Alunos estão apáticos e alguns não assumem ser anticonstituição, diz Vera Karam

O ambiente é de conflito, o Supremo Tribunal Federal sob crítica, ideais da Constituição também em debate. Um momento, portanto, de turbulência e enormes desafios e controvérsias. Apesar disso, dentro da sua sala de aula, toda essa efervescência ganha ares de enfado. Vera Karan Chueiri, professora de Direito Constitucional na Universidade Federal do Paraná, com mais de 30 anos de sala de aula, vê alunos apáticos diante de temas constitucionais, talvez por certo “desencantamento” da maioria deles ou, noutra hipótese, porque muitos estão mirando apenas a descrição daquilo que o Supremo decide e o que o texto da Constituição diz.

“Os alunos e as alunas, o que eu acho, estão muito mais preocupados no concurso que vai estar aberto quando eles se formarem, nos três anos que eles vão ter que pagar de pedágio até que possam fazer inscrição na Ordem, nas possibilidades de estágio, eventualmente entrar no pós-graduação”, afirma a professora.

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Mas pode haver um outro motivo para o silêncio ou a apatia dos alunos. Ao menos para uma parcela deles. E isso preocupa Vera Karan. Porque alguns destes alunos, que silenciam em sala de aula sobre temas dos quais podem discordar ou ter visão bastante crítica, não expõem suas percepções, não se abrem ao diálogo em sala de aula, mas depois vão as redes sociais professar discursos que vão contra -em grande parcela das vezes – o que o Direito Constitucional estabelece.

“Para mim, o problema são aqueles alunos que não… vou usar uma expressão bem vulgar, que não saem do armário e que são profundamente anti-constituição. Quer dizer, eles precisamente não acreditam nas democracias constitucionais, não acreditam no papel da Constituição, não acreditam no papel do Estado”.

A professora Vera Karam é a primeira entrevistada da série do JOTA sobre os desafios de ensinar o Direito Constitucional.

A série explora com professores renomados de diferentes universidades e perfis como é o ensino e a formação dos futuros operadores do Direito, em um cenário em que a Constituição para além de um texto jurídico é hoje um campo de inúmeras disputas sociais e econômicas.

Na entrevista em que fala da sua experiência numa universidade pública no Paraná, Karam aponta como momento mais difícil para ensinar Direito Constitucional o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, quando o próprio presidente assumia posturas de confronto e ameaçava descumprir o que previsto na Constituição ou nas decisões judiciais.

“Naquele momento estava muito difícil, porque havia uma lacuna muito grande entre essa forma de ensinar Direito Constitucional e o que se via e o que se lia, e a prática das posições do Supremo Tribunal Federal também, que a despeito de terem sido importantes no enfrentamento daquele momento de desrespeito cotidiano da Constituição, mas também elas foram bastante heterodoxas.”

Para provocar alguma movimentação de suas turmas, Karam busca levar às suas aulas assuntos que tenham mais apelo social, como a descriminalização do aborto e a união homoafetiva. Ainda assim, diz que não consegue perceber tanta vibração de seus alunos.

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Às vezes eu movimento, eu levo casos, falo muito do Supremo Tribunal Federal, que hoje está no nosso cotidiano, ou assim eu provoco, dizendo: “Puxa, vocês acordaram e se deslocaram para a faculdade, porque vocês têm o direito de ir e vir, isso nem sempre foi assim, mas não adianta, eu sinto uma passividade“, afirma Karam. 

Um cenário que – percebe-se ao longo da série – é bastante diferente da realidade de outros professores de outras universidades e de outros estados.

Confira trechos da entrevista com Vera Karam de Chueiri, professora de Direito Constitucional na UFPR. A íntegra da entrevista está disponível no YouTube do JOTA. Inscreva-se no canal para acompanhar todas as onze entrevistas da série.

Como é que está sendo da aula de Direito Constitucional no Brasil nesses últimos anos?

Eu diria que foi mais difícil durante o governo do ex-presidente, porque a afronta, o descumprimento, o desdém com a Constituição, não só do ex-presidente, mas de toda a equipe dele direta ali, ministros e tal, em relação à Constituição, quer dizer, a afronta, o desdém, o descumprimento, era algo muito cotidiano, e a gente sempre assumia posições muito normativas em sala de aula, não é? Ou seja, você diz como deve ser, e às vezes não faz o… Talvez não pontua exatamente a diferença entre o que é e o que deve ser, então vai com essa dogmática do direito constitucional e com esse ponto de vista supernormativo. 

