Direito Penal e direitos humanos: entre a espada e o escudo

O campo dos direitos humanos e o Direito Penal historicamente guardam entre si uma relação por vezes conflituosa e ambígua. Não por outra razão, alguns autores têm qualificado o Direito Penal como “a espada e o escudo” dos direitos humanos[1]: ao tempo em que pode se tornar verdadeiro flagelo das liberdades individuais se manejado de forma arbitrária e desproporcional, também pode constituir importante mecanismo de proteção das vítimas de violações de direitos humanos, especialmente de seu direito de acesso à justiça.

A imagem da espada e do escudo é mesmo ilustrativa. São instrumentos importantes e complementares, mas devem ser empregados com equilíbrio. A criminalização excessiva de condutas e a imposição exagerada de penas pode causar danos ilegítimos; já a timidez no manejo dos instrumentos penais pode enfraquecer o efeito preventivo que deles se espera. É desse equilíbrio que deve cuidar o controle das leis penais.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

O Direito Penal tradicionalmente se ocupa das transgressões jurídicas socialmente mais danosas e regula a imposição da mais severa forma de exercício legítimo do poder punitivo do Estado, a pena (especialmente sob a forma da privação de liberdade). Por configurarem a ultima ratio dentre os mecanismos de repressão à disposição do Estado, as normas de caráter penal demandam especial atenção por parte dos organismos de controle – nacionais e internacionais – a respeito de sua compatibilidade com os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

No âmbito do Direito Internacional dos direitos humanos, recai sobre os Estados a obrigação de realizar o chamado controle de convencionalidade dos atos normativos em relação às obrigações contraídas nos tratados internacionais dos quais são parte e às decisões dos organismos aos quais são vinculados. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por exemplo, estabelece, em seu artigo 2º, que os Estados devem adotar as medidas legislativas ou de qualquer outra natureza para adequar seu direito interno aos direitos e garantias ali estabelecidos.

As singularidades das normas penais – particularmente a maior afetação que podem produzir sobre os direitos humanos – demandam maior cautela no exercício tanto do controle de convencionalidade quanto do controle de constitucionalidade. É necessário, portanto, que se investigue se o poder punitivo que será exercido com base na norma penal é proporcional à intervenção autorizada sobre os direitos fundamentais da pessoa humana.

Essa abordagem especial no exame das normas penais transparece em julgado relativamente recente do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht). Ao se debruçar sobre a constitucionalidade do tipo penal de “assistência profissional/comercial ao suicídio” (Geschäftsmäßige Förderung der Selbsttötung, § 217 StGB), estabeleceu que a norma em questão deveria submeter-se a um “escrutínio estrito de proporcionalidade[2].

O postulado da proporcionalidade, em seu sentido amplo, “se fundamentará, pues, en la propia vigencia de los derechos fundamentales; y la proporcionalidad no será en este sentido más que un criterio de interpretación de las limitaciones que cada derecho fundamental tolera en aras de la satisfacción de otros derechos fundamentales o bienes jurídicos relevantes[3]. 

É por esse motivo que a análise da constitucionalidade – através da máxima da proporcionalidade – de normas penais deve ser mais rígida ou específica do que o exame de intervenções em direitos fundamentais “comuns”, não relacionadas com a privação de liberdade por meio da pena. Tal como se reivindica na doutrina, deve ter lugar um exame de proporcionalidade específico para o direito penal, ou seja, orientado a bens jurídicos[4].

Reconhecer a necessidade de um escrutínio estrito sobre a normatividade penal – isto é, sobre os elementos do tipo penal –, contudo, não se confunde com uma exigência de contenção irrefletida do poder punitivo, mas significa que o princípio da proporcionalidade deve ocupar, por óbvio, lugar central nessa análise.

Assim, tal proposta de escrutínio estrito deve abranger as duas vertentes da proporcionalidade: a proibição de excesso e a proibição de proteção insuficiente. Olhar apenas para uma delas é falhar em apreciar a relação entre o Direito Penal e os direitos humanos em sua integralidade. Outrossim, não há como se falar em excesso ou insuficiência do direito penal tout court, pois tais balizas dependem sempre dos standards definidos pelas normas de direitos humanos.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

A previsão dos princípios da legalidade e anterioridade penal, por exemplo, afasta eventuais hipóteses de excesso punitivo, enquanto o dever de proteção institui as circunstâncias em que o legislador deve estabelecer a resposta penal adequada diante de condutas particularmente lesivas aos direitos humanos.

Desse modo, a atuação legislativa estatal deve superar a lógica de um garantismo meramente negativo e considerar, de modo integral, tanto a proibição do excesso (Übermaßverbot) como a proibição da proteção insuficiente (Untermaßverbot)[5]. Ambas ensejam limites jurídicos ao Estado para que não ocorram abusos em dois extremos perigosos para os direitos humanos: o exagero e o déficit.

