‘Uma reforma única para todos os segmentos da burocracia não vai dar conta’, aponta vice-diretora da Ebape

Em 17 de dezembro, o JOTA publicou o artigo “Por que reformar administrativamente o Estado brasileiro?”. Escrito pela professora Alketa Peci, vice-diretora acadêmica da Escola Brasileira de Administração Publica e de Empresas (Ebape-FGV) e membro do Committee of Experts on Public Administration, das Nações Unidas, o texto defende que, “em face da excessiva polarização e de um debilitado presidencialismo de coalizão”, reformar as instituições de Estado por meio de avanços incrementais, como o atual governo propõe, pode ser mais efetivo do que uma reforma constitucional.

“As pesquisas sobre reformas administrativas de natureza abrangente e ambiciosa (como a da PEC 32) indicam que elas tendem a falhar. As causas variam, mas destaco as incoerências originadas pelos múltiplos e irracionais objetivos que se almejam, bem como as várias formas de resistência interna ou externa às mudanças propostas”, afirmou, no artigo.

Para a pesquisadora, no entanto, o governo precisa ter uma narrativa política mais ambiciosa para que a sociedade entenda os avanços incrementais como parte de uma verdadeira reforma. Em entrevista ao JOTA e à newsletter Por Dentro da Máquina, Alketa Peci afirma que está cada vez mais clara a opção por reformar as carreiras sem mexer no que já existe, priorizando o futuro.

Em uma conversa que ocorreu na semana do Natal e foi atualizada após a apresentação da MP, com a criação de novas carreiras e a transformação de cargos obsoletos, Alketa critica a narrativa das carreiras de elite e aponta o risco crescente de vilanização do serviço público. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como a senhora percebe a escolha da transformação da Estado, associada aos avanços incrementais, que se afasta da reforma administrativa por meio de aprovação de uma PEC?

Vamos tentar destrinchar essa visão em algumas premissas, que são de base. A primeira premissa é que toda reforma é um processo de mudança planejada, que precisa se basear num diagnóstico sobre o que não está funcionando, o que está falhando, o que precisa mudar…

Então, se a gente analisar o que está incomodando hoje, a gente vai olhar algumas evidências de disfunções do Estado brasileiro, que não podem ser colocadas no mesmo saco. Tem a questão, por exemplo, da desigualdade entre as carreiras, de captura de carreiras de elite, predominantemente carreiras jurídicas e de controle, né?

Tem essa narrativa de que, como conseguem mais recursos para o Estado, logo deveriam receber também maior remuneração. É uma narrativa completamente irracional. Ora, boa parte das carreiras de Brasília pode ser encaixada nessas que arrecadam mais recursos para o Estado. Boa parte das carreiras municipais e estaduais é de carreiras que consomem recursos do Estado. Eu me refiro aqui à polícia, professor, enfermeiro, médico…

Essa lógica não se sustenta porque se a gente remunerasse melhor quem consegue recursos, remunerasse pior quem usa o recurso público, teríamos o serviço público completamente injusto, como é hoje. Hoje é assim, não é?

Agora, quando uma reforma grande, de emenda constitucional, é proposta no Congresso, ela geralmente deixa isso de fora e acaba focando mais em problemas de outros entes federativos, dos estados, dos municípios, que não têm nada a ver com esse indicador de captura burocrática.

“Você precisa politicamente mobilizar as coalizões necessárias para conseguir fazer alguma mudança. E quando você evita, de alguma forma, de ter essa narrativa, usar a reforma como um instrumento de comunicação política para conseguir mais coalizões e fazer as mudanças necessárias, você perde um pouco do momento de fazê-las.”

Quando a gente vai para o município, a captura é mais política. Cada vez que muda o prefeito, tenta se usar a máquina pública para empregar ou desempregar pessoas a partir da base de apoio político. Então, uma reforma que vai tentar dar uma solução única para todos os segmentos da burocracia no Brasil, cada um com um processo de captura próprio, não vai dar conta. Este é o ponto, na primeira dimensão.

Na segunda dimensão, a gente não pode esquecer que um processo de reforma é, acima de tudo, um projeto político. O governo Lula, historicamente, sempre teve muita dificuldade de se associar ao processo de reforma, que, na compreensão política do PT, está ligada a governos de natureza mais liberal, anti-Estado. Isso também é uma simplificação perigosa, no meu entender.