E, bom, naquele momento estava muito difícil, porque havia uma lacuna muito grande entre essa forma de ensinar Direito Constitucional e o que se via e o que se lia, e a prática das posições do Supremo Tribunal Federal também, que a despeito de terem sido importantes no enfrentamento daquele momento de desrespeito cotidiano da Constituição, mas também elas foram bastante heterodoxas. Aquela história, num momento de excepcionalidades, você tem quase que um vale-tudo. Então, isso precariza muito a nossa posição de dizer como deve ser se tudo que está sendo feito até para defender a própria Constituição não deveria ser daquela maneira. Então, ali foi mais difícil.

O que eu sinto hoje em dia, digamos, nessa nova rodada em que a democracia constitucional recobra algum ânimo? Eu sinto uma certa apatia que antes não existia em relação aos temas, aos assuntos. Eu sempre acho que é algo que vai entusiasmar, que vai motivar debates calorosos. Não. A sensação que eu tenho é que eles não estão nem aí. Essa é a sensação que eu tenho. Eu estou sendo… A hora que eles me ouvirem, eles vão dizer que a Vera está sendo uma professora ingrata. Porque, claro, tem exceções. Aqueles que eu tento… Aqueles que eu busco aproximação e interlocução na graduação são as exceções, mas a grande maioria está apática, pelo menos não… Eu não sei se a forma… Eu sou uma professora que dou aula há mais de trinta anos, então talvez a minha pegada não seja o que mais… A forma como dou aula talvez não seja a mais interessante. Eu sou ainda daquele… Eu sou daquela aula clássica, expositiva, uso pouco recurso audiovisual. Então, isso também talvez provoque um desencantamento. A forma… e talvez um conteúdo, porque eu não vejo, assim, vibração. 

Mesmo diante do Supremo Tribunal Federal tão divisivo hoje na sociedade, com temas que estão no dia a dia. Mesmo assim isso não os acende? 

Olha, não os acende. Eu levo os casos e aqui eu vou fazer o seguinte paralelismo. Quando eu li a matéria do The New York Times, e vi que alguns declararam que choraram quando foram fazer os sílabos lá, o programa da disciplina, a ementa, o que dizer, sentiram muito uma sensação de tristeza em relação ao que se tornou o Direito Constitucional em face da tendência e das decisões, das últimas decisões, ou pelo menos das mais chamativas da Suprema Corte dos Estados Unidos, mas é que tem uma questão que acho que é bem importante da gente levar em conta. O Direito Constitucional estadunidense se constrói a partir das decisões.

Então, é diferente da gente que constrói uma teoria, uma dogmática, ou como falam os mais antigos, uma doutrina do Direito Constitucional, a partir da legislação, da Constituição escrita, alguma coisa de história do constitucionalismo para construir isso, e não tanto o impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal. Isso ganha mais espaço hoje em dia, as novas gerações de constitucionalistas têm feito isso muito bem, que é olhar para as decisões, levantar dados, levantar perfil decisório, fazer pesquisa empírica com critérios bem determinados para aferir de razão de decisão a comportamento de ministro ou ministra, enfim.

Mas o fato é que o nosso Direito Constitucional não se constrói a partir das decisões do Supremo, embora o Supremo Tribunal Federal venha criando o Direito Constitucional como nunca. Inclusive, um Direito Constitucional que, em alguns casos, ele é um direito constitucional criado pela Corte, mas inconstitucional, se a gente olhar com lupa. Ontem eu conversava exatamente… Terça-feira é o dia que eu e o Miguel damos aula juntos no programa de pós-graduação. Aí é diferente. Aquilo que a gente não vê na graduação, a gente vê na pós-graduação, ali sim há um entusiasmo, ali sim há um engajamento nas questões mais difíceis e fronteriças do direito da política e do direito que tocam o direito constitucional, ali a gente vê entusiasmo, de fato, disputa de narrativas.

Eu ia te perguntar isso, essa divisão, se ela não chegou também, e aí pode ser tanto na graduação como na pós, essa divisão de narrativas que você falou, Vera, do governo passado, em que, por exemplo, se falava de artigo 142 da Constituição, Forças Armadas podem isso, podem aquilo, etc. E havia, mesmo que pontuais, pessoas que defendiam essa interpretação do artigo, dizendo que sim, as forças armadas poderiam entrar. Mas eu fico imaginando que nós vimos também o eleitorado defendendo essas posições. Eu imagino que isso chegue na sala de aula também. Então, eu fico imaginando o seu desafio também para lidar com esse tipo de questionamento. 