Proibição de excesso

O mandato de proibição do excesso é descumprido quando uma determinada medida estatal viola – de maneira inadequada, desnecessária ou desproporcional em sentido estrito – a obrigação dos Estados de respeitar direitos. Nesses casos, o Estado peca por uma atuação “para além” dos limites da proporcionalidade ao perseguir exageradamente certos fins em detrimento do dever de cumprir diretamente com as normas convencionais estabelecidas.

A proibição do excesso manifesta-se, assim, por meio da invalidação de normas, decisões ou práticas ilegítimas, inadequadas, desnecessárias ou desarrazoadas que colidam “excessivamente” – e, portanto, desproporcionalmente – com o direito de um indivíduo a um comportamento negativo ou positivo do Estado.

Exemplo clássico de violação do princípio da proibição do excesso reside na edição de norma penal incompatível com o princípio da legalidade, tal qual previsto no artigo 9 da Convenção Americana[6]. Historicamente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem interpretado tal preceito não apenas no sentido de observância da nullum crimen nulla poena sine lege praevia, mas também no sentido de taxatividade.

Isto é, ao definir legalmente as condutas reprovadas, os Estados devem descrevê-las com clareza, em termos estritos e unívocos, de sorte a distingui-las de comportamentos lícitos ou de ilícitos que deveriam ser sancionados por outras vias[7].

Tal abordagem também exige reconhecer que o marco penal admissível nas sociedades democráticas deve ser cada vez mais pontual e exigente, o que implica que nem toda conduta reprovável deve ser objeto da perseguição criminal. Isso tem sido feito pela Corte Interamericana, por exemplo, em relação aos crimes contra a honra.

Em seus julgados mais recentes sobre o tema, o tribunal tem declarado que a via penal não é meio idôneo para proteger a honra de funcionários públicos no exercício da função, especialmente em relação a condutas menos graves que não envolvem a imputação falsa de delito, como a injúria e a difamação[8].

Outro exemplo relevante de escrutínio estrito de proporcionalidade das normas penais, na vertente de proibição de excesso, pode ser vislumbrado na sentença proferida recentemente no caso Huilcaman Pailama vs. Chile[9].

O caso tratou da condenação criminal de mais de uma centena de indivíduos da etnia mapuche pelos crimes de furto, associação ilícita e usurpação[10] em virtude de protestos. Ao examinar os referidos tipos penais, a Corte Interamericana concluiu que a hipótese punitiva ali contida não era suficientemente clara. O delito de furto, por exemplo, estabelecia presunção de autoria baseada na posse da coisa subtraída, violando os princípios da culpabilidade e da presunção de inocência. Já o tipo referente à associação ilícita estava redigido com base em expressões de conteúdo indeterminado (como “atentar contra os bons costumes”), o que favoreceu a condenação arbitrária das vítimas.

Ao constatar tais circunstâncias, a Corte IDH considerou que os referidos tipos penais eram incompatíveis com o princípio da legalidade, ordenando ao Estado que adotasse as medidas cabíveis para adequar os dispositivos vigentes aos parâmetros estabelecidos na sentença.

Proibição de proteção insuficiente

A proibição de proteção insuficiente, por sua vez, é descumprida quando há omissão do Estado (total ou parcial) que viola – de modo desproporcional – a obrigação dos Estados de garantir direitos. Em tais circunstâncias, o Estado falha por uma postura “aquém” do que seria proporcional fazer, ao deixar de agir do modo adequado, necessário e proporcional em sentido estrito para garantir que não haja violação dos direitos dos indivíduos. Tal proibição de déficit diz respeito, nesse sentido, a omissões do Estado em assegurar “direitos protetivos” da pessoa humana, a saber, direitos de “que o Estado o proteja da interferência de terceiros” que possam violar os seus direitos[11].

Se a proibição do excesso implica que o Estado excedeu a persecução de um fim legítimo – violando diretamente certo direito para além do adequado, necessário e razoável –, a proibição de déficit ou de insuficiência quer dizer que o Estado não foi longe o suficiente na proteção de um direito – fornecendo medidas para aquém do que seria adequado, necessário e razoável para impedir violações desse direito.  

Para tanto, deve haver, por parte do Estado, um comprometimento suficiente com a proteção dos direitos humanos, que se materializa sobretudo pela adequação do direito interno às exigências da convenção e demais tratados.

Conforme Canaris, a proibição da proteção insuficiente (Untermaßverbot) nada mais é do que a garantia de que os direitos sejam protegidos da forma adequada e necessária à luz dos standards mínimos de proteção, afastando quaisquer restrições, alterações injustificadas ou inferiores ao mínimo de garantias oferecidas por esses parâmetros[12].

Na jurisprudência interamericana, a análise baseada na proibição da proteção insuficiente está tradicionalmente associada ao exame das omissões legislativas dos Estados em relação à punição de graves violações de direitos humanos. A Corte Interamericana cultiva o entendimento de que os Estados têm a obrigação de investigar, processar, julgar e punir os responsáveis por atos que atentam contra os direitos e garantias previstos na Convenção. Mais do que um dever estatal, essa pretensão integra os direitos à proteção judicial e ao acesso à justiça dos quais são titulares as vítimas de tais violações.

Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!

