Acordos na jurisdição constitucional

A adoção de métodos de autocomposição, as soluções negociadas e a celebração de acordos tornaram-se mais frequentes no Supremo Tribunal Federal (STF). Num quadro político-institucional em que disputas entre Poderes e desacordos políticos não são incomuns, a conciliação parece oferecer um caminho para lidar com casos difíceis, sobretudo quando envolvem conflitos federativos amplos e/ou persistentes, dissensos políticos profundos ou risco de ineficácia ou reação legislativa à decisão do Tribunal.

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Acordos já foram celebrados no STF para, por exemplo, solucionar impasse entre União e Estados a respeito dos impactos das Leis Complementares n. 192 e n. 194, ambas de 2022, na exigência de ICMS-combustível, na ADPF n. 984 e na ADI n. 7.191, rel. Min. Gilmar Mendes. Também foram utilizados para assegurar a participação feminina em concursos públicos em andamento sem indevidas restrições de gênero, nas ADIs n.7.486, rel. Min. Dias Toffoli, e n. 7.433, rel. Min. Cristiano Zanin. Esforços nesse sentido foram ainda envidados na busca de solução normativa consensual para o cumprimento das providências determinadas na ADPF 854, de relatoria do Ministro Flávio Dino, que trata da execução de emendas orçamentárias.

Não parece despropositado apontar na conciliação constitucional um passo subsequente no caminho de abertura e democratização do processo decisório da Corte, do qual também fazem parte os amici curiae e as audiências públicas. Muito do aprendizado institucional acumulado nos últimos anos com esses institutos – erros e acertos – pode servir à consolidação da aplicação de métodos autocompositivos no Supremo.

O primeiro acordo homologado pelo Plenário do STF, em processo objetivo, foi provavelmente o celebrado na ADPF 165, em 2018. Na ação, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, discutiam-se perdas com expurgos inflacionários dos planos Bresser, Verão e Collor 2. A mediação, conduzida pela Advocacia-Geral da União, envolveu legitimados coletivos privados, representando poupadores e instituições financeiras, e o acordo dela resultante foi submetido ao Tribunal para homologação.

Em 1º de março de 2018, o Plenário do STF homologou um acordo coletivo num processo de índole objetiva, sem se comprometer com as teses em disputa, para pagamento das diferenças relativas aos Planos Econômicos Bresser, Verão e Collor II, excluídos os valores relativos ao Plano Collor I. A decisão não trouxe comando ou sugestão para o Poder Legislativo na matéria, nem produziu efeitos vinculantes. A despeito de se tratar de uma inovação no âmbito do Tribunal, as perplexidades e questões suscitadas eram, na verdade, mais afetas às ações coletivas, em que se pretendia tutelar interesses patrimoniais de correntistas e poupadores, do que às ações de controle abstrato.i

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Passados quase sete anos dessa decisão, os casos em que se adotaram soluções negociadas, em vez de decisões, tornaram-se paulatinamente mais numerosos no STF. Em 2020, na Presidência do Min. Dias Toffoli, a Resolução n. 697, de 6 de agosto de 2020, criou o Centro de Mediação e Conciliação (CMC), responsável pela realização de acordos no Tribunal. Mais recentemente, na Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso, o Tribunal passou a contar com um Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (NUSOL), criado pelo Ato Regulamentar n. 27, de 11 de dezembro de 2023. Cabe ao NUSOL, entre outras atribuições, apoiar os gabinetes na “implementação de soluções consensuais de conflitos processuais e pré-processuais”ii.

Os resultados alcançados são significativos. Os dados oficiais divulgados pelo Tribunal em seu sítio eletrônico dão conta de 242 audiências realizadas, 46 acordos homologados e outros 39 em análise, desde 2015. Uma fração desses casos, cerca de 25, diz respeito à aplicação de soluções consensuais em ações diretas (v.g., ADI, ADC, ADO e ADPF). Neles, o processo de conciliação constitucional, não raro, resulta em encaminhamento de propostas de alterações normativas ao Poder Executivo ou ao Congresso Nacional, como meio para pôr fim à controvérsia constitucional suscitada no feito.

