A Ciência Política brasileira consolidou-se como campo acadêmico significativamente influenciado pela tradição metodológica e teórica dos Estados Unidos. Essa influência remonta à primeira metade do século 20, quando a academia norte-americana passou por uma revolução comportamentalista, substituindo abordagens descritivas e filosóficas por modelos baseados em estatística inferencial e métodos quantitativos (Feres Jr., 2000; Limongi, Almeida, Freitas, 2016).
Esta influência na academia brasileira se materializou através de mecanismos institucionais específicos. A Fundação Ford desempenhou papel significativo ao financiar a formação de pesquisadores brasileiros nos Estados Unidos, especialmente na consolidação de centros como o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ, atual IESP-UERJ) e o Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Esses pesquisadores, ao retornarem, trouxeram consigo não apenas o conhecimento técnico das abordagens quantitativas, mas também uma visão epistemológica sobre o que constituía pesquisa válida em Ciência Política (Forjaz, 1997; Keinert, Silva, 2010). Esse processo ajudou a institucionalizar uma visão de cientificidade alinhada à empiria das ciências exatas, priorizando técnicas capazes de estabelecer inferências causais por meio de modelos estatísticos (Leite, Feres Jr., 2021; Lenine, Mörschbächer, 2020).
A adoção de métodos quantitativos tornou-se um marco distintivo da Ciência Política brasileira, diferenciando-a de outras áreas das ciências humanas (Avritzer, 2016; Leite, Feres Jr., 2021). No Brasil, essa perspectiva consolidou-se especialmente em currículos acadêmicos.
Análises de disciplinas oferecidas no IUPERJ e na USP entre 1969 e 2013 revelaram que 50% das cadeiras metodológicas estavam focadas em métodos quantitativos e estatística, enquanto apenas 10% abordavam métodos qualitativos (Oliveira, Nicolau, 2012). Por sua vez, outro estudo demonstrou que programas de pós-graduação mais antigos, concentrados no Sudeste, tendem a replicar essa hierarquia, priorizando técnicas como econometria e modelos estatísticos formais (Barberia, Godoy, Barbozza, 2014).
A produção científica naturalmente refletiu essa tendência. Estudos sobre periódicos nacionais indicam que, a partir dos anos 1990, artigos empíricos passaram a dominar as publicações, com predomínio de análises estatísticas (Nicolau, Oliveira, 2017; Leite, Feres Jr., 2021). Pesquisas evidenciam que periódicos de maior impacto e mais alinhados com o Ethos da Ciência Política dão prioridade a abordagens quantitativas, relegando estudos qualitativos a veículos menores, com menor visibilidade e reconhecimento (Leite, Feres Jr., 2021; Lenine, Mörschbächer, 2020).
Entretanto, de maneira distinta nos Estados Unidos, onde os métodos quantitativos são uma significativamente dominantes, ao ponto de haver movimentos para se ter uma abertura mínima para pesquisas qualitativas (i.e. movimento perestroika), a Ciência Política brasileira apresenta sim um emprego notável de métodos qualitativos. Estudos recentes revelam que cerca de um terço (32,7%) dos artigos em periódicos nacionais empregam ou declaram empregar métodos qualitativos (Leite, Feres Jr., 2021).
Isso acabou gerando uma situação paradoxal. A Ciência Política brasileira se enxerga como majoritariamente quantitativista – o que não é verdade – e acaba refletindo pouco sobre o emprego de métodos qualitativos em seu interior. Um exemplo notável disso se deu quando Gláucio Soares (2005) tratou sobre o calcanhar metodológico da área. A principal interpretação de seu chamado ao aumento de rigor na área apontou para a necessidade de mais métodos quantitativos e mais modelos estatísticos.
Porém, Soares também fez críticas e sugestões às pesquisas qualitativas, argumentando que a hostilidade às abordagens quantitativas não foi substituída por uma aplicação rigorosa dos métodos qualitativos, mas por uma “ausência de métodos”.
Quase duas décadas depois, há poucos indícios de que esta situação tenha mudado substancialmente. Szwako, Dowbor e Pereira (2022) observam a “corriqueira ausência de seção dedicada a métodos em artigos baseados em abordagens qualitativas” e “o recurso pouco reflexivo à técnica das entrevistas semiestruturadas”. Esta ausência de reflexão metodológica compromete a qualidade e o rigor da pesquisa qualitativa na área.
