Audiências de conciliação no STF

O ano judiciário de 2025 começará nesta segunda-feira (3/2) e um prognóstico sobre o que marcará o processo decisório do Supremo Tribunal Federal já pode ser estabelecido: a corte seguirá dando prioridade e investindo grande parte de seus recursos institucionais na busca de soluções consensuais para os conflitos constitucionais.

As audiências de conciliação, que em 2024 chamaram a atenção da comunidade jurídica pela quantidade de atos conciliatórios produzidos e pelos profícuos resultados alcançados[1], seguirão ocupando lugar de destaque na agenda das deliberações do tribunal.

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Um olhar retrospectivo sobre a atuação do STF no último decênio (2015-2025) demonstra que, assim como as reformas realizadas para o aperfeiçoamento das deliberações virtuais, o investimento feito nesse período para a adoção de novas normas e práticas de conciliação[2] foi capaz de redesenhar significativamente o processo decisório, que hoje revela uma corte que delibera de modo muito diferente do que há dez anos.

Nesse contexto de mudanças institucionais, é importante observar que a conciliação, que já era utilizada para alcançar acordos em processos subjetivos (especialmente em conflitos federativos), passou nos últimos anos a ser também adotada nos processos de controle abstrato da constitucionalidade das normas[3].

A crescente busca por soluções consensuais e negociações processuais também tem sido verificada nos processos estruturais[4], nos quais as denominadas audiências de contextualização[5]têm proficuamente servido para abrir canais de diálogo institucional do tribunal com outros órgãos e entes políticos e ampliar a cognição do colegiado sobre todos os elementos fáticos, jurídicos e políticos envolvidos na execução das complexas decisões nesses processos.

O fato é que, atualmente, é possível observar um número significativo de acordos na jurisdição constitucional, os quais já compõem um conjunto de casos interessantes para o desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre esses novos desenhos institucionais do processo decisório no STF. Por isso, o fenômeno das conciliações tem atraído a atenção dos especialistas no processo constitucional brasileiro[6].

Hoje existe uma grande preocupação em relação às diversas questões que podem ser levantadas sobre a realização dessas conciliações, as quais, devido à escassez de estudos e pesquisas, ainda não foram suficientemente respondidas. Algumas perguntas em aberto dizem respeito à própria adequação desses procedimentos conciliatórios para o controle abstrato da constitucionalidade das normas (a constitucionalidade seria um valor disponível?) e à decisão sobre direitos fundamentais (os direitos podem ser negociados?)[7].

Outras questões podem ser atribuídas ao rito e à dinâmica das audiências (quem pode participar, quem pode transigir, quais as oportunidades e como são distribuídos os tempos de fala etc.), ao impacto em precedentes e outros processos (acordos podem superar entendimentos anteriores da própria corte?; como proceder quando existem questões prejudiciais a serem decididas em outros processos em julgamento no tribunal?), todas ainda carentes de normas e procedimentos mais específicos que regulem a sua realização com as garantias processuais.

Portanto, muitos questionamentos rondam as audiências de conciliação no STF, que já estão sendo objeto de investigação e análise de professores da área, incluindo os que participam deste Observatório Constitucional. Sem pretender alcançar conclusões peremptórias neste momento e neste pequeno espaço da coluna, é preciso desde logo reconhecer que o caminho para as respostas a essas questões deve passar pela compreensão das conciliações no contexto mais amplo das deliberações e das práticas argumentativas que se desenvolvem no STF.

As audiências de conciliação constituem mais um momento deliberativo do tribunal[8]. Em adição às práticas argumentativas que se desenvolvem na realização das audiências públicas e na circulação de razões pelos amici curiae, as audiências de conciliação também integram os momentos deliberativos que cumprem a função de ampliar a cognição da corte sobre os casos em julgamento.

Enquanto nas audiências públicas e por meio dos amici curiae são levadas diretamente ao tribunal razões apresentadas unilateralmente, nas audiências de conciliação as razões são construídas dialogicamente em debates orientados pelo alcance de soluções alternativas e consensuais. Quanto a esse aspecto da abertura procedimental a múltiplas possibilidades de decisão, o fenômeno das audiências também pode ser encarado como mais um capítulo da já muito comentada influência do pensamento de Peter Häberle (Möglichkeitsdenken) na atuação do STF[9].

Nos tribunais constitucionais, o processo deliberativo deve se desenvolver conforme certas diretrizes epistêmicas[10], e uma das mais importantes é a amplitude informativa e cognitiva, a qual impõe a ampla distribuição e circulação entre os deliberadores das informações disponíveis sobre o tema em debate e ordena que, na maior medida possível, sejam ampliadas as vias de acesso e de conhecimento a todas as questões envolvidas e nuances dos problemas enfrentados.

