Advogados públicos precisam estar inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)? Eis a questão posta no Supremo Tribunal Federal (STF) via Recurso Extraordinário 609.517.
Responder a essa questão exige um périplo pelos constitucionalismos moderno e brasileiro, verificar dispositivos normativos sobre o tema e pesquisar como a doutrina e outros atores institucionais entendem comumente o alcance do vocábulo advogado.
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José Roberto de Castro Neves, em seu maravilhoso livro Como os advogados salvaram o mundo, traça a história da advocacia e sua contribuição para a humanidade, revelando como ela teria protegido “o homem de seu maior inimigo: o próprio homem”[1].
Como pontificou Rui Barbosa, “os advogados, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França, na Bélgica, em toda parte, nunca deixaram de sentir esses laços de solidariedade entre sua classe e o governo da lei, a preservação das garantias liberais, a observância das constituições juradas”[2].
Isso se refletiu na feitura da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1891, de modo que, tal como Rui revelava, os juristas, os advogados que a fizeram – ele, sobretudo –, redigiram-na “com uma organização de justiça, capaz de se contrapor aos excessos do governo e aos das maiores legislativas”[3].
Também se refletiu na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que, no capítulo IV (“Das funções Essenciais à Justiça”), contém dispositivos sobre a advocacia pública e a advocacia, em geral, além de várias menções a advogado(s) ao longo de todo o texto constitucional.
Sendo impossível um Estado Democrático de Direito sem um sistema de justiça e sem a advocacia atuando como função essencial à justiça, o artigo 133 da Constituição, numa redação enxuta, mas condizente com a da profissão que salvou o mundo tantas vezes, declarou que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Sobre o dispositivo, Bernardo Cabral, relator da Comissão de Sistematização da Constituinte, em uma entrevista dada a mim e ao professor Felipe Asensi, explicou como se defendeu da acusação feita pelo também senador Roberto Campos, no sentido de que estaria constitucionalizando “uma reserva de mercado”[4]:
“Lembro aqui, sendo bem sincero, que o Sobral Pinto era um católico fervoroso e foi o advogado de Luís Carlos Prestes, um comunista conhecido. Quando houve esta informação, o silêncio foi conquistando o plenário. E continuei: ‘Heleno Cláudio Fragoso era um democrata, conhecidíssimo. Defendia presos políticos sem cobrar nada deles, só pela liberdade’. George Tavares, que ainda está vivo aí. Portanto, me dirigi ao senador e falei: ‘sabe, senador, Napoleão dizia que se pudesse cortava a língua de todos os advogados. Mas foi com um advogado que se salvou; e eu espero que o senhor não precise no final de sua vida cortar a língua de alguém’”.
O Supremo, no julgamento da ADI 3.026/DF, sob a relatoria do ministro Eros Grau, não passou ao largo dessas razões históricas e contextuais, consignado que a OAB não é entidade meramente corporativa, mas, por sua finalidade institucional, constitucional e infraconstitucionalmente demarcada, uma entidade sui generis[5].
A partir do reconhecimento da advocacia como instituição e da OAB como entidade qualificadas constitucionalmente, pode-se investigar o que faz, em termos jurídicos, alguém ser considerado advogado ou advogada.
A singeleza da pergunta não destoa da obviedade da resposta: assim como outros profissionais liberais (contadores, engenheiros, arquitetos, médicos, dentistas etc.), candidatos a advogados devem se submeter a exames de suficiência, organizados por conselhos profissionais.
Aprovados nos exames, podem se inscrever nos quadros da OAB, como os outros profissionais se inscrevem nos conselhos de suas profissões, e todos, indistintamente, poderão exercer suas profissões, se vinculados aos conselhos corporativos, aos quais cabe fiscalizá-los.
A Constituição da República reconheceu essa realidade, ao permitir, por exemplo, a cobrança de contribuições de “interesse das categorias profissionais ou econômicas” por parte dos chamados conselhos corporativos, em seu artigo 149.
É bem verdade que, enquanto ela não faz referência às profissões de contador, engenheiro, arquiteto, fisioterapeuta, dentista e se refira a “médicos” apenas duas vezes (no artigo 17); “advogado”, no singular ou plural, como adjetivo ou substantivo, como palavra isolada ou integrante de expressões como “Ordem dos Advogados do Brasil” e “Advogado-Geral da União”, aparece 28 vezes espraiada no texto constitucional.
A profusão vocabular tem a ver com o reconhecimento histórico e contextual da advocacia e da OAB para o Brasil, o que, antes de afastar a regra geral de ser necessário o vínculo de profissionais liberais aos conselhos profissionais ou corporativos, revela-se como razão adicional para advogados necessitarem de sua inscrição na OAB.
Por inferência, a inscrição na OAB deve abarcar todos os que exercem advocacia, mas, como estão separadas no capítulo IV do título IV da Constituição as instituições da “Advocacia Pública” (artigos 131 e 132) e da “Advocacia” (artigo 133), discute-se acerca de eventuais diferenças ontológicas entre advogados públicos e privados.
A doutrina nos socorre, a demonstrar que uns e outros são advogados e, como tais, devem estar inscritos na OAB.
