Artigo 113 do ADCT e o devido processo legislativo: o caso da desoneração da folha

Na ADI 7.633, o presidente da República questiona, dentre outros, dispositivos da Lei 14.784/2023, que prorrogou a desoneração da folha de salários mediante benefícios fiscais relativos a contribuições previdenciárias para empresas e determinados municípios. Um dos argumentos apresentados pelo requerente aponta para a violação ao artigo 113 do ADCT, tendo em vista a falta de realização de avaliação de impacto orçamentário-financeiro durante o processo legislativo que apreciou o PL 334/2023, que culminou na impugnada Lei 14.784/2023.

Em 7 de outubro de 2024, o pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, referendou medida cautelar concedida em abril do mesmo ano pelo relator, ministro Cristiano Zanin, para suspender a eficácia dos dispositivos legais questionados, “enquanto não sobrevier demonstração do cumprimento do que estabelecido no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (com a oportunidade do necessário diálogo institucional) ou até o ulterior e definitivo julgamento do mérito da presente ação pelo Supremo Tribunal Federal”, atribuindo efeitos ex nunc a essa decisão[1].

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Com base nessa decisão do STF, a questão central do presente artigo é: o artigo 113 do ADCT deve ser interpretado como requisito de validade (ou seja, requisito de constitucionalidade formal) a ser atendido durante o processo legislativo ou é condição de eficácia para as leis já promulgadas produzirem seus efeitos?

Sobre o assunto, o relator fez o seguinte registro em seu voto: “é possível dizer, a partir da inclusão do art. 113 no ADCT que, atualmente, o controle do crescimento das despesas faz parte do devido processo legislativo”. Retomando o parecer da comissão especial da Câmara dos Deputados, que aprovou a PEC 241/2016 (que deu origem à EC 95/2016 e acrescentou o artigo 113 do ADCT à Constituição Federal), o ministro apontou que a sustentabilidade fiscal passou a fazer parte dos requisitos constitucionais para edição de outras normas infraconstitucionais. Citou, também, precedentes do STF sobre o tema, em que se entende o “art. 113 do ADCT como requisito formal de constitucionalidade das leis que criem ou alterem despesa obrigatória ou renúncia de receita”.

É interessante, entretanto, que o ministro, acompanhado pela maioria do tribunal, entendeu pela necessidade de concessão da cautelar para suspender o ato impugnado “até que o vício apontado seja sanado ou haja o julgamento definitivo da presente ação direta”, o que se refletiu no dispositivo decisório do acórdão, como acima reproduzido.

O ministro Luiz Fux proferiu voto vencido no caso, em que entendeu pela não ratificação da medida cautelar com fundamento basicamente em três argumentos. Como primeiro argumento, não haveria a necessidade de se fazerem novas estimativas orçamentárias e financeiras para a prorrogação de benefícios fiscais já existentes, uma vez que “a estimativa anteriormente feita pode servir de espeque para um debate qualificado sobre a conveniência e oportunidade da medida”.

Como segundo argumento, o ministro Fux pontuou que o relator do PL 334/2023 na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado efetivamente apresentou as estimativas de impacto orçamentário-financeiro – o que atenderia à exigência do artigo 113 do ADCT[2]. Como terceiro argumento, entendeu o ministro que o requisito previsto no artigo 113 do ADCT seria mera condição de eficácia dos atos legislativos e sua ausência apenas “irregularidade”, sanável “caso apresentado posteriormente o estudo”.

Diante desse cenário, volta-se à questão central do presente artigo: o artigo 113 do ADCT deve ser entendido como requisito de validade ou condição de eficácia da legislação que cria ou altera despesa pública ou renúncia de receita?

Nos termos do voto do relator, ministro Zanin, deve-se partir da constatação de que a norma extraída do artigo 113 do ADCT faz parte do devido processo legislativo. Como já ressaltado em obra dedicada ao tema[3], o devido processo legislativo – enquanto projeção de eficácia do princípio do devido processo legal sobre o processo legislativo – rearticula as demais normas do sistema jurídico brasileiro para que a tomada de decisão legislativa seja realizada em processo marcado por seus princípios estruturantes: igualdade política, participação social, publicidade, deliberação e eficiência. Justamente por fazer parte do devido processo legislativo, o artigo 113 do ADCT deve ser interpretado à luz de seu conteúdo normativo.