A amplitude informativa e cognitiva é diretamente proporcional à qualidade do processo deliberativo, pois quanto mais ampla for a oferta de informação no seio do colegiado e quanto mais extenso e profundo for o conhecimento de cada deliberador sobre as questões em discussão, maior será a probabilidade de que a deliberação atinja níveis elevados de qualidade epistêmica.

As audiências de conciliação, ao possibilitarem que os participantes do processo constitucional se reúnam presencialmente para ativamente dialogar sobre suas razões, interesses e propostas de soluções, ampliam significativamente o conhecimento do tribunal sobre todos os aspectos (sobretudo os fáticos) dos casos.

Uma maior quantidade de informações e um elevado conhecimento dos temas enfrentados implicam maior probabilidade de que os participantes da deliberação possam trabalhar dentro de um quadro mais amplo de possibilidades de decisão e vislumbrar soluções alternativas para os casos. Tem-se aqui, portanto, uma diretriz para a negociação e a formação de acordos racionalmente justificados em torno de terceiras (ou múltiplas) vias de decisão.

A prática das audiências de conciliação contribui para a melhor percepção do tribunal sobre o papel da negociação no contexto mais amplo das suas práticas de argumentação e de decisão. A deliberação nos diversos tribunais constitucionais comumente se caracteriza por ser uma espécie de negociação, em que os participantes atuam de modo estratégico visando conciliar posições e construir maiorias em torno de um posicionamento que se sagre vencedor na deliberação colegiada.

É uma característica do comportamento deliberativo dos magistrados de um tribunal a disposição para a formação de consensos fáticos, os quais dependem de escolhas estratégicas e concessões mútuas entre os diversos atores. A argumentação constitucional, portanto, tem também um inegável viés de negociação, que não pode ser menosprezado do ponto de vista teórico[11].

A negociação, porém, não é o único tipo de argumentação observado em audiências de conciliação. Como mais um momento no iter deliberativo da corte, as audiências de conciliação envolvem diferentes discursos argumentativos. E não poderia ser de outra forma.

A prática argumentativa em diversos âmbitos institucionais – inclusive no âmbito dos órgãos judiciais e, especificamente, em Tribunais Constitucionais – pode estar permeada por uma pluralidade de modos de debater que podem acontecer num mesmo contexto e momento argumentativo, dentre os quais assume inegável relevância prática a deliberação (como espécie de discussão crítica) e a negociação (como tipo de argumentação estratégica).

A realidade de uma argumentação pode revelar o acontecimento simultâneo de mais de um tipo de debate. As transições entre diferentes tipos de debates (dialectical shifts)[12] num mesmo contexto e momento argumentativos caracterizam a realidade dos fenômenos argumentativos.

Nas argumentações desenvolvidas nos tribunais constitucionais não é diferente. As práticas argumentativas podem conter elementos tanto de diálogo crítico como de negociação. Ambas, deliberação e negociação, podem ser passíveis de distinção ou estarem combinadas ou sobrepostas num mesmo discurso. O aspecto que distingue a negociação da deliberação é o agir estratégico dos agentes que interagem em uma negociação no sentido de atingir um fim ou objetivo que não necessariamente é o fim ou objetivo do grupo como um todo.

Apesar de ser característica a ponto de muitas vezes tipificar a argumentação desenvolvida em conciliações, a negociação não é o tipo de discurso prevalecente em uma audiência de conciliação, a qual pode revelar diferentes debates, com as denominadas transições discursivas, sobretudo quando compreendidos no contexto mais amplo das deliberações do tribunal.

Isso fica claro quando se verifica que, na prática das audiências, sobretudo naquelas realizadas em processos de controle abstrato de constitucionalidade, os discursos passam a ser característicos de uma deliberação que responde à racionalidade discursiva própria de um diálogo crítico, afastando-se das ações estratégicas próprias dos discursos de negociação.

Além de poderem revelar transições de discurso e assumirem características próprias de uma deliberação, as audiências de conciliação não representam a última fase das deliberações do tribunal. Como as razões discutidas e consignadas nas audiências submetem-se necessariamente à reapreciação crítica do órgão colegiado para fins de homologação ou não das proposições, e assim permanecem abertas à rediscussão em novas rodadas deliberativas do plenário da corte, as audiências acabam constituindo, como afirmado anteriormente, apenas mais uma fase no iter das deliberações.

