Ampliar as cotas raciais no serviço público é fortalecer a democracia

A promoção da igualdade racial no Brasil exige mais do que compromissos declaratórios — requer medidas concretas, sustentadas por dados e alinhadas com os princípios constitucionais. Nesse sentido, a ampliação das cotas raciais no serviço público federal, aprovada pelo Senado e em fase de sanção presidencial, é um avanço necessário e coerente com os desafios ainda presentes no campo da inclusão institucional.

Ampliar o percentual reservado para pessoas negras em concursos públicos, de 20% para 30%, não é apenas uma atualização estatística. É o reconhecimento de que as barreiras à participação de grupos racializados nos espaços de poder permanecem relevantes — e que cabe ao Estado enfrentá-las com políticas públicas consistentes. O serviço público, enquanto estrutura de representação e de execução de políticas, deve refletir a diversidade da sociedade brasileira.

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Não se trata de retórica, mas de legitimidade democrática.

Uma democracia de verdade se constrói também a partir da composição dos espaços de poder — e esses espaços precisam refletir, com honestidade e coragem, o rosto real do Brasil.

A proposta aprovada preserva o critério da autodeclaração, já consolidado em nossa legislação, e prevê o modelo de verificação complementar para assegurar a integridade da política. Esses procedimentos deverão respeitar regras claras: padronização, respeito às realidades regionais, participação de especialistas, direito ao contraditório e decisão unânime nos casos em que se conclua pela não confirmação da identidade racial declarada. Esse equilíbrio entre reconhecimento e responsabilidade fortalece a confiança pública na ação afirmativa.

Outro ponto importante é a aplicação da cota sempre que houver duas ou mais vagas, com previsão de arredondamento para cima em caso de frações iguais ou superiores a 0,5. Essa previsão técnica reforça a efetividade da política, especialmente em concursos com número reduzido de cargos. Sem esse cuidado, a política poderia se tornar simbólica ou até inócua em muitos concursos.

A previsão de reserva de vagas para indígenas e quilombolas também é fundamental. Ainda que os percentuais para esses grupos dependam de regulamentação, o reconhecimento legal de sua condição de sujeitos de direitos em políticas de inclusão é um passo relevante para a construção de uma sociedade mais plural e justa.

Com toda certeza, as ações afirmativas precisam dialogar com a complexidade da nossa formação social, marcada por diversas camadas de exclusão e precisam reconhecer a necessidade de enfrentar as desigualdades interseccionais que marcam as trajetórias desses grupos.

Além disso, o projeto estabelece que a política deverá ser revisada a cada dez anos. Esse mecanismo reforça a ideia de que políticas afirmativas não são definitivas, mas também não devem ser precárias. Precisam de estabilidade para alcançar seus objetivos e de monitoramento para se manterem eficazes e legítimas.

Muitas vezes se questiona se cotas raciais ainda são necessárias. A resposta, baseada na realidade, é sim. Ainda vivemos em um país onde desigualdades de acesso à educação, ao emprego público e aos espaços de decisão têm cor. As ações afirmativas, quando bem desenhadas e aplicadas com responsabilidade, corrigem distorções históricas sem negar o mérito. Elas reconhecem que equidade não se faz com tratamento igual para realidades desiguais.

O mito da meritocracia absoluta, quando desvinculado de uma crítica à desigualdade estrutural, transforma-se em instrumento de manutenção do status quo. É preciso encarar o fato de que nem todos largam da mesma linha de partida. E, por isso, é dever do Estado criar mecanismos que aproximem as condições de chegada.

A proposta também garante que, em caso de indeferimento da autodeclaração, o candidato possa continuar concorrendo na ampla concorrência, salvo nos casos em que haja comprovação de má-fé.

É fundamental lembrar: as cotas raciais no serviço público não são concessões, são instrumentos de justiça. Muitas vezes debatidas sob uma ótica distorcida, não são favores nem privilégios e não retiram oportunidades de ninguém, mas ampliam as possibilidades para quem, historicamente, teve pouco ou nenhum acesso. Servem, sobretudo, para qualificar o Estado, promovendo diversidade nas equipes que formulam, executam e fiscalizam políticas públicas.

A expectativa é de que a sanção presidencial ratifique esse avanço legislativo. A democracia se fortalece quando as instituições se tornam mais representativas. E a presença de pessoas negras, indígenas e quilombolas no serviço público não apenas expressa inclusão: contribui para decisões mais justas, políticas mais eficazes e uma gestão mais conectada com a realidade do país.

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