Transplante hepático pediátrico no Brasil: necessidade de transparência e equidade de acesso

O Brasil orgulha-se de possuir um dos maiores programas de transplantes do mundo, amplamente financiado pelo sistema público de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, mais de 90% dos transplantes de órgãos sólidos realizados no país são custeados pelo SUS. Esse cenário também se reflete na população pediátrica, com destaque especial para o transplante hepático em crianças. Em teoria, os resultados desses procedimentos complexos e onerosos deveriam ser monitorados pelo Ministério da Saúde, não para punir centros com resultados subótimos, mas para promover o desenvolvimento técnico e proteger a vida dos pacientes transplantados.

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Cerca de 80% das mortes em crianças com doença hepática crônica ocorrem antes dos 2 anos de idade. Desse total, 60% das indicações de transplante hepático em crianças decorrem da atresia de vias biliares (AVB). A AVB é uma doença congênita que, se não tratada, evolui para cirrose entre 15 e 20 meses de idade. No Brasil, o diagnóstico frequentemente ocorre tardiamente, fazendo com que muitos pacientes percam a janela terapêutica e tenham o transplante hepático como única opção de tratamento. Assim, o procedimento é realizado em idade muito precoce, em pacientes gravemente comprometidos, muitas vezes com falência de outros órgãos. Esse cenário exige equipes altamente especializadas e, frequentemente, suporte de hemodiálise para estabilização e preparo para o transplante. Infelizmente, o encaminhamento tardio ainda é uma realidade comum.

A maioria dos transplantes hepáticos pediátricos utiliza fígados parciais de doadores adultos, vivos ou falecidos com morte encefálica. Em 2023, segundo o Registro Brasileiro de Transplantes da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), 66,1% (148 de 224) dos transplantes pediátricos foram realizados pelo método intervivos, que reduz o tempo de espera na lista e permite que o procedimento seja realizado mais precocemente no curso da doença.

O transplante intervivos com fígado parcial é um procedimento altamente complexo, realizado em poucos centros no Brasil. Em 2023, os 148 transplantes intervivos foram concentrados em apenas cinco estados: São Paulo (113), Rio Grande do Sul (17), Paraná (12), Rio de Janeiro (5) e Ceará (1). Esses estados foram responsáveis pelo transplante de crianças mais jovens, especialmente aquelas com menos de 5 anos, que necessitam de fígados menores para se ajustarem adequadamente às pequenas cavidades abdominais desses pacientes. Todavia, o registro da ABTO é exclusivamente quantitativo, sem distinção dos resultados entre os centros transplantadores, seja para adultos ou crianças.

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Em 2022, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Qualificação do Sistema Nacional de Transplantes (QualiDot), baseado na avaliação de critérios e indicadores de desempenho. Embora represente um esforço para bonificar centros com melhores indicadores de sobrevida, o programa não é acessível ao público e não distingue os resultados entre equipes transplantadoras de um mesmo hospital. Na prática, essa limitação reduziu a transparência e o controle efetivo dos resultados, limitando o impacto do programa na melhoria do sistema.

Um exemplo positivo pode ser observado no National Health Service (NHS) britânico, que inspirou a criação do SUS e compartilha princípios semelhantes, como o acesso universal e gratuito aos serviços de saúde. O NHS Blood and Transplant (NHSBT) é responsável pela gestão da doação de órgãos, distribuição e alocação de fígados, além de monitorar o desempenho dos centros de transplante. No sistema britânico, informações como tempo de espera na lista, mortalidade durante a espera e taxas de sobrevida pós-transplante, estratificadas por centros, estão disponíveis para o público. Essa transparência estimula a melhoria contínua e a busca por excelência no atendimento.

No Brasil, a alocação de recursos públicos deveria ser orientada pela análise de indicadores disponíveis em todas as esferas da saúde. Embora ainda estejamos distantes de alcançar patamares de excelência, a área de transplante de órgãos sólidos já dispõe de ferramentas para monitorar seus resultados. Considerando que o SUS é o principal financiador desse programa, é crucial dar atenção especial ao transplante de órgãos em crianças pequenas, um procedimento altamente especializado e oneroso, onde o acesso tardio aos centros transplantadores é, infelizmente, comum.

Além disso, a transparência nos resultados é essencial, não apenas para garantir a justa alocação de recursos, mas também para promover a melhoria contínua nos centros transplantadores. Por fim, os familiares dos pacientes têm o direito de conhecer as reais chances de sobrevida de seus filhos, uma informação que ainda apresenta grande discrepância entre os poucos centros responsáveis por essas vidas tão frágeis e preciosas.

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