Um acordo contendo providência dessa natureza foi homologado para dar cumprimento à decisão de mérito prolatada na ADO 25, de relatoria do Min. Gilmar Mendes. No julgamento da ação, o Tribunal declarou “a mora do Congresso Nacional quanto à edição da Lei Complementar prevista no art. 91 do ADCT, fixando o prazo de 12 meses para que seja sanada a omissão”. Mas o prazo transcorreu sem que a lei complementar tivesse sido efetivamente editada.

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O caminho adotado para lidar com o impasse político-legislativo foi a criação de uma comissão especial, integrada por representantes de todos os entes federativos estaduais, do Distrito Federal e da União, para construção de uma solução consensual legislativa para o caso. Os esforços resultaram na celebração de acordo homologado em Plenário em 20 de maio de 2020. Ali se ajustou o encaminhamento de Anteprojeto de Lei Complementar ao Congresso Nacional, a fim de regulamentar o art. 91 do ADCT, tal como já constava no acórdão de mérito prolatado na ADO 25. Da proposição apresentada, resultou a Lei Complementar n. 176, de 29 de dezembro de 2020, hoje em vigor.

Procedimento semelhante, com a criação de comissão especial e discussão de alteração legislativa, foi adotado conjuntamente também na ADPF n. 984 e na ADI n. 7.191, do mesmo relator, Min. Gilmar Mendes. Nas ações, enfrentou-se amplo e grave conflito federativo entre a União, de um lado, e os Estados, de outro, a respeito da definição de “essencialidade” para fins da cobrança de ICMS e dos impactos das alterações promovidas pelas Leis Complementares n. 192 e n. 194, de 2022, na arrecadação do imposto estadual.

Nesse caso, à diferença do que se viu na ADO n. 25, a solução consensual pôs fim à disputa antes – e em lugar – da decisão de mérito. O acordo homologado pelo Plenário foi encaminhado “ao Congresso Nacional para as providências cabíveis acerca do aperfeiçoamento legislativo nas Leis Complementares n. 192/2022 e n. 194/2022”. Coube à União, com base no ajuste firmado, apresentar o correspondente projeto de lei complementar ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei Complementar n. 136/2023, que, aprovado, deu origem à Lei Complementar n. 201/2023, hoje vigente.

Há também processos em que a construção do acordo político-legislativo deu-se fora dos autos, muito embora suas tratativas tenham sido tomadas como fundamento pelo Tribunal para decidir – ou não decidir – a questão constitucional. Foi o que sucedeu na ADI n. 7.633, de relatoria do Ministro Cristiano Zanin. O relator sobrestou os efeitos de decisão que antes havia suspendido a eficácia de disposições da Lei n. 14.784, de 2023, que prorrogavam a desoneração da folha. Decidiu assim para que pudessem avançar as tratativas entre o Executivo e o Congresso Nacional, com vistas à construção de uma solução de consenso para a matéria de fundo. Solucionada a desavença política e editada nova lei, a perda superveniente de objeto é o desfecho esperado para a ação.

À medida que aumenta o número de casos solucionados por acordos, o regime jurídico do instituto, ainda atravessado por múltiplas perplexidades dogmáticas, vai tomando forma na jurisprudência do STF. Progressivamente, recebe também mais atenção da doutrina especializada, atenta às vantagens e aos desafios que a celebração de acordos suscita na jurisdição constitucional.iii

Quem pode transacionar? Qual pode ser o objeto da conciliação constitucional no STF? Qual o momento adequado? Quem deve participar das audiências? Qual o rito aplicável? Acordos podem propor a superação de precedentes (ou do entendimento neles adotado)? Quais seus efeitos dentro e fora do processo judicial de controle de constitucionalidade?

Decerto, em processos em que não há partes, em sentido subjetivo, nem propriamente direitos a serem tutelados, senão a própria ordem constitucional, não se pode fazer uso de métodos de autocomposição, já consolidados em outros tipos de demandas judiciais, sem as adequações necessárias à natureza das ações em questão e dos interesses em disputa.

