Modelos regulatórios de água e esgoto: um convite à reflexão contínua

Na esteira de alcançar as metas de universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, vários governos estaduais têm optado pela diligência de estruturação de projetos de concessões regionalizadas destes serviços.

Até o final do ano de 2024 haviam sido estruturados 11 contratos que projetaram compromissos de investimentos na ordem de R$ 128 bilhões ao longo de, pelo menos, 35 anos de vida contratual[1].

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Sob a perspectiva mercadológica, atrair esses recursos significa prover incentivos por meio de sinais claros e previsíveis no regime regulatório escolhido pelos projetos.  Isso direciona olhares para os modelos de regulação adotados. Essa estrutura desempenha importante papel na atratividade do investimento[2], ao mesmo tempo em que se destacam preocupações com preços, comportamentos oportunísticos e abusos de poder de monopólio.

Essa arquitetura conceitual e sistêmica tentará conciliar objetivos distintos[3] de investidores e consumidores, sendo também responsável por lidar com o legado de problemas emergentes[4] e de novas circunstâncias no contexto da execução dos contratos.

Na discussão sobre os modelos regulatórios, é comum o enfoque na forma de abordagem quanto à definição dos principais regramentos tarifários, referenciando-se em geral os modelos discricionário e contratual[5].  Mas, ao se discutir esse assunto, também são igualmente relevantes as escolhas acerca do que será abordado pelos modelos.

Dentro desse conteúdo, estão decisões sobre: (a) as formas de cálculo dos reajustes tarifários (recomposições inflacionárias); (b) os procedimentos de revisões periódica e extraordinária dos níveis das tarifas; (c) a dinâmica dos indicadores de desempenho sobre a remuneração do prestador de serviços; (d) o desenho de preços das estruturas tarifárias; (e) os subsídios às tarifas; (f) o reconhecimento dos investimentos para remuneração; (g) a distribuição de responsabilidades nas matrizes de riscos; (h) os instrumentos disponíveis para efetivar o reequilíbrio econômico financeiro; e (i) tudo o que for relacionado com a estrutura e a organização da agência reguladora[6].

O tema ganhou repercussão diante da magnitude e da especificidade do processo de privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) [7], ocorrido em 2024. Naquela ocasião, o arranjo limitou a abordagem discricionária da entidade de regulação, vinculando-a às disposições contratuais.

Em uma visão geral acerca dos demais projetos estruturados, além dessa limitação, é possível encontrar características semelhantes como, por exemplo: (a) aplicação de estruturas tarifárias concebidas em um contexto anterior à conformação das áreas de exploração dos contratos; (b) variações de instrumentos disponíveis o reequilíbrio econômico-financeiro; (c) reajustes tarifários por cesta de índices de variação de preços; (d) extensas matrizes de risco; (e) Introdução da figura do verificador independente; (f) contratos regulados por agências estaduais; (g) prazos contratuais de 35 anos em média etc.

Ao longo desses prazos, essas estruturas deverão ser submetidas a várias circunstâncias e contextos como, por exemplo, transformações comportamentais da sociedade e alterações legislativas estruturais. Mudanças como a formalização legal da reforma tributária e da tarifa social de água e esgoto parecem estimular o aprofundamento de uma reflexão sistêmica, continuada e responsiva sobre as arquiteturas regulatórias.

Essas legislações trazem novos requisitos para o dimensionamento de custos tributários e diretrizes para a cobrança tarifária a grupos familiares de baixa renda. Em contraponto, os estudos referenciais dos contratos em execução dimensionaram custos tributários em um regime diferente do que estará em vigor nos próximos anos.

Nessa mesma observação, os arranjos regionalizados em execução também dispõem de algum limite percentual de economias a serem cobertas com tarifa social em relação ao total de economias constantes nos cadastros das prestações de serviço. A nova legislação[8] veda o estabelecimento desses limites de incidência, de forma que qualquer alteração dessa participação relativa na tarifa deverá ser reequilibrada para o prestador do serviço.

