A sobrecarga feminina pelo trabalho de cuidado

No dia 23 de dezembro de 2024, foi sancionada pelo atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva a Lei 15.069/2024, responsável por instituir a Política Nacional de Cuidados.

De acordo com o artigo 1° da referida lei, a novel Política Nacional de Cuidados se destina a garantir o direito ao cuidado, que compreende o direito a ser cuidado, a cuidar e ao autocuidado, através da corresponsabilização social e entre homens e mulheres.

Dessa forma, o exercício do cuidado, a garantia desse direito e o debate da temática passará a não ser restrito ao âmbito individual das famílias, devendo o setor privado, sociedade civil e Estado compartilhar responsabilidades.

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Dentro desse contexto, a lei estabelece como um de seus objetivos a promoção do reconhecimento, redução e redistribuição do trabalho não remunerado do cuidado, realizado de forma preponderante por mulheres (art. 4°, VI). Além disso, tem como escopo a promoção da mudança cultural relacionada à organização social do trabalho de cuidado (art. 4°, VIII).

No cenário atual, a medida legal se apresenta como um instrumento apto a dar visibilidade à necessidade de o cuidado ultrapassar a esfera individual e familiar e, além disso, problematizar e repensar a divisão sexual do trabalho, de maneira que o cuidado seja provido de forma equânime entre homens e mulheres.

A divisão sexual do trabalho expressa a ideia de que homens devem se responsabilizar apenas por atividades que se referem à provisão de recursos materiais, vendendo sua força de trabalho no mercado ou gerenciando seus bens de produção, enquanto as mulheres seriam responsáveis pelas atividades realizadas no âmbito doméstico, destinadas à manutenção da vida e da funcionalidade dos demais membros da família, como cozinhar, lavar, cuidar da saúde, dar suporte emocional e afetivo[1].

Nesse sentido, as atividades de cuidado foram historicamente consideradas apenas como atributo natural da psique e da personalidade feminina, uma necessidade interna da mulher, desempenhada por instinto e por amor, sem valorar o seu potencial econômico[2].

Ademais, a divisão sexual do trabalho tem como princípio hierárquico a valorização do trabalho do homem, colocando como principal premissa que o trabalho do homem vale mais que o trabalho da mulher[3].

Exemplos da manifestação da divisão sexual do trabalho na sociedade encontram-se em dados estatísticos. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2022 as mulheres dedicaram cerca de quase 10 horas por semana a mais do que os homens aos trabalhos relacionados ao cuidado e tarefas domésticas[4].

Esse encargo excessivo do cuidar, principalmente de forma não remunerada, leva à pobreza de tempo, o que cria óbices às possibilidades de inserção e manutenção no mercado laboral, gerando um círculo vicioso da pobreza[5].

Em um cenário mundial, no ano de 2023 foi estimado que 748 milhões de pessoas não conseguiram se inserir e/ou permanecer no mercado de trabalho em decorrência das responsabilidades que envolvem o exercício de cuidados não remunerados. Desse total, 708 milhões eram mulheres e apenas 40 milhões eram homens, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT)[6].

Embora encarregadas pelo exercício dos cuidados de forma dominante, as trabalhadoras domésticas não remuneradas constituem uma parcela invisível da sociedade. Isso porque, o cuidado desempenhado por mulheres é muitas das vezes tido como um recurso natural inesgotável, uma estrutura invisível e indelével, que sequer deve ser levado em conta em razão da suposição que sempre existirá[7].

Não obstante, ao se falar de trabalho de cuidado de forma remunerada, no Brasil tem-se que quase 75% do total de postos de trabalho no setor de cuidados é ocupado por mulheres, ou seja, há aproximadamente 18 milhões de mulheres trabalhando em cargos como o de professora, cuidadora, enfermeira, médica, assistente social, trabalhadora doméstica, dentre outros[8].

Nota-se, portanto, que há uma sobrecarga de trabalhos domésticos e de cuidados exercido pelas mulheres.

Sendo assim, repensar quem são os agentes responsáveis pelo cuidado, repensar o exercício do cuidado – remunerado ou não – como um trabalho, um direito e um dever traz a necessidade de uma mudança de paradigma e da valorização social da pauta, bem como do reconhecimento das pessoas que o realizam[9].

Fato é que o cuidado é essencial para a manutenção da vida e da sociedade, todavia, vale ressaltar que a responsabilidade de cuidar não deve ser atribuída tão somente às mulheres e não deve ser tida como pessoal, mas também pública.

