Judiciário será xerife no Velho Oeste das redes sociais sem checagem e moderação

Ao anunciar que a Meta vai cortar sua parceria com agências de checagem de fatos e reduzir a moderação de conteúdo falso ou discriminatório em redes sociais como Facebook, Instagram e aplicativos de mensagens como WhatsApp, Mark Zuckerberg alertou que “tribunais secretos” latino-americanos estariam atrapalhando a liberdade de expressão, os interesses norte-americanos e, mais importante, os negócios das grandes plataformas digitais. Mas o efeito colateral dessa medida pode ser ainda mais controle judicial sobre conteúdos online, pois sem os códigos internos das plataformas, restará aos usuários insatisfeitos apelar ao judiciário para remover conteúdos problemáticos. 

As mudanças devem ser inicialmente adotadas nos Estados Unidos, a tempo de atender à nova gestão trumpista, que exige redução ou nenhuma regulação do universo cibernético, refletindo, assim, a agenda da extrema-direita global. O anúncio da Meta também indica que a empresa vai se aliar ao governo nos EUA para combater o que caracterizam como intervenção e bloqueios de governos estrangeiros, que prejudicam a atuação mais livre de redes norte-americanas. Essa movimentação pode ser entendida como uma reação a série de leis sobre plataformas digitais, aprovadas recentemente na União Europeia, Austrália, Canadá, além de projetos discutidos em países como o Brasil.

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Porém, o efeito colateral dessa guinada a favor da “liberdade de expressão” pode levar a mais regulação e intervenção, como já sinalizado pela reação ao redor do mundo. No Brasil, as cúpulas do judiciário e do executivo já indicaram que poderão retaliar caso plataformas não sigam as regras locais, como já demonstrado no bloqueio temporário do X em 2024 .

Esse tiro pela culatra das plataformas que plantam menor moderação para colher mais regulação pode ser entendido quando lembramos que aplicativos funcionam seguindo uma série de códigos complementares, que definem os comportamentos aceitos ou possíveis. O jurista norte-americano Lawrence Lessig explica que as plataformas operam com base códigos digitais, como algoritmos, que definem as possibilidades técnicas. Ademais, há códigos para limitar a conduta dos usuários em seus sistemas. Estes, porém, precisam seguir e se alinhar ao ordenamento jurídico e às normas e convenções sociais que variam de acordo com cada país e cultura.

Nesse sentido, os pesquisadores brasileiros Márcio Ribeiro e Pablo Ortellado já indicavam que o combate à desinformação precisava ser realizado pelas plataformas e pela Justiça diminuindo sua visibilidade, removendo contas ou conteúdos problemáticos, ou punindo usuários com comportamentos abusivos. Assim, as plataformas digitais buscaram, no final da década passada, combater conteúdos nocivos online, em parcerias com checadores de fatos, que indicavam conteúdos falsos que poderiam ser contextualizados ou contestados, com alertas, ou podiam ter sua disseminação restrita. ⁠

A derrubada de redes de perfis “não-autênticos” (contas automatizadas por robôs ou contas falsas) teve um impacto considerável na capacidade de produção e disseminação de fake news em escala industrial. Em momentos de crise, como durante a pandemia ou em períodos eleitorais, a moderação era mais cautelosa, e a Justiça também intervinha com mais rigor nos casos extremos.

Se o novo modelo indicado pela Meta for expandido para outros países — Brasil inclusive —, é possível considerar que os problemas que antes eram resolvidos pelos moderadores da plataforma não poderão mais ser sanados pelos instrumentos de controle da própria rede social, empurrando muitas demandas de remoção para canais externos, como o judiciário.

Isso pode garantir mais transparência ao mecanismo de controle e mais oportunidade de defesa para quem publica conteúdo denunciado, sanando dois problemas recorrentes dos mecanismos de moderação. Vale destacar que essas limitações já procuravam ser resolvidos pelo Projeto de Lei das Fake News, que demandava dos moderadores relatórios de transparência e canais de contestação. No entanto, a Justiça é um caminho mais custoso e demorado, devido à sobrecarga de trabalho em tribunais e barreiras de acesso bastante evidentes em um país desigual com o nosso.

Ainda pior, reduzir moderação em plataformas sociais sinaliza que as redes sociais podem se transformar em espaço com menos controle e muito mais risco, como um Velho Oeste sem leis. Como já foi visto com mudanças semelhantes na plataforma de microblogging X, espaços digitais com menos regras e mecanismos de controle podem se tornar tóxicos, por três movimentos complementares. 

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Em um extremo, geralmente à direita, tornam-se mais atraentes para produtores de desinformação, que operam com impunidade em espaços desregulados. No outro lado do espectro político, ⁠ grupos que sofrem com discurso de ódio e desinformação, podem deixar esses espaços devido à hostilidade extrema. Ademais, ⁠usuários que antes tinham condutas moderadas podem se radicalizar e agir de forma cada vez mais agressiva, sem diretrizes claras do que pode ou não ser compartilhado ou punido nesses espaços.

É importante destacar que diminuir a moderação não significa, realmente, uma defesa da liberdade de expressão sem limites nesses espaços, mas sim o descontrole que seja benéfico aos negócios das empresas online. É interessante lembrar que mesmo o supostamente libertário Elon Musk baniu de sua plataforma X uma conta que postava informações sobre os voos de seus aviões particulares. Todavia, a experiência do X ensina que a radicalização do discurso após essa rede social remover mecanismos de controle sobre desinformação e discriminação levou a uma fuga de usuários e anunciantes.

Assim, como já visto no êxodo do antigo Twitter, a rede social sem lei (ou com a lei da selva) atrai bandidos, afugenta vítimas e pode empurrar o usuário comum a se armar e sair atirando. No Velho Oeste, a corrida pelo ouro levou ao aumento da violência na fronteira pouco policiada: agora, a mineração de dados nos disputados territórios online sem regras claras abre espaço para um bangue-bangue virtual em que só sobrevive quem for o mais rápido para sacar e disparar mensagens online.

Nas das redes sociais, sobra, portanto, a regra do mais forte – ou do mais fake. Justamente os tribunais, tão criticados no anúncio da Meta, podem agora estrelar no papel de xerife que tenta manter ordem na cidade.

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