Diante desse quadro normativo, importa verificar qual interpretação do artigo 113 do ADCT melhor se coaduna com o devido processo legislativo e seus princípios estruturantes:

  1. a interpretação de que já no momento da deliberação e votação do projeto de lei devem estar disponíveis e publicizadas as estimativas de impacto para que os parlamentares tenham uma compreensão melhor de seus possíveis efeitos (em necessário exame de fatos e prognoses legislativos[4]); ou
  2. a que permite ao Poder Legislativo decidir pela alteração de despesas públicas ou benefícios fiscais sem as informações de seus impactos, apreciando essa questão somente após a promulgação da lei já aprovada.

Deve ser ressaltado que a primeira interpretação é a que melhor se compatibiliza com o devido processo legislativo constitucional: o artigo 113 do ADCT é verdadeiro requisito de validade – e, portanto, de constitucionalidade formal – do processo legislativo, devendo ser respeitado durante o processo de elaboração de norma legislativa.

Especialmente os princípios da publicidade, deliberação e eficiência do devido processo legislativo apontam claramente para esse sentido, exigindo um incremento informacional durante o processo de apreciação de um projeto de lei para que ela possa ser fundada em prognoses mais razoáveis e realistas em debate com a sociedade sobre quais custos devem ser suportados pelo poder público.

Pouco agregaria à qualidade do processo legislativo aprovar primeiramente uma lei e somente depois identificar quais seriam suas consequências. Exatamente essas razões também justificam a necessidade de reavaliação do contexto fático e jurídico presente no momento de decisão de ampliação ou prorrogação de medidas legislativas de vigência determinada.

Nesse sentido, vale reiterar o parecer da comissão especial da Câmara dos Deputados que apreciou a PEC 241/2016, que deu origem à EC 95/2016: “as despesas obrigatórias só surgem com a concordância e a autorização do Congresso Nacional. Para que a estrutura do Novo Regime Fiscal se mantenha, e para que consigamos os resultados  esperados,  é  fundamental  que  o  Congresso,  ao debater as proposições, tenha a oportunidade de conhecer os respectivos impactos orçamentário e financeiro”.[5] 

“Ao debater as proposições”, aqui, deixa claro que a apreciação do impacto orçamentário-financeiro de proposições legislativas, nos termos do artigo 113 do ADCT, deve ser prévia e não posterior à edição de lei – o que reforça sua natureza de requisito de constitucionalidade formal.

Também os precedentes do STF, inclusive os mencionados pelo relator do caso presente, apontam no sentido de que o artigo 113 do ADCT é requisito de validade do processo legislativo. Por esse fundamento, o tribunal:

  1. na ADI 5.816[6], declarou a inconstitucionalidade de concessão de benefício estadual de ICMS a igrejas e templos,
  2. na ADI 6.074[7], declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que concedia benefício fiscal de IPVA para pessoas com doenças graves,
  3. na ADI 6.303[8], declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que concedia benefício de IPVA para determinados veículos, fixando a seguinte tese: “é inconstitucional lei estadual que concede benefício fiscal sem a prévia estimativa de impacto orçamentário e financeiro exigida pelo art. 113 do ADCT”; e
  4. na ADI-MC-Ref 7.145[9], concedeu medida cautelar para suspender dispositivos de lei estadual que concediam reajustes a servidores públicos, aposentados e pensionistas.

Destacam-se, também, a ADI 6.102[10] e a ADI 6.080[11], em que o STF chegou à conclusão de que havia inconstitucionalidade formal de lei estadual que previa a concessão de benefícios remuneratórios sem prévia instrução da proposta legislativa com a estimativa do impacto orçamentário-financeiro.

Contudo, em razão da produção de efeitos por certo período da legislação impugnada e da natureza alimentar das verbas remuneratórias, o tribunal decidiu por modular os efeitos de sua decisão de mérito para que somente produzisse efeitos a partir da publicação da ata de julgamento.

