O filósofo, a arquivista e o professor de processo penal no bar

Era uma noite propícia a debates que transcendem as especialidades, e o acaso reunira três mentes singulares: Umberto Eco, o filósofo semiólogo, imerso na arte de decifrar signos e seus limites; Luciana Duranti, a arquivista, guardiã da frágil autenticidade dos registros, especialmente os digitais; e Alexandre Morais da Rosa, um sagaz professor de processo penal, conhecido por destrinchar as táticas e vieses do sistema de justiça como se fossem movimentos em um intrincado jogo.

O tema que borbulhava entre eles, tão desafiador quanto uma cerveja artesanal complexa, era o “calcanhar de Aquiles” da prova digital no processo penal: como a defesa pode, efetivamente, ampliar a “enciclopédia” de um magistrado para que ele compreenda a importância vital das cautelas técnicas na apreensão de um smartphone?

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O desafio da noite, especificamente, pairava não apenas sobre a necessidade de documentar as condições de apreensão do aparelho, mas também sobre a relevância de cuidados contra inimigos invisíveis, como a proteção contra interferências eletromagnéticas. Enquanto a importância de uma gaiola de Faraday para evitar o acesso remoto e a destruição de dados é mais palpável, como convencer um julgador da relevância de outras cautelas, especialmente quando sua própria experiência cotidiana parece contradizer tal necessidade?

O problema: a dissonância entre a experiência pessoal e o rigor forense na apreensão de celulares

Umberto Eco iniciou a reflexão, lembrando que a percepção da realidade é sempre mediada pela nossa “enciclopédia” — o vasto repertório de conhecimentos e vivências que molda nossa interpretação. Em ressonância curiosa com Paulo Freire, que ensinava que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, Umberto reforçou que nenhum signo é neutro, e que todo sentido nasce do encontro entre o texto (ou o objeto) e o horizonte de expectativas de quem o interpreta.

“O magistrado, como qualquer um de nós,” pontuou, “carrega seu smartphone no bolso, utiliza-o em diversos ambientes, e raramente, ou nunca, testemunhou uma perda de dados perceptível devido a uma suposta interferência eletromagnética ou se preocupou com as condições exatas em que seu aparelho estava quando o ligou pela primeira vez. Seus pares, seu círculo social, compartilham dessa mesma experiência. Essa vivência cotidiana constrói uma forte crença na robustez e na simplicidade aparente do aparelho.”

Essa “enciclopédia pessoal”, alertou Umberto, pode criar um viés. Quando a defesa argumenta sobre a necessidade de acondicionar o celular apreendido em embalagens específicas para protegê-lo de campos eletromagnéticos, ou sobre a importância crucial de documentar se um telefone apreendido estava ligado ou desligado, se possuía código de acesso, se havia danos visíveis — conforme preconizado por diretrizes como as do National Institute of Standards and Technology (NIST), por exemplo, a norma NIST SP 800–101 — o argumento pode soar, para o juiz, como um excesso de zelo, um preciosismo técnico distante de sua realidade.

“Aqui reside o perigo da ‘deriva’ interpretativa,” explicou o filósofo. “O juiz, ancorado em sua experiência, pode ‘derivar’ para a conclusão de que, se o seu celular pessoal sobrevive a tudo isso ou não exige tais formalidades, o celular apreendido também não as necessitaria para ser prova. Ele ignora a intentio operis — a ‘intenção da obra’, ou melhor, a natureza específica — do celular como evidência forense, um objeto que exige ‘limites’ metodológicos para que sua informação seja considerada confiável.”

Umberto fez uma pausa, e acrescentou: “É importante distinguir essa ‘deriva’, que é um deslizamento semântico sem âncora ( interpretações que se afastam da lógica interna do texto/objeto), da ‘semiose ilimitada’ de Peirce. Para Peirce, e para mim, a semiose ilimitada é um processo contínuo de interpretação que, idealmente, aprofunda o entendimento do objeto e busca um consenso, um ‘hábito’, dentro de uma comunidade. Não é caos, mas uma busca incessante, porém balizada, por significado. O que a defesa deve evitar é que a interpretação do juiz caia na deriva, não que ele deixe de buscar o sentido da prova”.

A discussão de Umberto Eco sobre a “replicabilidade dos objetos” nos ensina que a “autenticidade” não é uma qualidade mágica e intrínseca, mas uma atribuição de valor e um julgamento. A natureza inerentemente replicável dos dados digitais torna a noção de “original” particularmente complexa; não é o arquivo em si que “é” autêntico, mas o processo pelo qual ele foi coletado, preservado e apresentado que confere (ou retira) essa autenticidade.