A isso, adicionamos a visão de que a discussão metodológica qualitativa recente tende a privilegiar os chamados “novos métodos qualitativos” na Ciência Política – principalmente Process Tracing e Qualitative Comparative Analysis – que se alinham à busca por inferências causais. Esta tendência reflete a influência do livro Designing Social Inquiry (1994) de King, Keohane e Verba, que propôs que métodos qualitativos poderiam gerar inferências causais sob uma lógica de estatística inferencial.
Como argumentam Brady e Collier (2010), os métodos qualitativos possuem especificidades e vantagens próprias que não deveriam ser julgadas a partir de um “template quantitativo”. Entre estas especificidades, estão a capacidade de observar processos causais em contextos históricos complexos, a seleção criteriosa de casos estrategicamente relevantes, e a possibilidade de análise minuciosa que proporciona “descrições densas” dos fenômenos estudados.
O desenvolvimento da Ciência Política brasileira não requer o abandono dos métodos quantitativos, mas sim o reconhecimento da importância e do rigor dos métodos qualitativos, bem como uma efetiva integração entre as diferentes abordagens metodológicas. Para isso, é necessário fortalecer tanto o treinamento metodológico quanto a discussão epistemológica relacionada à pesquisa qualitativa. A produção de materiais didáticos, como manuais e cursos dedicados às técnicas qualitativas aplicadas aos problemas da Ciência Política brasileira, representa um passo importante nessa direção.
Também é fundamental que os periódicos da área reconheçam o valor das contribuições qualitativas e das discussões metodológicas a elas relacionadas. Um campo que valoriza a diversidade metodológica está mais bem equipado para enfrentar os desafios complexos que caracterizam a realidade política contemporânea.
A demanda por avaliações robustas e holísticas dos fenômenos políticos tende a crescer, exigindo pesquisadores capazes de dominar e integrar diferentes métodos. Como observado por diversos autores, a dicotomia entre métodos quantitativos e qualitativos está superada no plano do discurso. O desafio atual é transformar este reconhecimento retórico em práticas concretas de formação, pesquisa e publicação.
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Este texto resume as principais ideias presentes na introdução do Manual de introdução às técnicas de pesquisa qualitativa em Ciência Política, recém-lançado pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Reunindo 37 autores de 14 instituições brasileiras, o manual oferece um guia estruturado em cinco eixos: técnicas de coleta de dados (entrevistas, grupos focais), análise de dados (temática, textual), abordagens metodológicas (etnografia digital, estudos de caso), questões gerais (ética, softwares CAQDAS) e métodos emergentes (Process Tracing, QCA).
Seu diferencial está na integração de inovação tecnológica — como uso de R, Python e ferramentas digitais —, rigor ético e exemplos aplicados à realidade político-brasileira e internacional. Disponível gratuitamente em formato digital, o material destaca-se por debater a relevância dos métodos qualitativos em um mundo impactado pela inteligência artificial, reforçando sua contribuição para análises contextuais e transparentes.
AVRITZER, Leonardo. O papel do pluralismo na formação e consolidação da Ciência Política no Brasil. P. 165-183. In: AVRITZER, Leonardo; MILANI, Carlos; BRAGA, Maria do Socorro(Orgs.). A ciência política no Brasil: 1960-2015 . Rio de Janeiro: FGV Editora, p. 61-92, 2016.
BARBERIA, Lorena; GODOY, Samuel; BARBOZA, Danilo. Novas perspectivas sobre o’Calcanhar Metodológico’: o ensino de métodos de pesquisa em Ciência Política no Brasil. Revista Teoria& Sociedade , v. 22, n. 02, p. 156-184, 2014.
BRADY, Henry E.; COLLIER, David(orgs.). Rethinking social inquiry: Diverse tools, shared standards . Lanhan, Rowman& Littlefield Publishers, 2010.
FERES JR, João. Aprendendo com os erros dos outros: o que a história da ciência política americana tem para nos contar. Revista de Sociologia e Política , p. 97-110, 2000.
FORJAZ, Maria Cecília. A emergência da Ciência Política acadêmica no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 12, p. 101-120, 1997.
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LIMONGI, Fernando; ALMEIDA, Maria; FREITAS, Andrea. Da sociologia política ao(neo) institucionalismo: 30 anos que mudaram a ciência política no Brasil. In: AVRITZER, Leonardo; MILANI, Carlos R.; BRAGA, Maria do Socorro(Orgs.). A ciência política no Brasil: 1960-2015 . Rio de Janeiro: FGV Editora, p. 61-92, 2016.
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SZWAKO, José; DOWBOR, Monika; PEREIRA, Mateus.(orgs.) Métodos em movimento . Rio de Janeiro: Eduerj, 2022.