Assim como as audiências públicas e os amici curiae, as audiências de conciliação abrem nos processos constitucionais canais de diálogos institucionais e fornecem ao tribunal mais um instrumento visando à amplitude informativa e cognitiva quanto às questões (especialmente as fáticas) discutidas. Com essas características observadas na prática, as audiências estão longe de representar mesas de negociação sobre a (in)constitucionalidade de normas.

Portanto, nos processos de controle abstrato de constitucionalidade, as audiências de conciliação não estão vocacionadas a desenvolver argumentações estratégicas em torno da relação normativa e sistemática entre leis e Constituição.

Nos processos objetivos, as audiências constituem mais um momento deliberativo e acabam fornecendo um meio adicional de abertura procedimental às razões públicas, as quais, no curso do iter deliberativo, sempre serão submetidas posteriormente ao crivo final do plenário do tribunal, o qual possui a competência dada pela Constituição para o controle da constitucionalidade das leis.

As audiências de conciliação que debatem sobre direitos fundamentais devem assumir essas mesmas características discursivas, como mais um momento na deliberação do tribunal sobre limites e restrições ao seu âmbito de proteção. Na Teoria dos Direitos Fundamentais, a indisponibilidade é uma característica que conceitua os direitos, mas que não é incompatível com a submissão do seu âmbito de proteção a limitações e/ou restrições. A constitucionalidade das limitações interpretativas ou das restrições legislativas aos direitos fundamentais sempre esteve submetida à jurisdição constitucional do STF.

Compete ao plenário da corte deliberar sobre intervenções restritivas estabelecidas pelo legislador a direitos fundamentais protegidos pela Constituição. Nesses processos constitucionais, as audiências de conciliação poderão ser instauradas como mais um meio de abertura procedimental às razões fáticas e jurídicas que os participantes do processo, assim como diversos representantes da sociedade, possam levar à deliberação do tribunal sobre a (im)possibilidade de estabelecer limites e/ou restrições a determinado direito.

Em todo caso, as audiências de conciliação podem constituir mais um importante momento no curso das deliberações, assumindo as características de um diálogo crítico sobre limites e restrições a direitos, cujas razões sempre serão submetidas ao julgamento final do plenário. E em qualquer hipótese, o tribunal continua exercendo a sua precípua função contramajoritária e atuando na proteção judicial dos direitos fundamentais das minorias.

Todas essas considerações teóricas levam a refletir sobre possíveis falácias que podem estar sendo praticadas na análise das audiências de conciliação instauradas em processos objetivos e/ou que discutam a proteção de direitos fundamentais. Ao generalizarem a negociação como único tipo de discurso argumentativo desenvolvido em conciliações, essas análises deixam de levar em conta os demais tipos de debate (inclusive o fenômeno das transições discursivas) que na prática ocorrem nas audiências e nos demais momentos deliberativos no STF.

E ao afirmarem que os direitos estariam sendo objeto de barganha em mesas de negociação no tribunal, equivocam-se ao não trazer à tona no debate que em qualquer hipótese os direitos permanecem com a sua característica intrínseca e conceitual de serem indisponíveis, inclusive à própria corte, e que apenas as possíveis restrições ao seu âmbito de proteção normativo (sempre admitidas teoricamente) podem ser objeto das deliberações em audiências, em todo caso submetidas à reapreciação e ao julgamento final do competente plenário.

Enfim, questões como “o STF pode negociar direitos em audiências de conciliação?” podem não estar levando em consideração todos os aspectos argumentativos do atual fenômeno das conciliações. E isso precisa ser objeto de urgente reflexão dos especialistas que têm se dedicado ao tema. Para tanto, pesquisas empíricas (quantitativas e qualitativas) sobre as práticas discursivas das audiências de conciliação podem revelar dados cruciais para a descrição fidedigna e a análise teórica do fenômeno.

Em 2025, os necessários avanços nos estudos e pesquisas sobre as audiências de conciliação podem também incentivar o tribunal a promover, em parceria com a academia, debates sobre aperfeiçoamentos institucionais das conciliações, para a construção conjunta de propostas de uma regulamentação mais específica dos procedimentos aplicáveis. O ano judiciário que se inicia, sem dúvida, poderá ser marcado pela consolidação institucional das audiências de conciliação no STF.


[1] O número de audiências de conciliação e acordos alcançados tem aumentado a cada ano, no último decênio. De acordo com as informações fornecidas publicamente pelo Tribunal, limitando o período de pesquisa de dados quantitativos à última década (de 2015 a 2025, com dados atualizados até janeiro de 2025), verifica-se que 106 casos foram submetidos a procedimentos e técnicas de conciliação, com 242 audiências realizadas, das quais 46 chegaram a acordos homologados (apenas 21 sem acordo) e 39 permanecem em análise pela Corte. Fonte: Supremo Tribunal Federal do Brasil. Núcleo de Solução Consensual de Conflitos – NUSOL; Janeiro de 2025.

