Bets, influenciadores e CPI: o que vem primeiro? O ovo ou a serpente?

À primeira vista, a CPI das Bets surgiu com um propósito legítimo: investigar manipulações esportivas e lacunas regulatórias em um setor multibilionário que cresceu à sombra da omissão estatal.

Mas, à medida que os holofotes se voltam para influenciadores digitais e celebridades consolidadas, jovens, ricos e carismáticos, o que se desenha não é apenas um inquérito legislativo.

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Ainda que diversas investigações tangentes ao tema estejam em curso, é preciso contextualizar como se chegou até aqui e qual foi o papel do próprio Estado na construção desse cenário.

A verdade é que isso é apenas uma das escamas da serpente cujo ovo começou chocada lá atrás.

O ovo: da loteria estatal à liberalização privada

Antes de 2018, o cenário legal das apostas no Brasil era limitado às loterias estatais (como a Loteria Esportiva da Caixa Econômica Federal), num contexto de controle institucional sobre a operação e a destinação social dos recursos, em uma lógica pública e limitada.

Tudo mudou com a sanção da Lei 13.756/2018, no apagar das luzes do governo Michel Temer (MDB).

A norma legalizou as chamadas “apostas de quota fixa”, é dizer, aquelas em que o apostador sabe previamente quanto poderá ganhar. Pela primeira vez, o Estado brasileiro autorizava a exploração desse tipo de jogo por operadores privados, desde que regulamentados pelo Ministério da Fazenda.

A justificativa era a de sempre: aumentar a arrecadação. Criava-se uma fonte de receita para fundos públicos, mas sem qualquer política de prevenção ao vício ou proteção ao consumidor.

O setor operaria por anos em um vácuo normativo quase absoluto, tempo suficiente para que as casas de apostas se tornassem patrocinadoras de clubes, atletas, federações esportivas, canais de TV e, claro, perfis digitais com grande alcance.

O ovo cresce em silêncio

Durante a eleição de 2022, o fenômeno das apostas já era amplamente disseminado. Mesmo assim, nenhum dos principais candidatos enfrentou o tema de forma estruturada.

Curiosamente, o que se discutia com mais ênfase era o endividamento da população brasileira, com propostas como o programa “Nome Limpo”, de Ciro Gomes, que prometia anistiar dívidas pessoais em larga escala.

É sintomático: enquanto o Estado ignorava o impacto das bets, parte significativa da população passou a acreditar e desejar que uma solução financeira poderia vir do próprio celular.

E tal fenômeno não pode ser tratado como obra do caso. O Brasil possui uma população hiper conectada e financeiramente fragilizada. O tempo médio diário gasto por brasileiro nas redes era de 3h46, superando em mais de uma hora a média mundial. E 87% da população com 10 anos ou mais já possuía telefone celular pessoal.

Esse grau de conectividade, somado ao cenário de desamparo econômico e à falta de educação digital crítica, criou um ambiente ideal para a disseminação de narrativas sobre enriquecimento fácil.

O resultado era previsível. Mas ninguém quis ver.

A serpente morde: da arrecadação ao bode expiatório

A mudança de tom só veio quando os efeitos adversos da política arrecadatória começaram a transbordar e se tornaram de difícil abafamento. A promessa de ganhos fiscais passou a ser ofuscada por relatos de endividamento familiar, transtornos compulsivos e erosão da confiança pública. O que começou como alívio para o caixa do Estado tornou-se angústia no orçamento do cidadão comum.

E aqui reside uma assimetria brutal: para a população empobrecida e sufocada por juros elevados, inflação persistente e insegurança laboral, o aumento da arrecadação não representa absolutamente nada. Já o impacto social do endividamento gerado pelas apostas — potencializado por campanhas massivas em plataformas digitais — é sentido no cotidiano, nos bolsos, na mesa.

Quando essa dissonância ficou incontornável, o Estado respondeu da forma que lhe é mais fácil: construiu culpados. E os escolheu a dedo: não os clubes, não as ligas, não os conglomerados de mídia. Mas sim os influenciadores: jovens, autônomos, expostos e sem proteção institucional.

O inimigo ideal

A responsabilização simbólica dos influenciadores segue um roteiro já conhecido: diante de uma crise estrutural, personaliza-se o problema para evitar encarar suas raízes. Os influenciadores são ideais para esse papel: são visíveis, falam direto ao público, movimentam cifras fora do radar tradicional do poder e, por tudo isso, causam incômodo.

Mas reduzir essa questão a um problema de conduta individual é perder de vista que essa atuação prosperou em um ambiente de desregulação e ambiguidade jurídica construído ao longo de anos. A própria cronologia político-jurídica mostra que o Estado optou por um modelo permissivo e arrecadatório, sem definir os limites de atuação de quem promovia ou explorava comercialmente esse mercado. Isso agora cobra seu preço.

Da arena digital ao tribunal moral: a CPI como espetáculo

A CPI das Bets, em vez de se firmar como espaço de diagnóstico institucional, parece ter abraçado sua vocação de palanque moral.

Os interrogatórios, as falas indignadas, os vazamentos seletivos: tudo indica um desejo mais performático do que técnico. A tentativa de transformar influenciadores em réus sociais atende muito mais à lógica da viralização do que à lógica da responsabilidade.

Isso não é política pública. É teatro.

E não se trata aqui de defender a livre e irrestrita promoção de jogos de aposta nas redes sociais. A história da publicidade já nos ensinou que atividades legais, mas socialmente danosas, podem e devem ser reguladas com rigor (como foi o caso do cigarro). O que se espera, no entanto, é que esse rigor venha acompanhado de coerência institucional.

Ao transformar comunicadores em bodes expiatórios, perde-se a oportunidade de construir uma política pública robusta e preventiva. A atuação dos influenciadores, com todos os seus excessos e ambiguidades, deve ser analisada como parte de um ambiente jurídico e político mal gerido, jamais como causa isolada de um fenômeno complexo.

Para enfrentar a questão das apostas esportivas com a seriedade que ela exige, será preciso mais do que CPIs e manchetes: será necessário reconhecer os próprios erros, regulamentar com transparência e construir uma política que seja justa, coerente e, sobretudo, preventiva. O tempo de criminalizar o reflexo já passou. É hora de olhar para o espelho.

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