Controle externo da atividade policial: uma nova ótica de atuação do Ministério Público

A Constituição Federal estabelece em seu artigo 129 as funções institucionais do Ministério Público, o qual é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Em relação ao rol de funções institucionais, tradicionalmente se reconhecia a importância da atribuição do Parquet na ação penal, tendo em vista a titularidade desta, exercida de forma privativa, conforme o comando constitucional.

Posteriormente, com o reconhecimento dos direitos sociais e da própria efetividade da Constituição Federal enquanto garantidora do bem-estar social, o Ministério Público passou a ter uma importante atuação como órgão de garantia, principalmente promovendo o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III, da CF/88).

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Ocorre que, atualmente, uma nova função institucional passa a receber as luzes necessárias para a atuação deste órgão de garantias: a de exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei. Não que essa atribuição não estivesse prevista no rol originário do artigo 129 da Constituição Federal, mas porque uma nova realidade impõe que esta atribuição seja vista como prioritária e carecedora de efetividade.

Em relação aos motivos que ensejam o reconhecimento de uma nova atuação do Parquet no controle externo da atividade policial, podemos, inicialmente, elencar o elevado número de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP). Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2024, “desde 2013, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar o indicador mortes decorrentes de intervenções policiais em território nacional, o crescimento no número de pessoas mortas foi de 188,9%, resultando em 6.393 vítimas apenas no ano passado[1]”.

E a questão não se limita ao elevado número de mortes, mas aos seus destinatários, pois, segundo o mesmo anuário, 82,7% dos mortos pela polícia são negros e, destes, 72% têm entre 12 e 29 anos. Ou seja, há fatores de risco relacionados aos critérios raciais, geográficos e de gênero.

Outro fator que repercute em entender a importância atual desta função institucional do Ministério Público, está relacionada às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois o Brasil sofreu condenações em casos envolvendo a atividade policial.

Dentre as condenações do Brasil no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, verifica-se entre outros, que os seguintes casos possuem como causa a atuação morosa, ineficiente e omissa ou ilícita dos agentes de polícia: caso Nogueira de Carvalho e outros; caso Garibaldi; caso Cosme Rosa Genoveva – caso Favela Nova Brasília; caso Tavares Pereira; caso José Airton Honorato e outros (Castelinho); caso Cristiane Leite de Sousa e outros (mães de Acari).

Destes casos, o Favela Nova Brasília e Honorato e outros decorrem de condenações que envolvem execução pelos agentes de polícia, ou seja, mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP). Ademais, “apesar das condenações listadas e das determinações previstas nas sentenças, o Brasil pouco avançou na implementação das medidas ou na responsabilização de agentes estatais envolvidos em ações letais[2]”.        

O estado da arte é tal que a Corte IDH reconheceu um estado de impunidade estrutural, tendo em vista a ausência de investigação dos fatos, o que leva à ausência de processo, condenação e de responsabilização dos agentes.

Aliado ao elevado número de mortes decorrentes de atividade policial e das várias condenações do Brasil na Corte Interamericana envolvendo esta temática, tem-se o reconhecimento de “novas forças policiais”, com o acolhimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Guarda Civil Municipal como órgão integrante do Sistema de Segurança Pública (ADPF 995-DF). Esse reconhecimento decorre da própria inclusão deste órgão na Lei 13.675/2018, que disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública. Além deste reconhecimento, o Decreto 11.841/2023 atribuiu aos guardas civis municipais a possibilidade de patrulhamento preventivo, o que é considerado inerente à Polícia Militar.

Outro ponto que reforça a importância de uma nova visão a respeito da atribuição do Ministério Público, circunscreve-se ao uso de câmeras corporais pelos integrantes das Polícias. E neste ponto, a discussão é de extrema importância ao Ministério Público, visto ser o destinatário da prova, tendo em vista a sua titularidade privativa da ação penal.

Ou seja, a forma de implementação do uso de câmeras corporais e a forma de armazenamento destes dados, reflete diretamente na qualidade e legalidade da prova produzida, principalmente considerando as novas diretrizes, após a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) em relação à cadeia de custódia. Assim, a prova poderá se tornar ilegal ou até mesmo nula por causa do uso incorreto das câmeras corporais ou do armazenamento irregular de suas imagens.

Neste ponto, o que se verifica é que os principais temas relacionados à atuação policial, aqui entendida em um sentido amplo e genérico, a abarcar até mesmo a guarda municipal, reflete diretamente na atuação do Ministério Público, razão pela qual não se pode olhar para o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal apenas como mais uma função institucional. É necessário entender a sua importância na atual discussão dos problemas de segurança pública no Brasil, principalmente pelo elevado número de casos envolvendo MDIP e pela repercussão das condenações do Brasil na Corte IDH.

Tal é esta importância, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou nova resolução para tratar do tema: a Resolução 279 de 2023, em substituição à Resolução 20 de 2007, inclusive com redação mais abrangente a abarcar todos os órgãos aos quais sejam atribuídos parcela de poder de polícia relacionada à segurança pública e persecução criminal.

E não só isso. A referida resolução inova ao estabelecer capítulos sobre a letalidade e vitimização policial, acompanhamento de elementos de raça e cor das vítimas, proteção das vítimas, acesso pelo Ministério Público de dados, áudios e imagens dos sistemas de videomonitoramento, geolocalizadores e câmeras operacionais corporais ou portáteis (bodyscam ou congêneres), captados em unidades, instalações, estabelecimentos ou aquartelamentos policiais ou durante as atividades de segurança pública, bem como as informações contidas em cópias de segurança.

Logo, a vê-se que a Resolução 279 de 2023, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), buscou atribuir ao Ministério Público temas atuais e que impactam diretamente em sua atribuição de controle externo da atividade policial. Neste ponto, o órgão de controle ministerial foi assertivo ao regulamentar temas que necessitam de um olhar atual dos membros do Parquet.

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Sabe-se que, muitas vezes, se critica a atuação de controle externo sob o fundamento de demonização das polícias e, com isso, refuga-se dar efetividade ao comando constitucional, fazendo com que tal atribuição careça de efetividade, se tornando letra morta no texto constitucional.

Esse cenário de centralização da atuação ministerial no controle externo também se revela pela publicação do Decreto 12.341/2024, o qual regulamenta a Lei 13.060, de 22 de dezembro de 2014, para disciplinar o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública. Tal decreto, alinhado à realidade da segurança pública brasileira, apresenta as diretrizes para o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo, as quais devem ser fiscalizadas pelo membro do Ministério Público, seja no controle externo difuso ou no concentrado.  

Desta forma, vê-se, por todo o arcabouço normativo e fático, que a referida atribuição merece destaque pelo órgão de garantia, seja para tutela da sociedade, a fim de se reduzir o número de mortes decorrentes de intervenção policial, seja para a tutela dos próprios agentes de segurança pública, seja para tutelar a prova que será produzida e destinada ao processo penal.


[1] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2024/07/anuario-2024.pdf 

[2] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2024/07/anuario-2024.pdf.

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