Voltando ao caso presente da ADI 7.633, deve-se concordar com as colocações feitas pelo relator em relação à compreensão da norma do artigo 113 do ADCT como verdadeiro requisito de constitucionalidade formal, que, caso não atendido durante o processo legislativo, leva à inconstitucionalidade da lei assim gerada. Essa constatação, contudo, levanta dois pontos importantes para o julgamento de mérito da ADI 7.633.

Primeiramente, a melhor compreensão da norma do artigo 113 do ADCT é a de que a obrigação de apresentação dos estudos de impacto orçamentário-financeiro pode ser feita não apenas no momento de apresentação da proposição, mas também durante a tramitação do projeto. O processo legislativo é justamente a prática social institucionalizada de construção coletiva de entendimentos majoritários a partir da troca de razões de maneira pública.

Diferentemente do processo de elaboração de propostas e atos normativos pelo chefe do Poder Executivo, o processo legislativo é o lócus privilegiado para o confronto de opiniões e visões de mundo diversas, de modo que o amadurecimento do debate sobre uma questão ocorre justamente durante seu transcorrer e não necessariamente a priori no momento de apresentação de uma proposição.

Além disso, permitir que os estudos de impacto orçamentário-financeiro sejam apresentados não apenas pelo autor da proposição, mas também – como no caso presente – por comissão que examina a matéria, possibilita que especialmente as minorias parlamentares – com menor estrutura de apoio administrativo e informações se comparada à maioria ou ao Executivo – consigam apresentar projetos relevantes, em homenagem ao princípio da igualdade do devido processo legislativo.  Nesse caso, os necessários estudos serão produzidos durante o processo legislativo mobilizando o foco político e a capacidade institucional das Casas Legislativas.

Dessa forma, a corrente vencedora do acórdão em exame deveria ter analisado a alegação de que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado teria apresentado os estudos para estimativa de impacto econômico-financeiro do PL 334/2023. Como alertou o ministro Fux em seu voto vencido, foram efetivamente apresentados dados a respeito das projeções de custos fiscais e benefícios sociais da medida então proposta.

Ao tribunal caberia, portanto, se desincumbir do ônus argumentativo de fundamentar o porquê dessas informações serem insuficientes à luz do artigo 113 do ADCT. Ressalta-se que não se devem exigir estudos demasiadamente complexos, mas tomando por parâmetro o art. 16, § 2º, da LRF, as “premissas e metodologia do cálculo utilizadas”, ainda que possam ser objeto de legítima contestação e debate público.

O segundo ponto que merece ser debatido no momento de apreciação do mérito pelo tribunal é qual o significado do “diálogo institucional” em face da regra do artigo 113 do ADCT[12].

Como já exposto, deve-se reiterar o acerto da jurisprudência estável da corte de que desse dispositivo constitucional extrai-se uma verdadeira regra que, caso desrespeitada, implica a inconstitucionalidade formal de um ato legislativo. Dessa maneira, novamente nos termos do entendimento da maioria no presente caso, verificada a violação ao artigo 113 do ADCT, a norma legislativa assim gerada é inconstitucional e, seguindo a tradição do direito brasileiro, nula de pleno de direito.

As considerações feitas pelos ministros sobre os possíveis impactos orçamentários ou sobre os contribuintes em decorrência de sua decisão dizem respeito ao plano da eficácia da lei e não ao plano da validade.

Em outras palavras, nesse caso, eventuais considerações sobre as consequências da nulidade de pleno de direito da lei inconstitucional e da desconstituição de todos seus efeitos inclusive para o passado devem ser apreciados em sede de modulação de efeitos da decisão do STF e não como forma de “sanar” o vício de inconstitucionalidade do art. 113 do ADCT.

Essa foi, inclusive, a opção corretamente adotada pelo tribunal ao julgar a ADI 6.102 e ADI 6.080, em que se declarou a inconstitucionalidade de leis estaduais que concediam reajustes a servidores públicos por violação ao artigo 113 do ADCT, mas se adotou a modulação de efeitos com base nas circunstâncias do caso concreto.

