se torna possível constatar que nesses quarenta anos, o Brasil e o mundo mudaram, com a constatação de que emergiram novas gramáticas, ainda que as anteriores continuem válidas como chaves de interpretação da realidade.

E essas gramáticas, pela forma mesma como se estruturam, afetam a dinâmica das políticas públicas, e no caso da presente discussão, interessa saber de que modo essas novas categorias afetam a função controle, que nessas quatro décadas teve uma ascensão da periferia para a centralidade no âmbito das discussões nacionais, mas que está a vivenciar, no que podemos identificar, uma “crise de identidade”, na medida em que se desloca de seu papel ou propósitos originais (constitucionais), talvez por ainda não se acomodar adequadamente às exigências dessas novas gramáticas políticas.

Para compreensão do problema, inicialmente é necessário pontuar que a função controle é a instrumentalização da chamada accountability no âmbito da atuação estatal no Brasil, que à parte das instituições políticas e judiciais, é partilhada por atores extra orgânicos, como os Tribunais de Contas, e intraorgânicos, como as Unidades Centrais de Controle Interno, em consonância com o modelo constitucional de 1988.

Essas instituições administrativas desempenham relevante papel avaliativo, de promoção da responsabilização e da transparência, limitando os poderes dos governos democraticamente eleitos e promovendo o aprimoramento da gestão pública com foco no cidadão.

Compreendidas as premissas teóricas da pesquisa, tem-se que a primeira gramática emergente é a calcificação, estudada recentemente por Nunes e Traumann (2023), e que trata de uma fossilização política da sociedade brasileira em torno de grupos polarizados afetivamente, ou seja, com base em aspectos emocionais, afetando a vida pública e privada e que ao impedir a construção de consensos, (re)alimenta e reproduz as vicissitudes e recalcitrâncias da política do amigo/inimigo, desenvolvida (com propósitos específicos) por Carl Schmitt, nos tempos da Alemanha de Weimar.

Assim, se não há consenso, se não há lógica na construção das opiniões e caminhos, como controlar a internalização e a disseminação das informações por um dos lados da disputa, sem gerar o caos? Como, nessa perspectiva, poderá a função controle gerar diagnósticos confiáveis que possibilitem o aprimoramento da gestão e das entregas do Poder Público?

A guerra permanente entre grupos faz da função controle um instrumento de ataque ao talante e em função da interpretação enviesada de cada lado, com a repetição e a perpetuação de ações e comportamentos imunes à qualquer tentativa de intervenção ou de aferição dos benefícios do controle, o que de outro lado, inibe sua atuação a tempo e modo, também pelo medo das instituições controladoras, de serem fagocitadas por essa guerra permanente[1].

A segunda gramática é o efeito diversionário, identificado em um mundo de informações e contrainformações, dominado por expressões como verdade, pós-verdade, elementos factuais ou realidade paralela, que no turbilhão de novas tecnologias e do uso massivo das redes sociais, é assombrado por um sem-número de fake news e deep fakes, potencializadas com a vulgarização da inteligência artificial, de modo a fazer da certeza como verdade factual algo cada vez mais raro.

Essa desinformação é utilizada para manipular a sociedade e os governos de modo que ao jogar com insatisfações narcisistas das tribos em conflito, faz com que a opinião pública seja levada a olhar para aspectos acessórios (obter dictum) das questões relacionadas às políticas públicas, tendo sua atenção concentrada e desviada em um jogo pautado na economia de atenção.

Com a centralidade do acessório, a função controle termina por ser demandada e direcionada para o que é de menor importância, o que pode fazer com que seus resultados sejam drenados nesse jogo de desinformação, no qual ela deixa de ser fomentadora da ordem para ser a geradora de confusão, enquanto os problemas reais continuam a crescer e produzir efeitos deletérios.

A última gramática proposta é a simplificação, ou seja, a visão de que tudo no campo da política e dos problemas sociais reside na falta de vontade individual, e que as questões são simples e de resolução fácil, e geralmente truculenta, em uma lógica reducionista e que olha as questões de forma unilateral, monolítica e superficial, bastando apenas ações heroicas e diretivas para que as coisas se resolvam.

Essa visão monocular afeta sobremaneira temáticas sensíveis como as políticas para enfrentamento da corrupção, que por envolver pilares morais profundos, faz com que a abordagem de referência seja encarada quase que como uma profissão de fé, na qual a visão repressiva conduzida por virtuosos agentes do controle imbuídos de uma missão sacralizada, passa a ser a única (e simples) saída para expiar mal tão profundo e de matizes tão distintos.

Ocorre que o controle, diante da simplificação daquilo que é intrinsicamente complexo (tal qual a corrupção), tende a empobrecer as soluções por ele mesmo propostas, ao tratar o superficial sem adentrar nos pormenores das causas e na articulação necessária para a resolução dos problemas, deslocando-se das finalidades para as quais foi constituído na dicção da Constituição cidadã de 1988 e do extenso plexo normativo posterior que trata da matéria.

Os desafios estão postos e dessa forma, como exposto na obra de Nunes, fica a mensagem de que os casos de sucesso nas políticas públicas no Brasil se relacionam com um melhor manejo, compressão e eventual reconfiguração dessas gramáticas no contexto da realidade brasileira, sem reducionismos/simplificações, visões unilaterais ou posturas enviesadas que apartam a função controladora de uma accountability material, mitigando suas potencialidades de atuar como protagonista na melhoria das entregas do Poder Público.


[1] Essa questão é captada de forma interessante por Hélio Schwartsman (2025) em recente coluna no jornal Folha de S.Paulo. Para o autor, “quando você encontra seu malvado favorito na cena do crime, raramente se pergunta se ele é mesmo o culpado. O viés de confirmação é um traço psicológico ubíquo. Em algum grau, todos o apresentamos. Mas quem está interessado em descobrir a verdade deveria se esforçar para avaliar corretamente as evidências, sem desconsiderar a possibilidade de o seu malvado favorito ser inocente”.

DA EMPOLI, Giuliano.  Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. São Paulo: Vestígio Editora, 2019.

FERRAZ, Leonardo de Araújo. O administrativismo do século XXI: por uma visão renovada dos conceitos jurídicos indeterminados. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2013.

NUNES, Felipe; TRAUMANN, Thomas. Biografia do abismo. Ed. Harper Collins, 2023.

NUNES, Edson de Oliveira. A gramática política no Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. -3. Ed. –Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ; Brasília, DF: ENAP, 2003.

SCHWARTSMAN, Hélio. Mitos progressistas. Folha de São Paulo, 01/02/2025, acesso em 03/02/2025.

SIMON, Herbert. “Designing organizations for an information-rich world”, in Martin

GREENBERGER (Org.). Computers, Communication, and the Public Interest.

Baltimore: Johns Hopkins Press, Baltimore, 1971.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.