A autenticidade digital: para além dos bits e bytes — a voz da arquivística

Luciana Duranti, a arquivista, trouxe sua perspectiva sobre a fragilidade e a complexidade da autenticidade no mundo digital. “A ‘Falsa Identificação’, como Umberto explora, é um risco constante. No universo digital, o ‘original’ é um conceito fluido. O que a perícia busca, e o que as normas como a RFC 3227 ou as da série ISO, incluindo as diretrizes do NIST, tentam garantir, é a identidade e a integridade do registro digital ao longo do tempo.”

Ela continuou: “Quando agentes públicos apreendem um dispositivo e deixam de documentar as providências adotadas in loco para sua preservação — como o estado em que foi encontrado (ligado, desligado, com código de acesso), ou as medidas para evitar comunicação com redes externas e alterações acidentais nos dados armazenados (riscos detalhadamente abordados no capítulo 4 da NIST SP 800–101) — eles negligenciam protocolos essenciais. Se o único elemento descrito em relatório for a aplicação de um lacre numérico, acende-se um alerta: tal cautela, embora válida, pode ser insuficiente diante da complexidade e volatilidade dos dados digitais. E as informações sobre as condições da apreensão? Estava ligado? Há danos visíveis? Qual a data e hora no dispositivo? Qual a hora precisa em que o aparelho foi apreendido? Essas precauções e informações são fundamentais para estabelecer e manter uma cadeia de custódia adequada”.

A ausência delas, enfatizou Luciana, “revela uma falha que compromete a validade da prova. Não se trata apenas de preservar os bits, mas de preservar o contexto e a forma documental que atestam que o registro é o que alega ser e que não foi adulterado. Sem isso, o que temos pode ser uma ‘contrafação’ do estado original dos dados, mesmo que por negligência. Um campo eletromagnético forte, em teoria, pode corromper dados; no contexto forense, essa cautela é uma necessidade para assegurar que não analisamos uma ‘contrafação’ do estado original”.

A Teoria dos Jogos e a tarefa da defesa (e da acusação): movimentos para expandir ou explorar a enciclopédia judicial

Alexandre Morais da Rosa, o professor de processo penal, conectou as pontas. “A defesa, ao se deparar com essa ‘enciclopédia pessoal’ do juiz, que desvaloriza essas cautelas mais abstratas ou a documentação detalhada, está diante de um desafio estratégico, perfeitamente analisável pela Teoria dos Jogos. O objetivo da defesa não é apenas apresentar um argumento técnico, mas realizar um ‘movimento’ que efetivamente expanda a compreensão do juiz.”

Não basta dizer “a norma X exige tal proteção” ou “a norma Y não foi seguida”. É preciso, continuou Alexandre, “construir uma narrativa que faça sentido para o julgador, que conecte essa cautela técnica aparentemente esotérica com os princípios fundamentais do processo penal, como a busca pela verdade possível e, principalmente, a presunção de inocência. A defesa precisa demonstrar, talvez por analogia ou por meio de estudos de caso, como a ausência dessa proteção específica ou da documentação completa da apreensão poderia levar a uma alteração, perda de dados ou a uma interpretação descontextualizada que, por sua vez, poderia comprometer a análise dos fatos. O ‘jogo’ é mostrar que a não observância da cautela introduz uma dúvida razoável sobre a integridade e a própria identidade da fonte da prova. É crucial que o julgador não caia na ‘cegueira da enciclopédia pessoal’, percebendo que ‘a evidência crucial’ pode ser uma ‘falsificação’ se os ‘critérios de autenticidade’ forenses não forem aplicados”.

Alexandre fez uma pausa, ajustando os óculos. “Mas não podemos esquecer que a acusação também ‘joga’ neste tabuleiro. Ela pode, por exemplo, ciente da ‘enciclopédia pessoal’ do juiz, apresentar a prova digital de forma excessivamente simplificada, minimizando ou omitindo as complexidades técnicas da coleta e preservação, justamente para explorar essa familiaridade e a aparente robustez do dispositivo aos olhos do magistrado. É um movimento que busca reforçar o status quo da compreensão judicial, dificultando o trabalho da defesa em introduzir novas perspectivas e exigências técnicas.”

Neste ponto, a defesa deve se questionar estrategicamente, como ponderaria Alexandre: vale o risco de mencionar uma norma específica e apontar seu descumprimento, como a proteção contra interferência eletromagnética, ante a improbabilidade percebida pelo senso comum de uma contaminação real em celulares, fenômeno este talvez mais associado na “enciclopédia” popular a discos rígidos?

Embora a impugnação se dê em bases científicas sólidas, a abordagem defensiva não precisa, necessariamente, ser encarada como um jogo de soma zero, um “tudo ou nada”, visando apenas o desentranhamento da prova.