Então, isso indiretamente tem a ver com a matéria do The New York Times, porque ele disse assim, eu lembro do repórter dizendo assim, eu entrevistei mais professores do campo progressista. E parece que só um que ele entrevista ali, que não é do campo progressista, e todos esses vão justamente criticar, acho que duas decisões que dizem respeito ao direito de ter armas, enfim, de ter, de usar, etc. E aí, invariavelmente, todos os professores do campo progressista dizem que a Suprema Corte dos Estados Unidos está decidindo de maneira absolutamente voluntarista, conservadora, sem levar em conta esses duzentos anos de aprendizado constitucional. Bom, olhando para nós, há disputa de narrativas, mas, pelo menos da forma como eu vejo aqui na Universidade Federal do Paraná, eu identifico um perfil na graduação que é mais apático, que é mais passivo, talvez pelo fato de que majoritariamente os professores de Direito Constitucional aqui da nossa faculdade de direito são do campo progressista, e talvez eles não se sintam confortáveis de explicitar a disputa de narrativas com os seus professores e professoras. Nós somos majoritariamente professoras de Direito Constitucional aqui, embora não exclusivamente, como, por exemplo, tem o Miguel, e também tem o Daniel Hachem. Nós somos, salvo engano, tem dois professores e todas as demais são professoras.

Todos, com suas muitas diferenças teóricas, enfim, de formação e de agenda de pesquisa, são do campo progressista. Então, talvez por isso, na graduação, a garotada, porque é uma garotada, eu dou aula para o segundo ano, a maior parte é gente de dezenove anos, não se sinta tão confortável de fazer explicitamente a disputa de narrativa. E na pós-graduação, como o nosso curso não é um curso obrigatório, as pessoas escolhem fazê-lo, então são pessoas que são mais alinhadas à nossa forma de pensar no campo progressista do Direito Constitucional. Então, também, a disputa de narrativa não acontece de uma maneira tão radicalizada. Há diferentes pontos de vista, mas ainda dentro da ideia de que a Constituição tem supremacia e essa supremacia da Constituição tem que orientar a nossa competição, e que agora, uma coisa que a gente insiste sempre, a supremacia é da Constituição, não é do STF. Então, a gente tem que ver criticamente a postura. E na pós é muito legal, porque todos lá são muito críticos do STF. 

Mas deixa eu dar um passo atrás, porque o que você menciona traz um pouco de preocupação também. Vocês não conseguem fazer esse debate na academia? Eles não conseguem nem se convencer dos fundamentos, inclusive para eles defenderem esse ponto? O que a gente via no governo Bolsonaro, ou pessoas hoje ainda no Congresso Nacional que fazem defesas do que seria a Constituição, que vai contra tudo que já foi escrito no Brasil e que o Supremo já decidiu sobre aqueles assuntos. Então, essas pessoas não dialogam com a academia. Então, não te traz também uma preocupação que essa ideia possa estar na cabeça do seu estudante, mas ele não abra contigo? 

Eu tenho essa preocupação, compartilho com você. Eles não abrem. E seria interessante para que a gente também tivesse mais claro quem desses estudantes, dos quais 50% entraram por políticas de ação afirmativa, esse é um dado que a gente tem que levar em conta, quais deles que têm uma percepção ou pensam o direito constitucional de uma forma conservadora ou ultraconservadora, o que de fato não é um problema.

O problema não é tanto mais ter uma disputa de narrativas sobre os sentidos da Constituição com os conservadores e ultraconservadores. Para mim, o problema são aqueles alunos que não… vou usar uma expressão bem vulgar, que não saem do armário e que são profundamente anticonstituição. Quer dizer, eles precisamente não acreditam nas democracias constitucionais, não acreditam no papel da Constituição, não acreditam no papel do Estado, e aí vão detonando isso com aquele discurso que a gente viu, autoritário e perigoso do governo, muito forte no governo Bolsonaro. Porque o enfrentamento que ele faz naquele momento com o desenho constitucional democrático é dizer: “eu estou me lascando para o que a Constituição obriga, eu vou fazer do jeito que eu quero”.

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