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O Estado deve garantir o bem-estar dos indivíduos e, consequentemente, daqueles que cuidam. A Lei 15.069/2024 reconhece esse ponto e traz em seu texto a ideia de corresponsabilidade do Estado, sociedade, família, homens e mulheres pelos cuidados.

É necessário, portanto, aguardar a transformação do texto legal em ações concretas, que serão implementadas através do lançamento do Plano Nacional de Cuidados (art. 3°) para verificar como a nova Lei 15.069/2024 irá reverberar e terá efeitos práticos na vida das pessoas.

Contudo, desde já, há de ressaltar que a implementação da Política Nacional de Cuidados pode ser o início para um grande avanço no que tange a corresponsabilização social e entre homens e mulheres pelo cuidado, trazendo mudanças na concepção acerca da divisão sexual do trabalho e abrindo espaço para discussões acerca do direito ao cuidado. 


BRASIL. Ministério das Mulheres; Ministério do Desenvolvimento  e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Lançamento do GTI para elaboração da Política Nacional de Cuidados. Disponível em: https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Cartilha/Cartilha.pdf

BRASIL. Secretaria de Comunicação Social. Conheça medidas do Governo Federal para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado no país. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/11/conheca-medidas-do-governo-federal-para-o-enfrentamento-da-invisibilidade-do-trabalho-de-cuidado-no-pais

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019, p. 42-43.

FONTOURA, Natália. Debates conceituais em torno do cuidado e de sua provisão, p. 44. In: CAMARANO, Ana Amélia; PINHEIRO, Luana. Cuidar: verbo transitivo. Caminhos para a provisão de cuidados no Brasil. Brasília: Ipea, 2023. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11842/35/Cuidar_Verbo_Transitivo_Book.pdf.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595–609, 2007. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/344

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Em 2022, mulheres dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. Agência IBGE Notícias. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37621-em-2022-mulheres-dedicaram-9-6-horas-por-semana-a-mais-do-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas.

MARÇAL, Katrine. O lado invisível da economia: uma visão feminista do capitalismo. 2. Ed. São Paulo: Alaúde Editorial, 2022,  p. 66.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Trabalho de cuidados não remunerado impede 708 milhões de mulheres de participar do mercado de trabalho. Disponível em: https://www.ilo.org/pt-pt/resource/news/trabalho-de-cuidados-n%C3%A3o-remunerado-impede-708-milh%C3%B5es-de-mulheres-de.

[1] FONTOURA, Natália. Debates conceituais em torno do cuidado e de sua provisão, p. 44. In: CAMARANO, Ana Amélia; PINHEIRO, Luana. Cuidar: verbo transitivo. Caminhos para a provisão de cuidados no Brasil. Brasília: Ipea, 2023. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11842/35/Cuidar_Verbo_Transitivo_Book.pdf.

[2] FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019, p. 42-43.

[3] HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595–609, 2007. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/344

[4] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Em 2022, mulheres dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. Agência IBGE Notícias. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37621-em-2022-mulheres-dedicaram-9-6-horas-por-semana-a-mais-do-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas.

[5] BRASIL. Ministério das Mulheres; Ministério do Desenvolvimento  e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Lançamento do GTI para elaboração da Política Nacional de Cuidados. Disponível em: https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Cartilha/Cartilha.pdf

[6] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Trabalho de cuidados não remunerado impede 708 milhões de mulheres de participar do mercado de trabalho. Disponível em: https://www.ilo.org/pt-pt/resource/news/trabalho-de-cuidados-n%C3%A3o-remunerado-impede-708-milh%C3%B5es-de-mulheres-de.

[7] MARÇAL, Katrine. O lado invisível da economia: uma visão feminista do capitalismo. 2. Ed. São Paulo: Alaúde Editorial, 2022,  p. 66.

[8] BRASIL. Secretaria de Comunicação Social. Conheça medidas do Governo Federal para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado no país. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/11/conheca-medidas-do-governo-federal-para-o-enfrentamento-da-invisibilidade-do-trabalho-de-cuidado-no-pais

[9] FONTOURA, Natália. Debates conceituais em torno do cuidado e de sua provisão, p. 44. In: CAMARANO, Ana Amélia; PINHEIRO, Luana. Cuidar: verbo transitivo. Caminhos para a provisão de cuidados no Brasil. Brasília: Ipea, 2023. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11842/35/Cuidar_Verbo_Transitivo_Book.pdf.

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