Andar de moto é perigoso, vamos proibir motocicletas?

Empresa de aplicativo anunciou que vai começar a operar os serviços de intermediação de transporte individual de passageiro por motos na cidade de São Paulo. O poder público municipal reagiu alegando que a atividade é ilícita porque não autorizada. A proibição serviria para “evitar uma carcinificina”.

A regulação estatal das atividades econômicas não é boa ou ruim em si. Não é desejável ou indesejável. Muita vez ela simplesmente é necessária, como ocorre com a limitação de venda de bebida alcóolica a menores ou a restrição de venda de certos medicamentos. Outras vezes ela é despropositada, como exigência de que todo veículo portasse um kit de primeiros socorros ou um extintor de incêndio. E em alguns casos ela é contraproducente, como ocorre ora e vez com regulações protecionistas visando ao desenvolvimento da indústria. Foi o que ocorreu nos anos 80 com o setor de informática: a indústria eletroeletrônica não despontou tecnologicamente, mas vários setores foram retrasados por falta de acesso a equipamentos.

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A boa regulação precisa ser necessária (ou seja, partir da demonstração de que os atores econômicos no seu agir não são capazes de assegurar bens jurídicos fundamentais, demandando a ação estatal) e adequada (ser implementada e exercida no exato limite do suficiente para assegurar seus objetivos). A previsão do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174, CF) é confrontada com a reserva constitucional da livre iniciativa, alçada à condição de fundamento da República (art. 1º) e da Ordem Econômica (art. 170, caput). Interditar ou dificultar o exercício de atividade econômica sem demonstrar haver razões incontornáveis para tal, torna a regulação inconstitucional. Regular desproporcionalmente tais atividades, igualmente não se coaduna com a pauta constitucional.

O exercício da atividade regulatória estatal deve, portanto, se pautar pelos juízos de subsidiariedade e proporcionalidade. Para exercer esse crivo, nos últimos anos o legislador veio fixando pautas normativas. Exemplo está na Lei federal n. 13.848/19, dirigida às agencias reguladoras federais,  que estabelece o dever de a regulação observar  “a devida adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendimento do interesse público” (art. 4º)  e exige a elaboração de análise de impacto regulatório para a edição de atos normativos (art. 6º). 

Mais relevante é o teor da Lei nacional (porque aplicável a todos os entes e a toda atividade regulatória estatal) n. 13.874/19. Embora tenha sido um tanto prejudicada pelas alterações havidas no Executivo e no processo legislativo, ela contém um guia do que caracteriza a regulação abusiva. No seu art. 4º a norma traz exemplos de atos regulatórios inválidos por abusividade. Entre eles editar normas que “impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios” (art. 4º, inciso IV ) ou  “aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios” (art. 4º, inciso V). Estes parâmetros, entendo, juntamente com os do art. 3º da Lei, servem não para aferir a legalidade de um ato regulatório, mas para balizar a inconstitucionalidade dele.

Não menos importante é a  Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, após a alteração procedida pela lei n. 13.655/18. Ela, em diversos dispositivos, veda o abuso no exercício de competências públicas de forma descomprometida com os efeitos. Importante referência está no art. 20, parágrafo único que exige a motivação demonstre “a necessidade e a adequação da medida imposta”, “inclusive em face das possíveis alternativas”.

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A tentativa por alguns municípios de vedar a atividade de transporte individual de passageiros em motocicletas, intermediada ou não por aplicativos de facilitação de viagens é bom exemplo de ato regulatório inconstitucional. Para além da inconstitucionalidade formal por ferir a reserva legal da União, já reconhecida por várias decisões judiciais, tal proibição padece de inconstitucionalidade material. Exatamente por caracterizar abuso regulatório. 

O motivo genericamente alegado para tal restrição absoluta destas atividades seria que motocicletas são muito vulneráveis a acidentes de trânsito. Diz-se que, ao permitir estas viagens, haveria o risco de aumentarem os acidentes e, portanto, seria necessário proteger os potenciais passageiros.

Ocorre que não se tem notícia de estudo embasado em metodologia, estudo de casos, identificação de alternativas, ponderação de custo-benefício em relação às alternativas mais brandas que a proibição. Apenas se alega que a liberação do serviço aumenta significativamente os acidentes.

Não se pode regular por presunção ou indução simplificadora. Dizer que o serviço de transporte individual de passageiros por motos aumentará o número de viagens e com isso o número de acidentes pode parecer indutivo. Mas isso não basta. Ademais, mesmo a presunção não resiste ao teste contrafactual.

O serviço é oferecido em várias grandes cidades grandes como Sorocaba ou Rio de Janeiro, sem que tenha aumentado significativamente número de sinistros envolvendo motos de transporte individual. A introdução destes serviços, mesmo que facilitados por aplicativos, não ensejará necessariamente aumento de motocicletas em circulação. Presunção por presunção, mais provável (como tem ocorrido em Municípios em que o serviço é admitido) é que motociclistas profissionais, que já usam a moto para entregas, migrem para este serviço, em tempo parcial ou sazonalmente.

De outro lado, se há um risco neste tipo de transporte, ele colhe os condutores individuais, passageiros em caronas gratuitas, entregadores em geral. Prova disso são os números de acidentes notificados em São Paulo antes mesmo do serviço ser oferecido. Não é o fato de um cidadão contratar uma viagem em motocicleta ou, ainda, contratá-la por meio de aplicativo, que o risco será incrementado. Zelo pela saúde, cumprimento da legislação de trânsito, impacto no sistema de saúde, todos estes objetivos podem ser alcançados sem proibir peremptoriamente o serviço. Faixas segregadas, fiscalização rigorosa das condições de segurança dos veículos, exigência de equipamentos adequados, controle de velocidade, sistemas de coibição de infrações de trânsito. Todas estas medidas, já de competência do poder público,  são muito mais eficientes. 

Comparativamente aos serviços de entrega por aplicativos, o transporte individual de passageiros por motos traz uma diferença em seu favor. Quando um usuário pede uma refeição ou faz uma compra, ele não tem controle sobre o quão temerário foi o entregador para chegar ao destino. O passageiro que contrata o serviço é o primeiro a ter interesse em fiscalizar a segurança da viagem. Como ocorre com o transporte por automóveis, um condutor imperito ou inconsequente será denunciado e provavelmente desligado da plataforma. Logo, a presunção deixa de ser intuitiva para, além de contrafactual, se mostrar irrazoável.

Além disso, esse modal de transporte é muito útil e empregado na primeira ou última milha de uma viagem, transportando passageiros até ou desde outros modais de transporte radial (ônibus, trem, metro). É muito empregado na periferia dos grandes centros na substituição das viagens a pé em vias de menor circulação e limitação de tráfego. O que também se mostra contrafactual à tese do aumento de risco.

Proibir o transporte individual de passageiros por aplicativos ou criar tais restrições que tornem a atividade inviável, sem analisar previamente os impactos e as consequências da vedação e sem avaliar todas as alternativas regulatórias fundamentadamente caracteriza uma inconstitucional restrição ao exercício da atividade econômica, uma desatenção aos parâmetros da lei de liberdade econômica e da Lindb. Em outas palavras, é um desfavor à boa regulação estatal.

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