Por outro lado, assim como parcela da comunidade jurídica se ressente da falta de critérios claros para convocações de audiências públicas e para definição de quem pode ou deve delas participar, também os processos de conciliação constitucional podem receber ainda aprimoramentos institucionais, que permitam, e.g., aos participantes, aos interessados e, sobretudo, à sociedade conhecer, de antemão, as regras do jogo processual e os efeitos jurídicos dos acordos que se constroem no âmbito do Supremo.

É preciso reconhecer também que a constituição de Comissões de conciliação no Tribunal para discussão de soluções normativas para divergências de interpretação constitucional poderá, se indevidamente banalizadas, contribuir para acentuar tendência já conhecida de protagonismo político da Corte. Ou seja, deslocar para o Tribunal parte importante do debate político-legislativo que deveria se dar noutro foro – o Poder Legislativo. Contudo, rigorosamente esse não é um movimento inaugurado pelos acordos na jurisdição constitucional, nem uma razão para combatê-los.

Não é incomum, aliás, que representantes do Poder Legislativo sentem-se à Mesa e participem exitosamente da construção de propostas legislativas, na forma de anteprojeto, que seguirá, ao depois, seu trâmite legislativo regular, com v.g. inciativa, discussão e votação, consoante o rito adequado à espécie legislativa em questão. Em certos casos, não parece despropositado afirmar que a conciliação se faz entre Poderes. Ou seja, o acordo pode ser celebrado com o Poder Legislativo.

A bem da verdade, entendimentos entre autoridades públicas sempre existiram – e é bom que seja assim. Não faltam, como se sabe, exemplos históricos de superação de impasses institucionais graves e da articulação de solução de controvérsias políticas importantes por meio da concertação entre autoridades judiciárias, especialmente seus presidentes e representantes do Governo ou do Poder Legislativo.

A novidade está na forma, mais transparente e institucionalizada, como esses ajustes podem ser concebidos. O que muda é que esses esforços, que se fazem no bojo de um processo, sujeitos à razão pública e ao contraditório, podem ser tomados, aberta e democraticamente, como razões de decidir pelo tribunal – um aprimoramento institucional a ser festejado.

De resto, os acordos na jurisdição constitucional mostram o tamanho do desafio atual do controle de constitucionalidade, que não se resume a buscar a melhor hermenêutica, definir a justa interpretação constitucional ou simplesmente contrastar a letra da lei com a da Constituição Federal. É preciso dar concretude e força normativa ao texto da Constituição, uma tarefa muito mais complexa, que exige diálogo, capacidade institucional e concertação de esforços entre agentes de diferentes instâncias, poderes e níveis de governo. E, para tanto, é essencial produzir consensos.

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i A circunstância, aliás, foi destacada pelo próprio relator, Min. Ricardo Lewandowski, por ocasião da homologação do acordo em Plenário: “[…] este acordo apresenta ao Supremo Tribunal Federal questões que raramente se colocam perante o Poder Judiciário, já que, em nossa configuração institucional, o Ministério Público tem atuado de forma preponderante no processo coletivo. A litigiosidade coletiva relativa a expurgos inflacionários decorrentes de planos econômicos heterodoxos, nesse aspecto, foi excepcional, por consistir em exemplo de justiciabilidade privada coletiva”.

ii Para conhecer o trabalho do Núcleo, ver: https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=cmc&pagina=apresentacao

iii Cf. ABBOUD, Georges. Acordos no Supremo Tribunal Federal são bons, e eu posso provar, Diálogos Constitucionais, Consultor Jurídico, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-27/acordos-no-stf-sao-bons-e-eu-posso-provar/; CABRAL, Trícia Navarro Xavier, Os avanços da consensualidade no Supremo: uma corte multiportas. Consultor Jurídico, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-15/os-avancos-da-consensualidade-no-supremo-uma-corte-multiportas/; LEAL, Saul Tourinho, Mediações e conciliações no STF. DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro (org.). Inovações no sistema de justiça: meios alternativos de resolução de conflitos, justiça multiportas e iniciativas para a redução da litigiosidade, São Paulo, 2022, p. 855-879; VERAS, Diego Viegas, Métodos Autocompositivos e Governança Colaborativa na Solução de Conflitos pelo Supremo Tribunal Federal, Dissertação (Metrado em Direito e Poder Judiciário). Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Brasília, 2024, disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/194969 .

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