Mais acesso ou mais atraso à saúde: qual Brasil queremos?

Em 2024, mais de 120 mil pessoas morreram no Brasil em razão de acidentes vasculares cerebrais (AVC) e problemas cardíacos. É como se, anualmente, cidades do porte de Barretos (SP) e Bento Gonçalves (RS) sumissem do mapa. Essas mortes poderiam ser evitadas tratando-se duas doenças básicas, o diabetes e a hipertensão. Mas não é o que acontece. A não adesão a medicamentos beira 54% no país, contra 50% da média mundial.

Para completar o cenário, a última pesquisa do Conselho Federal de Farmácia (CFF) a respeito da automedicação aponta que quase metade dos brasileiros cultiva esse hábito pelo menos uma vez por mês, e 25%, diariamente ou pelo menos uma vez por semana. No total, 77% dos brasileiros adotam essa medida. E dados do Sistema Único de Saúde (SUS) revelam que existem 2,8 milhões de internações anuais decorrentes de efeitos adversos de remédios. 

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É nesse contexto nada favorável que ressurge a discussão da venda de medicamentos isentos de prescrição (MIPs) nas prateleiras dos supermercados, sem previsão de assistência farmacêutica presencial e ao lado de linguiças e picanhas.

Os defensores dessa ideia exploram como argumento a necessidade de ampliar acesso e ainda combater a inflação. Ora, no Brasil já existem 93 mil farmácias, sem contar a robusta infraestrutura do SUS, que cobre 100% dos municípios brasileiros e provou sua relevância e eficácia no combate à pandemia de Covid-19. Não faltam, portanto, locais para se adquirir remédios. 

Os MIPs, apesar de não exigirem receita, apresentam riscos e muitas vezes exigem indicação específica, tanto que em 68% das ocasiões de compra o cliente esclarece suas dúvidas com o farmacêutico acerca do uso. Embora seja segura, essa classe de medicamentos ainda pode mascarar sintomas. Uma pessoa que só controla dor de cabeça com analgésico, mas ignora a hipertensão que causa o problema, é a mesma que vai agravar, ter AVC, infarto, desenvolver nefropatia e onerar o Estado no médio prazo.

Meta-análises publicadas recentemente – ou seja, estudos padrão-ouro que geram consensos científicos – vêm demonstrando inúmeros fatores negativos na venda de MIPs em autosserviço. Tanto que Austrália e França recentemente impuseram novos limites às vendas da categoria.

As alegações relacionadas à redução de preços também esbarram na realidade. É uma falácia afirmar que os supermercados venderiam medicamentos com preços até 35% mais baixos. Como premissa para estabelecer suas estratégias comerciais, o varejo farmacêutico monitora preços de mais de mil itens comuns a farmácias e supermercados, e estes estabelecimentos vendem mais caro em 50% das vezes. Por que itens como fraldas, cotonetes e tinturas não podem ser utilizados para atenuar os impactos da inflação?

Curiosamente, esse movimento em favor dos MIPs em supermercados começou a ganhar força um dia depois de o presidente Lula ter afirmado que aguarda uma “marca” que represente um legado dessa gestão do Ministério da Saúde em seu governo. Será lamentável que, num governo que sempre colocou a saúde das pessoas em primeiro lugar, a tal “marca” seja a destruição das farmácias, o aumento da automedicação e o agravo de doenças crônicas.

Permitir a venda de medicamentos em supermercados, dividindo espaço com bebidas, óleo de cozinha e cereais matinais, é banalizar um produto seguro, mas não isento de riscos. É sinalizar ainda que está tudo bem cuidar apenas dos sintomas, livrar-se da dor de cabeça, e não manter a doença crônica sob controle.

Não precisamos de mais locais para vender remédios. O Brasil necessita vencer o abandono do tratamento, o mal das mortes precoces por doenças evitáveis. Para isso, é fundamental fazer check-ups na população, identificar riscos e encaminhá-la ao médico. Investir na educação do usuário promoverá a melhora na saúde brasileira. 

A democratização do acesso proporciona ainda redução de despesas em médio e longo prazo. Vejamos o caso das vacinas, regulamentadas nas farmácias desde 2017. O preço médio por paciente, que girava em torno de R$ 140 a R$ 180, despencou para R$ 70.

É por meio desse avanço que vamos desafogar a rede pública, ampliar o controle do diabetes, da obesidade e da hipertensão, aumentar a interação com os médicos, diminuir os danos das doenças e incentivar a adesão ao tratamento. Podemos evitar a ida do paciente ao ambiente hospitalar para um mero curativo e reduzir as implicações sanitárias a que ele certamente estará exposto. 

Estamos falando de mais acesso e menos custo, sem deixar de lado o cuidado e a segurança. E essas palavras, definitivamente, não combinam com atraso.

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