ADI 2135: Afinal, acabou o Regime Jurídico Único dos Servidores?

O julgamento da ADI 2.135 representa um marco na administração pública brasileira, abordando questões essenciais sobre a gestão de pessoal e a flexibilidade administrativa. A ação foi proposta em 2000 por partidos políticos (PT, PDT e PcdoB), objetivava a declaração de inconstitucionalidade da EC 19/1998, que extinguiu a obrigatoriedade do RJU. O STF decidiu, em 6 de novembro de 2024, pela constitucionalidade da norma, justificando a reforma como um passo rumo à modernização administrativa. Este artigo investiga os fundamentos da decisão, os critérios que orientaram o julgamento e as consequências para a gestão pública.

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Metodologicamente, utilizamos o método qualitativo para análise documental, com base em artigos doutrinários, jurisprudências correlatas e legislação pertinente. Justifica-se o tema pela sua relevância para o debate sobre eficácia administrativa e segurança jurídica no setor público.

  1. Histórico e Contexto

O Regime Jurídico Único (RJU) foi instituído pela Constituição de 1988 como uma inovação jurídica destinada a padronizar as relações de trabalho no setor público. O objetivo era conferir estabilidade, direitos específicos e uniformidade no tratamento dos servidores, assegurando a continuidade administrativa e a segurança jurídica. No entanto, ao longo dos anos, a rigidez desse modelo começou a ser questionada diante das demandas por maior eficiência e flexibilidade na administração pública.

A Emenda Constitucional (EC) nº 19/1998 surgiu como resposta a essas pressões, promovendo significativas alterações no art. 39 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). A principal mudança foi a permissão para a coexistência dos regimes estatutário e celetista, oferecendo aos entes federativos a possibilidade de optar pelo regime que melhor atendesse às suas necessidades administrativas. De acordo com Eudes Quintino (Migalhas, 2024) e Guilherme Stumpf (JOTA, 2024), a reforma visava desburocratizar e modernizar a gestão pública, aproximando-a dos modelos aplicados na iniciativa privada.

Apesar de seus objetivos declarados, a tramitação da EC 19/1998 foi marcada por controvérsias e resistências, especialmente no que diz respeito ao quórum necessário para sua aprovação. Diversos setores argumentaram que a flexibilização proposta poderia comprometer direitos adquiridos e abrir precedentes para a precarização das relações de trabalho no setor público. Esses debates foram amplamente discutidos tanto no campo jurídico quanto político, culminando na ADI 2.135, que trouxe à tona a análise detalhada de sua constitucionalidade e impacto na administração pública.

  1. Aspectos Jurídicos do Julgamento

A principal crítica apresentada pelos autores da ADI foi a suposta violação do quórum qualificado exigido para aprovação de emendas constitucionais, conforme o art. 60 da CRFB. Alegou-se que a EC 19/1998 não obteve os votos necessários em ambas as Casas Legislativas. O Supremo, ao analisar a questão, considerou que eventuais ajustes redacionais realizados durante o processo legislativo não comprometeram a validade da emenda. Em seu voto, o Ministro Alexandre de Moraes argumentou que, desde que o rito legislativo seja respeitado, a constitucionalidade da norma permanece intacta. Essa interpretação reforça a ideia de que a separação dos poderes e a autonomia do processo legislativo são essenciais à estabilidade jurídica.

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No campo material, a coexistência dos regimes estatutário e celetista foi alvo de críticas, sob o argumento de que violaria o princípio da isonomia, uma vez que servidores em situações similares poderiam ser tratados de forma desigual. O STF, contudo, entendeu que a EC 19/1998 era uma resposta às demandas por maior flexibilidade administrativa. O relator da matéria enfatizou que o texto constitucional permite diferentes regimes de contratação, desde que haja justificativa razoável para a diferenciação. Luiz Alberto dos Santos, em artigo publicado no Migalhas (2024), destaca que a decisão promoveu uma interpretação voltada para a eficiência administrativa, alinhando-se às necessidades contemporâneas do setor público. Ademais, o ônus da motivação nos atos administrativos será muito mais acentuado, especialmente em casos como a demissão de servidores públicos celetistas. Nessas situações, a fundamentação precisará ser ainda mais robusta, garantindo que os princípios constitucionais, como a moralidade e a eficiência, sejam devidamente observados.