Tal abordagem é comum, por exemplo, nos casos envolvendo desaparecimento forçado. Por constituir uma das mais graves formas de violação de direitos humanos, cuja proibição possui status de jus cogens, a Corte Interamericana reconhece que os Estados têm a obrigação de tipificar o crime de desaparecimento forçado. No caso Gomes Lund vs. Brasil, por exemplo, a Corte constatou que o Brasil não criminalizava a referida conduta e ordenou ao Estado brasileiro que adotasse as medidas necessárias para fazê-lo[13].

No recente voto que proferi no caso Ubaté vs. Colômbia, tive a oportunidade de me pronunciar sobre as omissões legislativas na tipificação do desaparecimento forçado no ordenamento jurídico colombiano. Naquela oportunidade, apontei que o tipo penal acolhido na lei penal não contemplava adequadamente a participação de agentes estatais na configuração da hipótese delitiva, elemento esse que deve ocupar posição central no tipo.

É dizer, o Estado deveria adotar as medidas legislativas necessárias para colmatar essa lacuna de proteção que, ao fim, poderia favorecer a impunidade daqueles que são por excelência os autores – materiais ou intelectuais – do referido crime.[14].

Conclusão

Esses exemplos mostram que o controle de convencionalidade, na modalidade de escrutínio estrito das normas penais, pode implicar tanto a obrigação de incremento quanto a de restrição da tutela penal. Essa abordagem tem o mérito de tirar o enfoque tradicionalmente outorgado a disputas de visões puramente expansionistas ou reducionistas do direito penal e passar a analisá-lo sob as lentes da proporcionalidade, e, mais especificamente, sobre o prisma da proibição de excesso ou de proteção insuficiente.

Nesse sentido, a técnica do escrutínio estrito de proporcionalidade, tal qual adotada pela Corte Interamericana, tem se mostrado caminho eficaz para solucionar o conflito aparente entre o direito penal e os direitos humanos, sempre com vistas a seguir pelo caminho que ofereça maior proteção à pessoa humana – o ponto de partida e de chegada que deve orientar nossos sistemas jurídicos.


[1]         ROTH, Robert. Libres propos sur la subsidiarité du droit pénal. In: AUER, Andreas; DELLEY, Jean-Daniel; HOTTELIER, Michel; MALINVERNI, Giorgio (Eds.). Aux confins du droit: essais en l’honneur du Professeur Charles-Albert Morand. Bâle: Helbing & Lichtenhahn, 2001, p. 429-446.

[2]         BVerfG, Judgment of the Second Senate of 26 February 2020 – 2 BvR 2347/15. Cf. também BVerfG, Judgment of the Second Senate of 24 July 2018 – 2 BvR 309/15 -, paras. 1-131 (73): “Freedom of the person is such a high-ranking legal interest that interferences with it are only permissible for particularly weighty reasons (cf. BVerfGE 22, 180 <219>; 45, 187 <223>; 130, 372 <388>; established case-law). The restriction of this freedom must thus always be subjected to a strict review based on the principle of proportionality (cf. BVerfGE 58, 208 <224>; 128, 326 <372>.”

[3]         MIR PUIG, Santiago. Constitución y principios del Derecho Penal: algunas bases constitucionales. Valência: Tirant Lo Blanch, 2010, p. 87.

[4]         ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Strafrecht Allgemeiner Teil, Band I (Grundlagen – Aufbau der Verbrechenslehre), 5ª ed., Munique: C.H. Beck, 2020, § 2 Nm. 92.

[5]         As duas faces do princípio da proporcionalidade, nomeadas como Übermaßverbot e Untermaßverbot, possuem suas origens na decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão – BverfGE 88, 203 de 28 de maio de 1993 (também conhecida como Aborto II). Ver mais em: CANARIS. Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado (Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto). 2ª reimpressão. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 59 e ss; SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, proporcionalidade e Direitos Fundamentais: o Direito Penal entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista opinião jurídica, v. 4, n. 7, 2006, p. 177-178.

[6] Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 9. Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.

[7] Corte IDH. Caso Castillo Petruzzi y otros vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30 de mayo de 1999. Serie C No. 52, par. 121

[8] Vide, por exemplo: Corte IDH. Caso Baraona Bray Vs. Chile. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2022. Serie C No. 481.

[9] Corte IDH. Caso Huilcamán Paillama y otros Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 18 de junio de 2024. Serie C No. 527.

[10]          O crime de usurpação estava previsto no art. 457 do Código Penal do Chile e reprimia o indivíduo que “con violência (…) ocupare una cosa inmueble o usurpare un derecho real que outro poseyere o tuviere legitimamente”

[11]         Cfr. ALEXY, Robert. On Constitutional Rights to Protection. Legisprudence, v. 3, n. 1, p. 1–17, 2009, p. 4.

[12]         Cfr. CANARIS, Op. Cit., p. 60.

[13]         Corte IDH. Caso Gomes Lund y otros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010. Serie C No. 219, par. 287

[14] Corte IDH. Caso Ubaté y Bogotá Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 19 de junio de 2024. Serie C No. 529. Voto do Juiz Rodrigo Mudrovitsch.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.