Paulo Roberto de Gouvêa Medina, em seu livro Iura Novit Cúria: A máxima e o mito, explica, com base no ensinamento de vários processualistas, por que é assente que a jurisdição “é função do juiz exercida necessariamente com o concurso de advogado”[6].
Leonardo Carneiro da Cunha, no já clássico A Fazenda Pública em Juízo, vaticina que só detém capacidade postulatória, no processo civil brasileiro, “o advogado regularmente inscrito na OAB”[7], como regra geral, e, que a Fazenda Pública é representada por “procuradores judiciais, que são titulares de cargos privativos de advogados regularmente inscritos na OAB, detendo, portanto, capacidade postulatória”[8].
Para advogados públicos, a representação ou “presentação” na conhecida terminologia de Pontes de Miranda, independe de apresentação de instrumento de mandato, essa sim uma diferença de tratamento decorrente do regime de direito público, que, contudo, não indica diferença ontológica entre advogados públicos e privados, a ponto de levar a que aqueles não necessitem de inscrição na OAB.
É uma leitura razoável da Constituição a de que advogado, no sentido do artigo 133, abarca tanto aquele que exerce sua profissão de maneira privada, quanto aquele outro que, por concurso, ingressa nos quadros das carreiras da AGU e da Procuradorias Estatuais, que ganharam expressa previsão constitucional nos artigos 131 e 132, e, também nos das Procuradorias Municipais, por analogia – omissão no texto que se explica pelas trágicas falhas no federalismo brasileiro.
Essa leitura razoável da Constituição se infere também de importantes diplomas normativos, mostrando que os legisladores colhem a lição da doutrina, no sentido de que advogados públicos, em sendo advogados, precisam de inscrição na OAB.
Na Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (Lei Complementar 73/1993), o artigo 28 deixa claro que os membros das carreiras da AGU exercem advocacia, embora restrita às atribuições institucionais. Se exercem advocacia, acacianamente falando, é porque são advogados.
O parágrafo primeiro do artigo terceiro do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei Federal 8.906/94, é contundente: “Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional”.
Não bastasse isso, atos infralegais da própria advocacia pública, como editais de concursos e pareceres, exigem a inscrição na OAB, tanto dos postulantes aos cargos de procuradoria e advocacia públicas, quanto dos procuradores e advogados públicos nomeados, a fim de exercerem seu múnus institucional, a realçar uma interpretação que beira a costume constitucional.
Numa sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, como “participantes fundamentais do método de “trial and error”, de descoberta e obtenção do direito”[9], não se pode afastar a interpretação razoável, contextual e tradicional, pela necessidade de inscrição dos advogados públicos na OAB, compartilhada pelos Executivos em todas as esferas, pelos legisladores nacional e federal, pela advocacia pública nacional e pela própria entidade sui generis, calcada em argumentos doutrinários e históricos, de uma história constitucional propriamente dita, frise-se.
Não se desconhece, por fim, que devam os advogados públicos sofrer controle pelos entes que (re)presentam, de modo que parte das normas estatutárias e éticas da OAB não se aplicam a eles, o que decorre da especificidade do múnus institucional.
Retirar a necessidade de inscrição dos advogados públicos na OAB significa retirá-los de uma casa que nasceu para abrigar todos os advogados, protegendo quem protege os cidadãos e a sociedade como um todo.
Se parece inverossímil que alguém grite “primeiro, matemos todos os advogados”, como fez o açougueiro Dick, na peça “Henrique VI”, de Shakespeare[10], a perda suave dos direitos fundamentais e a profusão de abalos democráticos e governos autoritários no mundo contemporâneo recomenda que estejam os advogados públicos vinculados à entidade vocacionada institucionalmente à defesa dos direitos da cidadania, inclusive dos seus próprios membros.
[1] NEVES, José Roberto de Castro. Como os advogados salvaram o mundo – A história da advocacia e sua contribuição para a humanidade. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2018, p. 20.
[2] Trata-se de parte de seu discurso, intitulado “O S.T.F. na Constituição”, proferido no Instituto dos Advogados, ao tomar posse no cargo de presidente da instituição em 19 de novembro de 1914 (BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos. Seleção, organização e Notas de Virgínia Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997, p. 550.
[3] Ibidem.
[4] ASENSI, Felipe; PAULA, Daniel Giotti de. Tratado de Direito Constitucional: Constituição, Política e Sociedade. Vol. 1 Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 658.
[5] BRASIL, STF, ADI nº 3.026/DF, Rel. Min. Eros Grau, j. em 08.06.2006, D.J. em 19.06.2006.
[6] MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Iuria novit curia: a máxima e o mito. Salvador: Editora Juspodium, 2020, pp. 59-60.
[7] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 21ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2024, p.9.
[8] Ibidem, p. 10.
[9] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, pp. 42-43.
[10] Essa citação e outras na literatura clássica podem ser vistas no ensaio “Matar os Advogados”, de Alberto Manguel (MANGUEL, Alberto. Notas para uma definição do leitor ideal. São Paulo: Edições SESC, 2020, p. 89).