Você precisa politicamente mobilizar as coalizões necessárias para conseguir fazer alguma mudança. E quando você evita, de alguma forma, de ter essa narrativa, usar a reforma como um instrumento de comunicação política para conseguir mais coalizões e fazer as mudanças necessárias, você perde um pouco do momento de fazê-las.

Acho que transformação do Estado é até um nome feliz, mas não é marqueteiro, não tem a força de mobilização política que o nome reforma tem. Então, acaba que todos os esforços que estão sendo empreendidos perdem um pouco de visibilidade, não conseguem comunicar à população que está sendo feita alguma mudança na direção necessária.

A reforma é mais uma peça de marketing do que, provavelmente, uma peça de mudança. Falar sobre reforma, sobre alguma coisa extremamente impactante, poderosa, nunca aconteceu, nunca acontecerá.

O que as outras reformas tinham de interessante? Esses marcos históricos tiveram a felicidade de fazer um bom diagnóstico, entender onde está o problema, o que precisa mudar, e não necessariamente entregar aquilo tudo. Mas, parcialmente, avançar numa agenda de mudança que trouxe alguns benefícios concretos para a melhoria da máquina administrativa.

Melhorar significa trazer mais racionalidade administrativa, mais lógica administrativa, que melhore a entrega do serviço público.

No contexto de avanços incrementais, como a senhora viu o anúncio de duas novas carreiras transversais, a transformação de cargos e a arquitetura de um sistema de avaliação para todos os servidores federais, como apresentado no final do ano?

Eu acho que o governo continua a manter essa posição de mudanças incrementais. Em vez de ser aquela reforma abrangente, de uma vez, vai introduzindo medidas incrementais que, no meu entender, são as medidas possíveis a serem feitas no atual cenário. Eu consigo compreender essa estratégia do governo.

Por exemplo, eu acho interessante a questão da reestruturação das carreiras, a transformação de cargos obsoletos em cargos novos. São medidas palpáveis, realistas, as medidas possíveis de serem feitas. Acho interessante ter duas carreiras transversais. Eu acho que esse caminho das carreiras transversais permite mais flexibilidade de alocação de quadro de trabalho, de acordo com as mudanças que acontecem.

Então, acho que não são medidas revolucionárias, mas são medidas possíveis de serem adotadas no contexto político e social que o país se encontra hoje. Mas falta um pouquinho empacotar essas medidas todas, né? Não é um projeto, mas é uma narrativa política mais ambiciosa, que o governo evita um pouquinho.

“Acho que o governo não vai optar por fazer a reforma com o que existe já hoje. A minha impressão é que eles querem criar condições para que no futuro as novas entradas possam se dar dessa forma. É muito difícil hoje reformar o que se tem, porque você mexe em direito adquirido, as pessoas fizeram concurso público para certas posições. Isso já é limitador por si só. Reformar isso agora é algo muito politicamente custoso, né?”

Em paralelo à criação das carreiras transversais, deveria se buscar a racionalização das carreiras existentes?

Acho que o governo não vai optar por fazer a reforma com o que existe já hoje. A minha impressão é que eles querem criar condições para que no futuro as novas entradas possam se dar dessa forma. É muito difícil hoje reformar o que se tem, porque você mexe em direito adquirido, as pessoas fizeram concurso público para certas posições. Isso já é limitador por si só. Reformar isso agora é algo muito politicamente custoso, né? Você vai comprar uma briga com todas essas carreiras.

Então, eu tenho a impressão que o governo está apostando numa mudança incremental, de forma que possa melhorar gradualmente esse processo, sinalizando que, no futuro, é possível fazer contratações com este perfil de carreira mais abrangente, mais transversal, mas sem mexer no problemão que se tem hoje, né? Hoje, é politicamente muito complicado.

Na questão dos concursos públicos, inclusive, acho interessante essa tentativa de começar a fazer um concurso para o grupo de carreiras, porque isso pode ajudar no futuro também a olhar um pouco essa diminuição de número de carreiras.

É um processo de transição?

É isso. Essa é a minha leitura. É um processo de transição. E o governo talvez deveria ser mais explícito nessa transitoriedade. Dizer, ‘olha, estou sinalizado que no futuro nós precisamos ir para este modelo, o modelo mais simplificado de carreiras, mais transversal’. E o que temos hoje não será sustentado no longo prazo porque é irracional administrativamente.