A menção ao descumprimento de uma cautela importante, mesmo que o risco de dano efetivo pareça remoto ao julgador, pode ser um elemento tático crucial para firmar o panorama de descuido com a cadeia de custódia desde o momento da apreensão. Torna-se um argumento que, somado a outras possíveis falhas processuais ou na preservação da evidência, reforça a tese de que a prova apresentada carece da confiabilidade necessária para fundamentar uma decisão.

Nesse embate de narrativas e estratégias, o que se busca por parte da defesa, em última análise, é instilar no juiz um ceticismo epistêmico saudável. Não um ceticismo que paralise o processo ou negue a validade da tecnologia, mas um que o motive a questionar a aparente simplicidade da prova digital e a valorizar intrinsecamente os procedimentos técnicos que são, de fato, os guardiões de sua confiabilidade. Trata-se de uma tentativa de transformar a percepção judicial: fazer com que o magistrado, ao se deparar com um celular apreendido, não veja apenas o “duplo” do aparelho que reside em seu bolso, mas reconheça ali um “pseudoduplo” forense, um objeto cuja “aura” de autenticidade, como diria Umberto Eco, depende vital e intrinsecamente do rigor metodológico de sua coleta e preservação.

Concluindo a noite (e o artigo)

A conversa no bar digital avançou, revelando que a jornada para assegurar a justiça na era tecnológica é pavimentada tanto por desafios técnicos quanto por complexidades hermenêuticas e estratégicas.

A obra de Umberto Eco, ao desconstruir a noção de autenticidade como algo dado e ao enfatizar seu caráter interpretativo e pragmático, fornece um arcabouço teórico poderoso. Ele nos lembra que declarar algo “autêntico” é um ato de interpretação que deve ser justificado, e que a compreensão de qualquer “texto” — seja ele literário ou um artefato digital — depende da “enciclopédia” que mobilizamos.

As normas técnicas e os princípios da arquivística digital, como os defendidos por Luciana Duranti com foco na identidade e integridade dos registros, podem ser vistos como tentativas cruciais de estabelecer os “limites” e os “critérios de economia” para essa interpretação no domínio digital.

Eles buscam criar as condições para que a “semiose ilimitada” — a vasta potencialidade de interpretação dos dados contidos em um celular, por exemplo, que na visão peirceana busca aprofundar o entendimento — não se transforme em “deriva” caótica, mas sim em um processo que, dentro de um sistema de justiça adversarial e sob a presunção de inocência, possa levar a conclusões mais confiáveis sobre a identidade, integridade e, finalmente, o significado probatório do artefato.

Nesse intrincado cenário, onde a experiência pessoal pode facilmente ofuscar o rigor técnico, e onde tanto defesa quanto acusação elaboram suas estratégias, emerge a complexa tarefa dos atores processuais, como bem analisaria um estudioso das táticas e vieses judiciais como Alexandre Morais da Rosa.

O desafio da defesa é, em essência, um desafio semiótico e pedagógico. É preciso “traduzir” a importância dos procedimentos técnicos de uma forma que faça sentido dentro da “enciclopédia” do juiz, ou, de forma mais ambiciosa, que expanda essa enciclopédia. É necessário mostrar que o smartphone, quando se torna evidência — e aqui reside uma distinção fundamental sob a égide da presunção de inocência –, transcende radicalmente sua função cotidiana.

Diferentemente do aparelho pessoal, cujo conteúdo e funcionamento são de responsabilidade e conhecimento do usuário, o celular apreendido no contexto de uma investigação penal carrega consigo o peso de poder incriminar ou inocentar. Por isso, ele exige entrar em um novo “universo de discurso” — o da ciência forense — com suas próprias regras e exigências intransigíveis para que o “sentido” (a informação probatória) seja corretamente extraído, validado e, acima de tudo, não contaminado.

Sem essa conscientização, a experiência pessoal do juiz com seu próprio celular no bolso continuará sendo um poderoso, porém potencialmente enganoso, “interpretante” da realidade da prova digital, arriscando transformar a busca pela verdade processual em uma perigosa construção de “ficções probatórias”, com graves implicações para os direitos fundamentais.

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Este artigo apresenta um diálogo ficcional. As falas dos personagens Umberto Eco, Luciana Duranti e Alexandre Morais da Rosa são construções do autor, baseadas em seus campos de estudo, e não citações diretas de suas obras.


DURANTI, Luciana. “The Long-term Preservation of Authentic Electronic Records: Findings of the InterPARES Project.” Archivaria, n. 60, p. 39–67, Fall 2005.

DURANTI, Luciana; ROGERS, Corinne. Trust in digital records: an increasingly cloudy legal area. Computer Law & Security Review, v. 28, n. 5, p. 522–531, out. 2012. DOI: 10.1016/j.clsr.2012.07.009.

ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 1 ed. Florianópolis: Emais, 2021.

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