Isso agrega novas premissas ao arranjo de negócio concedido: o custo dos tributos será diferente e o desconto que materializa a tarifa social deve ser disponibilizado aos usuários elegíveis ao benefício dentro da área de exploração da concessão.

Avaliar as implicações decorrentes desse novo contexto poderá evidenciar variações significativas de custos e receitas, as quais poderão motivar o ajuste de mecanismos regulatórios e a reconfiguração de investimentos, bem como pedidos de aumento de tarifas. Nos contextos de seus enfrentamentos, equacionar essas diferenças deverá endereçar desafios quanto à funcionalidade do modelo regulatório estabelecido em cada concessão, assim como poderá trazer a recorrência a processos de renegociação.

É possível que essa perspectiva carregue em si um dos primeiros testes de flexibilidade e adaptação dos regimes de regulação recentemente estruturados e implementados a partir da reforma setorial em 2020. Tal como um sistema de suspensão automotiva ao se deparar com os desníveis de uma estrada, os modelos regulatórios escolhidos na estruturação dos arranjos serão exigidos no contexto dos contratos em execução. Daí a preocupação continuada.

Além disso, essas mudanças trazem novos requisitos para os novos projetos. Sob esses enquadramentos, talvez um dos desafios seja conceber soluções e novos modelos regulatórios que consigam ser percebidas como justos, ao longo de novas circunstâncias e novos contextos.


[1] Dados obitidos a partir das pesquisas nas plataformas Hub de Projetos do BNDES https://hubdeprojetos.bndes.gov.br/pt/projetos/nossos-projetos ; Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo (SEMIL) https://semil.sp.gov.br/desestatizacaosabesp/documentacao/; Superintendência de Parcerias e Concessões do Estado do Piauí (SUPRAC) https://suparc.sead.pi.gov.br/contrato-e-anexos/

[2] ALEXANDER, Ian; HARRIS, Clive. 2005. The Regulation of Investiment in utilities: concepts and applications. World Bank. Disponível em:  https://documents1.worldbank.org/curated/zh/652031468140974650/pdf/343650PAPER0Re101OFFICIAL0USE0ONLY1.pdf Acesso em 16.dez.2024

[3] KERF, Michael; GRAY, David R.;IRWIN, Timothy ; LEVESQUE, Celine; TAYLOR, Robert. 1998. Concessions for Infrastructure: A guide to their design and award. World Bank. Disponível em  https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/sites/default/files/2024-08/concessions_fulltoolkit.pdf Acesso em 15.dez.2024.

[4] GOMEZ-IBANEZ, José A. 2008. Private Infrastructure in Developing Countries: Lessons from Recent Experience. World Bank Group. Disponível em http://documents.worldbank.org/curated/en/792651468330979826/Private-infrastructure-in-developing-countries-lessons-from-recent-experience  Acesso em 22.dez.2024

[5] Ver os conceitos estabelecidos nos incisos XIII e XIV do artigo 3º da Norma de Referência nº 6/2024, aprovada pela Resolução nº 183 da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), em 5 de fevereiro de 2024. Disponível em https://www.gov.br/ana/pt-br/legislacao/resolucoes/resolucoes-regulatorias/2024/183

[6] GUASCH, J. Luis. 2004. Granting and Renegotiating Infrastructure Concessions : Doing it Right. WBI Development Studies;. Washington, DC: World Bank. Disponível em https://openknowledge.worldbank.org/server/api/core/bitstreams/b1aa5a37-d7d9-52f1-a2be-ad3afd15c8c2/content Acesso em 20.dez.2024

[7] Ver. HIRATA, Taís; GUIMARÃES, Fernanda. Exclusivo: Governo de SP define regulação após privatização da Sabesp; veja pontos. Valor Econômico. São Paulo, 2024. Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/02/14/exclusivo-governo-de-sp-define-regulacao-apos-privatizacao-da-sabesp-veja-pontos.ghtml Acesso 21.dez.2024.

[8] Ver § 2º do art. 8º da Lei Federal nº 14.898, de 13 de junho de 2024. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/leis-ordinarias/2024-leis-ordinarias Acesso em 02.jan.2025.

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