Está faltando essa segunda parte. Isso pode ser politicamente conveniente porque você não arruma briga com o passado/presente, né? Mas você já apostaria que no futuro vai ser diferente. Ou: o que tem hoje eu vou deixar cair pela aposentadoria. Algumas pessoas vão se aposentar, eu não vou repondo os quadros. Isto que eu acho que falta ser visto, essa tendência de você fazer concursos públicos a partir das nossas premissas.

E no caso da avaliação de desempenho, pelo que se compreende, foram criados mecanismos de pontuação para todo o funcionalismo federal, mas que vão precisar de uma regulamentação?

Eu realmente não consegui entender. É difícil visualizar como será feito isso. Cada órgão terá de criar o seu modelo de mensuração. Precisa ser realmente mais regulamentado, mais experimentado…

Eu acho que, aparentemente, existe consenso de que alguma avaliação do desempenho precisa ser feita. Não é um tema do qual o governo está se esquivando, né? Agora, eu acho que, genuinamente, ninguém sabe como fazer. Como se faz isso? Como os órgãos são muito heterogêneos, têm áreas com muito mais facilidade de mensurar desempenho. Tem outras que são muito mais difíceis de medir.

O governo de Minas Gerais teve uma avaliação de desempenho bem avançada. Mesmo lá, a gente percebia que tinha áreas de políticas públicas que faziam uma avaliação de desempenho muito mais objetiva, muito metrificada, mensurável. Tinham áreas que não.

O que eu acho que se peca no Brasil é que a avaliação de desempenho tende a ser procedimental. Ou seja, o número de processos que o servidor vai estar realizando. Não é voltado para o desempenho. Que impacto que ele teve na vida econômica ou social. Primeiro, não existe a cultura. Segundo, porque é difícil mensurar. Cada um vai precisar construir um instrumento de avaliação de desempenho que vai tentar depois mensurar isso.

“O Executivo não tem peso suficiente hoje em dia no Brasil para se contrapor a essa força [que alimenta as distorções e os supersalários], com o sistema de governabilidade que o país tem hoje. Então, para isso avançar, seria necessária uma coalizão entre Executivo e Legislativo. Isso precisa de mudança de legislação. Precisa realmente de um espaço de negociação política, de fato.”

Há um grande debate hoje sobre distorções, supersalários e transparência das remunerações que envolvem os Três Poderes, mas essa agenda, seja pela reforma ou pela transformação do Estado, enfrenta dificuldades para avançar…

O Executivo não tem peso suficiente hoje em dia no Brasil para se contrapor a essa força, com o sistema de governabilidade que o país tem hoje. Então, para isso avançar, seria necessária uma coalizão entre Executivo e Legislativo. Isso precisa de mudança de legislação. Precisa realmente de um espaço de negociação política, de fato.

A estratégia é encontrar sempre a justificativa na brecha da lei. Então, eu falo também nesse meu artigo [no JOTA], que sem uma simplificação legislativa não tem hoje em dia como avançarmos numa racionalidade administrativa. A sobreposição de leis, de instrumentos legais que existem no país, facilita esse tipo de abuso. Isso é conveniente.

Agora, assim, não tem muita solução para isso, não. Chegamos numa espécie de cerco sem saída. Precisava de uma coalizão mais forte. Não tem como o Executivo encarar isso sozinho, esse tipo de luta. Nós não temos a mínima condição de governabilidade para que eu possa olhar, assim, em curto prazo, uma solução para isso.

Em relação à transparência, acho que a pergunta que fica é: por que alguns segmentos da burocracia sempre se esquivam com algum instrumento jurídico das exigências da transparência? O papel do CNJ é muito importante. Já há algum tempo cumpriu também esse papel, mas parece que entrou mais em banho-maria.

Com todo esse cenário de desafios à máquina pública e o avanço de governos que se opõem às instituições de Estado, cartão de visitas de Trump e Milei, sem soluções de bom senso, qual é o risco que se corre?

O risco é de vilanização do servidor público e do serviço público. Esse é o risco maior. E eu te digo que é um risco muito real. Toda reforma radical, algum alívio vai trazer. Então o risco é real, é imediato, de nós cairmos em uma narrativa de vilanização do servidor público, do serviço público.

Realmente, falta muito pouco tempo para que a gente possa, de fato, fazer alguma mudança mais palpável, mais visível, mais estruturada, de resgate desse ethos público, de resgate desses valores de um serviço público em benefício de todos.

O discurso está poderoso, um discurso crescente. Nós poderemos ter o perigo de vilanizar o servidor público, o serviço público, que faz diferença para a qualidade de vida de boa parte da população brasileira mais pobre.

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