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Permitir que medidas legislativas e administrativas posteriores “corrijam” uma violação ao artigo 113 do ADCT significaria entender que esse dispositivo constitucional estabeleceria apenas uma condição de eficácia e não verdadeiro requisito de constitucionalidade formal. Com isso, na prática, seria incentivada a elaboração de leis sem a apreciação necessária dos possíveis impactos orçamentários e financeiros, em prejuízo dos princípios estruturantes do devido processo legislativo e da estabilidade fiscal.

Conclui-se, portanto, que quando do julgamento do mérito da ADI 7.633, o tribunal terá a oportunidade de fixar o entendimento sobre a natureza de requisito de constitucionalidade formal do artigo 113 do ADCT à luz do devido processo legislativo e sua importância para o equilíbrio das contas públicas.

Caso verificada, a partir do diálogo institucional, situação de grave comprometido da segurança jurídica ou do funcionamento das atividades do Poder Público em razão de eventual decisão de inconstitucionalidade com eficácia ex tunc, poderá o tribunal, então avaliar a necessidade de modulação dos efeitos de sua decisão, nos termos do artigo 27 da Lei 9.868/1999.

*

Agradeço à profa. Nina Pinheiro Pencak pelos comentários à versão prévia deste artigo.


[1] Vale lembrar que, antes desse julgamento colegiado, houve outras duas decisões cautelares referendadas pelo Plenário no mesmo processo, em que se concederam ampliações de prazo para a produção de efeitos da cautelar inicialmente concedida, em razão das tratativas existentes entre Poder Executivo e Poder Legislativo para sanar-se possível violação ao art. 113 do ADCT (ADI-MC-segunda-Ref 7.633, Rel. Min. Cristiano Zanin, j. 05/06/2024 e ADI-MC-terceira-Ref, Rel. Min. Edson Fachin (Vice-Presidente), j. 26/08/2024). Em decorrência do diálogo institucional entre Executivo e Legislativo, também houve a promulgação da Lei 14.973, de 16 de setembro de 2024, que tratou do tema objeto da ação.

[2] Relatório do Senador Ângelo Coronel, apresentado à CAE do Senado Federal em 22/05/2023, p. 2: “Embora o gasto tributário da desoneração seja estimado pela Receita Federal  do  Brasil  em  R$  9,4  bilhões,  o  efeito positivo à economia supera os R$ 10 bilhões em arrecadação – considerando o acréscimo de mais de 620 mil empregos dos 17 setores  desonerados  em  2022  e  o  decorrente  crescimento  de receitas advindas de impostos e de contribuições.”

[3] Victor Marcel Pinheiro, Devido processo legislativo: elaboração das leis e seu controle judicial na democracia brasileira, Rio de Janeiro, Editora GZ, 2024, item 5.1.3, “O art. 113 do ADCT: a exigência constitucional de estimativas de impacto orçamentário-financeiro de proposições legislativas”.

[4] Cf. Gilmar Ferreira Mendes, “Controle de constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial”, Revista Jurídica Virtual 8 (2000), pp.1-14.

[5] Relatório do Dep. Darcísio Perondi, aprovado pela Comissão Especial da PEC 214/2016, proferido em 06/10/2016, pp. 49-50.

[6] STF, Pleno, ADI 5.816, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 05/11/2019.

[7] STF, Pleno, ADI 6.074, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 21/12/2020.

[8] STF, Pleno, ADI 6.303, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 14/03/2022.

[9] STF, Pleno, ADI-MC-Ref 7.145, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 30/05/2022.

[10] STF, Pleno, ADI 6.102, Rel. Min. Rosa Weber, j. 21/12/2020.

[11] STF, Pleno, ADI 6.080, Rel. Min. André Mendonça, j. 05/12/2022.

[12] Vejam-se dois artigos recentes que problematizam os limites e possibilidades dos acordos e conciliações em processos de controle abstrato de constitucionalidade, Celso de Barros Correia Neto, Acordos na jurisdição constitucional, 25/01/2025, e André Rufino do Vale, Audiências de conciliação no STF, 01/02/2025.

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