[2] Resolução nº 697, de 6 de agosto de 2020, que dispõe sobre a criação do Centro de Mediação e Conciliação, responsável pela busca e implementação de soluções consensuais no Supremo Tribunal Federal. Resolução n. 790, de 22 de dezembro de 2022, que criou o Centro de Soluções Alternativas de Litígios do Supremo Tribunal Federal (CESAL/STF). Ato Regulamentar nº 27, de 11 de dezembro de 2023, que criou o atual Núcleo de Solução Consensual de Conflitos – NUSOL, para apoiar os Gabinetes na busca e implementação de soluções consensuais de conflitos processuais e pré-processuais, bem como promover a cooperação judiciária do STF com os demais órgãos do Poder Judiciário.

[3] Entre os 106 processos submetidos à conciliação, mais de 30 correspondem a processos objetivos do controle abstrato de constitucionalidade das normas. Entre todas, destacam-se atualmente as ações ADC n. 87, ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586 e ADO 86.

[4] Processos estruturais sob análise do STF: ADPF 709; ADPF 743; ADPF 760; ADPF 854; ADPF 991; ADI 7688; ADI 7695; ADI 7697.

[5] Sobre o tema, confiram-se as importantes análises da Juíza Trícia Navarro, atual Coordenadora do NUSOL/STF, no artigo “Audiência de contextualização: um novo formato de diálogo processual”, publicado neste JOTA, em 27/08/2024.

[6] Alguns artigos publicados recentemente em colunas jurídicas demonstram que o fenômeno das conciliações no STF precisa ser melhor pesquisado e estudado. Entre os mais recentes, confira-se o artigo “Acordos na jurisdição constitucional: Um caminho para casos difíceis”, do Professor Celso de Barros Correia Neto, publicado nesta coluna do Observatório Constitucional (25/01/2025). Entre os artigos precursores, vejam-se as considerações do Professor Georges Abboud no artigo “Acordos no Supremo Tribunal Federal são bons, e eu posso provar”, publicado na revista Consultor Jurídico em 27 de agosto de 2024.

[7] Entre outros, confiram-se as importantes considerações do Professor Miguel Godoy no artigo “O Supremo pode negociar a constitucionalidade das leis? Uma nova fronteira do STF se abriu e está em expansão; se isso é certo, bom ou se vai dar certo, estamos vendo e testando”, publicado na coluna Supra do JOTA, em 3 de junho de 2024 (Acesso em https://www.jota.info/stf/supra/o-supremo-pode-negociar-a-constitucionalidade-das-leis).

[8] Como esclareço na obra “Argumentação Constitucional: um estudo sobre as deliberações nos Tribunais Constitucionais”, as práticas deliberativas ocorrem em diversos momentos no interior de uma Corte Constitucional. VALE, André Rufino do. Argumentação Constitucional: um estudo sobre as deliberações nos Tribunais Constitucionais. São Paulo: Almedina; 2019.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O pensamento de Peter Häberle na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal do Brasil. In: Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional núm. 12, julio-diciembre 2009, pp. 121-146.

[10] VALE, André Rufino do. Argumentação Constitucional: um estudo sobre as deliberações nos Tribunais Constitucionais. São Paulo: Almedina; 2019.

[11] Parece ser um equívoco dissociar e antagonizar a argumentação e a negociação, como se aquela fosse o único modo idealmente racional (racionalidade discursiva) de debater adequadamente no âmbito jurídico (especialmente nos órgãos judiciais) e esta se caracterizasse por atos de barganha pouco propícios para a fundamentação racional de discursos jurídicos. A argumentação jurídica e, portanto, também a argumentação constitucional levada a cabo no âmbito dos Tribunais Constitucionais, pressupõe idealmente o discurso pretensamente racional, mas também incorpora os atos negociativos que respondem a uma racionalidade de tipo estratégico. VALE, André Rufino do. Argumentação Constitucional: um estudo sobre as deliberações nos Tribunais Constitucionais. São Paulo: Almedina; 2019. Em sentido semelhante, confira-se: ATIENZA, Manuel. Curso de Argumentación Jurídica. Madrid: Trotta; 2013.

[12] WALTON, Douglas. Types of Dialogue, Dialectical Shifts and Fallacies. In: VAN EEMEREN, Franz; GROOTENDORST, Rob; BLAIR, J. Anthony; WILLARD, Charles A. (eds). Argumentation Illuminated. Amsterdam: SICSAT; 1992, pp. 133-147.

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