Ainda Estou Aqui: indicação histórica ao Oscar é uma vitória para os direitos humanos.

A indicação ao Oscar do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, nas categorias de Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro – um feito inédito –, bem como a nomeação da atriz Fernanda Torres como Melhor Atriz, representam uma verdadeira vitória para os direitos humanos. Uma vitória para os defensores dos direitos humanos, para as vítimas da ditadura, para a família Paiva e, acima de tudo, para a memória do Brasil.

A indicação de Fernanda Torres, já laureada com o Globo de Ouro, reflete a luta de todos os defensores e defensoras dos direitos humanos no Brasil. O Brasil é o líder mundial em assassinatos de defensores de direitos humanos, especialmente os que atuam na proteção do meio ambiente. Eunice Paiva é reconhecida internacionalmente pela sua luta em defesa dos povos indígenas, mas, mais do que isso, sua batalha pela memória das vítimas da ditadura foi central para que fosse reconhecida a injustiça histórica vivida pelo Brasil.

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A memória sobre a ditadura no Brasil foi, por muito tempo, negligenciada, tanto que discursos recentes chegam a negar as atrocidades e violações de direitos humanos cometidas em nosso território. A criação da Comissão da Verdade, durante o governo de Dilma Rousseff, foi uma resposta a uma condenação internacional do Brasil pela violação de direitos humanos no período militar. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Guerrilha do Araguaia contra o Brasil, condenou o país pela primeira vez por esses crimes e recomendou a criação da Comissão da Verdade. A sentença também exigiu a revisão da Lei da Anistia, para possibilitar a investigação, sanção e punição dos agentes do Estado responsáveis, além da localização dos restos mortais dos desaparecidos.

Seguiu-se uma segunda condenação, em 2018, no caso Vladimir Herzog, novamente responsabilizando o Brasil pelos crimes cometidos durante a ditadura e exigindo investigações e punições. No entanto, até hoje, o Brasil não cumpriu essas condenações.

Enquanto nossos vizinhos – Argentina, Chile e Uruguai – investigaram e puniram os responsáveis pelos crimes da ditadura, e transformaram os centros de tortura em museus dedicados à memória das vítimas, o Brasil mantém em funcionamento locais como o Batalhão onde Rubens Paiva foi assassinado, e onde Eunice Paiva e sua filha Eliana foram presas e torturadas. Embora um busto de Rubens Paiva tenha sido instalado em frente ao 1º Batalhão da Polícia do Exército na Tijuca, Rio de Janeiro, ele permaneceu durante anos em total descaso por parte do Estado. Recentemente, uma manifestação da filha de Rubens Paiva e de outros familiares vítimas da ditadura, impulsionada pelo filme, pediu que esse local fosse tombado e transformado em um museu em memória às vítimas da ditadura.

O livro e o filme Ainda Estou Aqui revolucionaram nossa percepção. Nos fizeram entender que as vítimas da ditadura não eram apenas figuras distantes, mas cidadãos comuns que poderiam ser levados pelo Estado por se preocupar com o próximo. O Estado de Exceção retirava as pessoas de suas casas sem justificativa, sem ordem judicial, sem direito à defesa ou ao devido processo. O Estado torturava, assassinava e desaparecia com os corpos.

Foi necessário um esforço de 25 anos para que Eunice Paiva obtivesse o atestado de óbito de Rubens Paiva, conquista que só foi possível graças à sua luta incansável. Antes disso, ela não podia acessar sequer seus direitos bancários, tomar decisões sobre os bens da família ou ter acesso à pensão. Como ela mesma disse: “O não reconhecimento da morte de Rubens Paiva foi a forma de tortura mais violenta”. O impacto do filme foi tão grande que, após seu lançamento, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que as certidões de óbito das vítimas da ditadura sejam corrigidas para refletir a causa da morte: a perseguição do Estado durante o regime militar. Até então, as certidões apenas registravam o óbito, sem explicitar o motivo.

O Ministro do STF Flávio Dino, ao citar Ainda Estou Aqui em seu voto, destacou que o corpo de Rubens Paiva nunca foi encontrado e sepultado, refletindo a dor irreparável de milhares de familiares. Em sua decisão, ele reconheceu a imprescritibilidade do crime de ocultação de cadáver, abrindo um precedente histórico para revisar a Lei da Anistia e enfrentar a impunidade que ainda persiste.

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Como defensora de direitos humanos, como doutora em direito internacional e professora, sou profundamente emocionada pela força da arte nesse processo. O que a arte está realizando, o Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos nunca foi capaz de fazer: mobilizar a sociedade para discutir a memória, exigir investigações e sanções, e garantir que o que ocorreu não se repita. Famílias inteiras tiveram suas vidas destruídas por um Estado que ainda tenta silenciar o que não pode ser silenciado. Mães perderam suas vidas buscando seus filhos, como a história de Zuzu Angel e tantas outras. Onde estão os corpos dos desaparecidos? Quando seus familiares poderão finalmente viver seu luto? Quando começaremos as investigações, sanções e punições aos agentes estatais envolvidos?

Na completa ausência do Estado, a arte nos oferece esperança. Por isso, todos torcemos para que o filme Ainda Estou Aqui e a atriz Fernanda Torres vençam! Pela vida de Rubens Paiva, pela vida de Eunice Paiva, pelas vítimas da ditadura, pelos familiares, pela democracia e pela memória!

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