  1. Impactos Administrativos

A decisão do STF proporciona aos entes federativos a possibilidade de ajustar o regime de contratação às peculiaridades locais, promovendo uma gestão mais eficiente dos recursos humanos e financeiros. Essa flexibilidade permite contratações mais dinâmicas, reduzindo entraves burocráticos e aumentando a capacidade de resposta às demandas sociais. No entanto, para que esse potencial se concretize, será fundamental implementar políticas claras que direcionem os gestores na aplicação prática desse modelo, prevenindo distorções e garantindo equidade no trato com os servidores.

A coexistência de regimes distintos no setor público apresenta um risco elevado de judicialização, especialmente em temas como equiparações salariais, direitos adquiridos e benefícios adicionais. Conforme alertado por Aldem Johnston Barbosa Araújo (2024), a ausência de regulamentações específicas para gerir essas diferenças pode criar insegurança jurídica e intensificar os conflitos nas relações trabalhistas. A administração pública deverá investir na capacitação de seus gestores e no fortalecimento de mecanismos de resolução de disputas para mitigar os impactos dessas questões.

Ao aplicar efeitos ex nunc à decisão sobre a EC 19/1998, o STF buscou preservar a estabilidade administrativa e os direitos adquiridos pelos servidores sob o regime anterior. Essa medida proporciona maior previsibilidade nas relações institucionais, mas também impõe desafios para os entes federativos, que precisam adequar suas estruturas à nova realidade sem comprometer os princípios constitucionais. A segurança jurídica será diretamente proporcional à clareza das normativas infraconstitucionais a serem desenvolvidas.

Casos como a ADI 5.367 e o RE 633.782 reforçam a legitimidade da coexistência de regimes e ressaltam a necessidade de fundamentação robusta nos atos administrativos. Essas decisões indicam que o ônus da motivação é um elemento central para assegurar que as escolhas administrativas respeitem os princípios de moralidade, eficiência e isonomia. Além disso, os precedentes destacam a importância de manter um equilíbrio entre flexibilidade administrativa e proteção aos direitos dos servidores, o que se traduz em um cenário de maior responsabilidade para os gestores públicos.

  1. Impactos sobre as Carreiras Típicas de Estado

As carreiras típicas de Estado, como as de juízes, promotores, defensores públicos e procuradores, desempenham funções essenciais e exclusivas ao funcionamento da máquina estatal. Por essa razão, permanecem vinculadas exclusivamente ao regime estatutário, conforme previsto na CRFB. Esse regime confere a estabilidade necessária para assegurar a independência funcional, a imparcialidade e o exercício pleno das competências atribuídas a esses profissionais.

A estabilidade, característica essencial dessas carreiras, não apenas protege os servidores de interferências externas, mas também garante o cumprimento de suas atribuições com o máximo de eficiência e neutralidade. No entanto, a coexistência de regimes estatutário e celetista na administração pública pode gerar desafios de coordenação e integração entre servidores dessas categorias e de outros setores.

Ademais, a decisão do STF que flexibiliza os regimes de contratação para o restante da administração pública traz à tona debates sobre a manutenção das prerrogativas dessas carreiras. A tendência de maior flexibilização na gestão de pessoal pode levar a pressões para rever aspectos de sua regulamentação, especialmente no que tange à remuneração e benefícios. Contudo, é imprescindível que qualquer alteração preserve a autonomia e a segurança jurídica necessárias ao desempenho de suas funções.

Outro ponto que merece atenção é a possibilidade de maior judicialização de questões trabalhistas envolvendo profissionais de carreiras típicas e servidores contratados sob regimes diferentes. A gestão dessas disputas exigirá regulamentações claras e uma postura ativa do legislador para evitar desigualdades ou desvantagens que comprometam a coesão institucional.

Portanto, enquanto as carreiras típicas de Estado permanecem protegidas pela estabilidade conferida pelo regime estatutário, a nova realidade administrativa exige vigilância constante para assegurar que seus princípios fundamentais sejam mantidos. Regulamentações específicas e esforços de integração serão cruciais para mitigar eventuais conflitos e preservar o equilíbrio entre eficiência administrativa e proteção aos direitos fundamentais desses profissionais.

  1. Impactos sobre as Fundações Públicas de Direito Privado

A decisão do STF de permitir a contratação direta de servidores sob o regime celetista pela administração pública coloca em questão o papel e a relevância das fundações públicas de direito privado. Essas entidades foram criadas com o objetivo de conferir maior flexibilidade e agilidade à gestão pública, especialmente em áreas como saúde, educação e cultura, onde há uma demanda constante por adaptações rápidas às necessidades sociais. No entanto, a possibilidade de a administração pública direta realizar contratações celetistas pode reduzir a justificativa para a existência dessas fundações.

A perda de relevância das fundações públicas pode gerar reflexos significativos, incluindo a necessidade de reavaliação de seus contratos e convênios com o poder público. Ademais, a coexistência de regimes pode intensificar conflitos trabalhistas, especialmente no que diz respeito à equiparação salarial entre empregados de fundações e servidores contratados diretamente pelo Estado. A judicialização dessas questões pode aumentar, demandando um esforço ainda maior na regulamentação e fiscalização dessas entidades.

Por outro lado, é importante considerar que as fundações públicas ainda possuem um papel estratégico em áreas que exigem alto grau de especialização ou uma gestão menos burocrática do que a tradicionalmente encontrada na administração direta. Portanto, a sua permanência pode ser justificada desde que demonstrem eficiência operacional e resultados superiores àqueles obtidos por meio da contratação direta.

A decisão do STF, ao flexibilizar o regime de contratações, exige que as fundações públicas revisem seus processos de gestão e demonstrem sua relevância no novo cenário jurídico-administrativo. Regulamentações claras e uma maior transparência na atuação dessas entidades serão cruciais para evitar o esvaziamento de sua função e garantir que continuem contribuindo de maneira significativa para o interesse público.

  1. Conclusão

O julgamento da ADI 2.135 pelo STF inaugura uma nova era na administração pública brasileira, promovendo maior flexibilidade no regime de contratações e alinhando-se a demandas contemporâneas de eficiência e dinamismo. No entanto, a coexistência de regimes estatutário e celetista traz desafios que não podem ser ignorados. A necessidade de regulamentações claras e específicas é inegável para evitar inseguranças jurídicas, e o ônus da motivação nos atos administrativos se torna uma questão central para garantir que decisões sejam tomadas de maneira criteriosa e fundamentada.

Além disso, a preservação de direitos adquiridos e a proteção da estabilidade administrativa devem ser princípios norteadores para mitigar os riscos decorrentes dessa mudança. A decisão reflete avanços, mas também impõe uma responsabilidade maior à administração pública em demonstrar que a flexibilidade buscada não será um pretexto para precarização ou favorecimentos indevidos.

Em última análise, cabe à sociedade e aos gestores públicos acompanharem de perto a implementação dessa nova realidade, cobrando eficiência e transparência, mas também exigindo que o equilíbrio entre os princípios da eficiência, isonomia e segurança jurídica seja mantido. A modernização administrativa só será bem-sucedida se vier acompanhada de responsabilidade e compromisso com o interesse público.

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Referências

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2022.MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2020.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31ª ed. São Paulo: Atlas, 2021.

Disponível em: https://www.jota.info/artigos/o-julgamento-da-adi-2135-e-o-fim-do-regime-juridico-unico-o-stf-errou. Acesso em: 12 jan. 2025, às 10:06.

Disponível em: https://www.jota.info/artigos/stf-flexibiliza-regime-juridico-unico-e-brasil-avanca-na-modernizacao-da-administracao. Acesso em: 12 jan. 2025, às 10:06.

Disponível em: https://www.jota.info/artigos/contratacao-de-servidor-celetista-pela-fazenda-publica-gera-inseguranca-juridica. Acesso em: 12 jan. 2025, às 10:06.

Disponível em: https://www.jota.info/artigos/adi-2-135-e-harmonizacao-constitucional. Acesso em: 12 jan. 2025, às 10:06.

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/420038/estabilidade-dos-servidores-publicos-o-que-e-e-vai-ou-nao-acabar. Acesso em: 12 jan. 2025, às 10:06.

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