Poder Legislativo, emendas parlamentares e protagonismo hegemônico

O Poder Legislativo no Brasil assumiu incomum protagonismo na dinâmica da relação entre os poderes. Ineditismo que põe em xeque as funções próprias desse Poder conforme tradicionalmente concebidas e redesenha sua interação com os demais, especialmente com o Executivo.

O decano dos constitucionalistas brasileiros, José Afonso da Silva[1], que neste ano acabou de registrar o centenário de seu nascimento, ensina-nos que, à luz da história política e sobretudo da Constituição Federal de 1988, duas são as principais funções institucionais do Parlamento: (a) a de legislação e (b) a de fiscalização e controle.

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A função legislativa, a mais conhecida de todas e ancorada na inerente representatividade que lhe é peculiar, manifesta-se na faculdade de editar leis voltadas ao atendimento das necessidades coletivas da sociedade. É uma das expressões mais evidentes do poder estatal na vida social, especialmente em países como o Brasil, onde a lei possui centralidade no quadro das fontes normativas do ordenamento jurídico.

Já a função de fiscalização do Legislativo, crucial à preservação e respeito dos limites constitucionais pelo governo no Estado de Direito, desdobra-se em diversas prerrogativas, entre as quais se pode citar (especialmente no sistema brasileiro): suspensão de atos do Executivo; edição de decretos legislativos para regulamentar efeitos da medida provisória não convertida em lei; referendo, autorização, aprovação, sabatina e controle em torno de atos dos demais poderes, destacando-se o controle sobre nomeação de várias autoridades pelo Executivo; pedidos de informação; instauração de procedimentos de tomada de contas e de comissões parlamentares de inquérito.

Além daquela sensível competência, elementar à engrenagem do Estado Democrático de Direito, de exercer a jurisdição constitucional em face da responsabilidade política das principais autoridades republicanas, isto é, o poder de julgá-las por crime de responsabilidade.

As faculdades de “estatuir” e de “impedir”, como as mencionava Montesquieu[2] ao explicar como tal poder freia e acelera a máquina estatal, deixam revelar a centralidade do Legislativo não só como poder de legitimação política do funcionamento do Estado, mas também como garantidor da própria legalidade.

Isso porque, como chefe de governo, os titulares do Executivo têm por competência fundamental formular os planos de governo, que deverão executar em conformidade com as leis aprovadas pelo Legislativo e com a disponibilidade de recursos existente.

É célebre, nesse contexto, a doutrina de Hamilton[3], no Federalist Paper LXX, que o Executivo deve ser revestido de força suficiente para a boa execução das leis e para o exercício do bom governo. Portanto, é necessário que seja dotado com “energia” suficiente, isto é, com razoável “duração”, “unidade”, “poderes competentes” e “provisões necessárias para seu suporte”.

Porém, são justamente esses elementos estruturantes do governo (ou Poder Executivo) que estão em xeque na (nova) dinâmica da política brasileira, após as recentes modificações na Constituição Federal, que trouxeram um novo tipo de equilíbrio institucional (altamente instável) nas relações entre Legislativo e Executivo.

A questão, aqui examinada, diz precisamente respeito ao grau e à forma de participação do Legislativo na elaboração e execução do orçamento público sem as devidas cautelas e contracautelas a que o Executivo como órgão planejador e executor do orçamento está diretamente submetido por força da própria fiscalização pelo Legislativo (função constitucional típica), além do sempre presente controle judicial.

Claro, sabemos que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um sistema financeiro (e orçamentário) estruturado e complexo, conferindo ao Legislativo especial participação política ao restaurar sua competência de propor emendas aos projetos de lei orçamentária (art. 166, § 3º)[4]. Essa abertura é salutar e democrática, dada a natureza e sensibilidade própria do Legislativo para, não raro, melhor captar demandas sociais e adequar o plano de governo a elas.

Não obstante a Constituição Federal de 1988 tenha avançado no tópico relativo à democratização do processo decisório do orçamento público, a grande inovação – a alterar a lógica da distribuição dos poderes – estaria por vir, dando ensejo à reconfiguração da original estrutura constitucional presidencialista.

Com a promulgação das Emendas Constitucionais 86, de 2015, e 100, de 2019, atribuiu-se o caráter de impositividade ou obrigatoriedade à execução das emendas parlamentares, transformando-se consideravelmente o papel institucional do Legislativo no processo de distribuição dos recursos orçamentários e de elaboração final da peça orçamentária.

A EC 86/2015, conhecida como PEC do Orçamento Impositivo, previu a execução obrigatória de emendas parlamentares individuais, com o objetivo de estabelecer um contraponto à criticada concentração do poder orçamentário nas mãos do Executivo. Um passo considerável nessa escalada evolutiva, que, no entanto, não foi completo, porque, segundo seus próprios termos, ficava ainda permitido o contingenciamento de emendas parlamentares na mesma proporção da limitação incidente sobre o conjunto das despesas discricionárias por parte do Executivo.

Com a aprovação da EC 100/2019, ampliou-se a obrigatoriedade das emendas parlamentares orçamentárias, que não mais ficaram restritas às emendas individuais, passando também a contemplar as emendas coletivas (de bancada)[5]. Ainda, intensificou-se o denominado “orçamento impositivo”, ao prever a execução obrigatória de emendas parlamentares de bancada estadual com base na receita corrente líquida.

Em seguida, ocorreu a edição da EC 105/2019, que definiu “duas novas” modalidades de emendas parlamentares individuais (emenda individual de transferência especial e emenda individual de transferência com finalidade definida).

Sua grande novidade foi a criação de emendas individuais de transferência especial (art. 166-A, inciso I), que permitem o repasse de recursos federais sem a necessidade de convênio ou instrumento congênere, as famosas “emendas Pix”, por meio das quais se opera a transferência quase que imediata de recursos federais para estados e municípios sem maiores formalidades ou condicionamentos.

Há um consenso doutrinário e jurisprudencial[6] de que essas modificações no regime constitucional orçamentário tornaram as emendas parlamentares, para além de uma proposição autorizativa (que dependia da discricionária decisão do Executivo para executá-la), em verdadeira proposição impositiva, de execução obrigatória[7], em relação à qual já não mais existe a competência discricionária do Executivo sobre seu efetivo pagamento ou não. Antes o efetivo pagamento de emenda parlamentar era uma questão eminentemente política; agora, uma questão jurídica.

A controvérsia, contudo, em torno da qual devemos refletir, é que, com todo esse ganho de poder na definição do orçamento público e na sua execução, qual a contrapartida em termos de responsabilidade constitucional que subsiste para cada um dos membros do Legislativo ao definir como e onde se dará a execução do gasto público?

Se é certo que a elaboração de políticas públicas e a execução orçamentária é competência do Executivo (como lembrava Hamilton, a força do Executivo estaria em sua energia consistente na unidade de ação, dotada de suporte financeiro e poderes necessários), ao menos no sistema presidencialista, como esperar-se um governo capaz de enfrentar estruturalmente os graves problemas nacionais, cujas soluções demandam propostas complexas elaboradas a partir de um planejamento a longo prazo?

Se a execução orçamentária sempre foi acompanhada e fiscalizada de perto pelo Legislativo, agora que os membros do parlamento são coautores na execução orçamentária, quem fiscaliza os fiscalizadores-executores?

O Executivo, conforme previsto no art. 70[8] da Constituição Federal de 1988, é fiscalizado pelo Legislativo não só pelo gasto público realizado, mas também à luz da qualidade desse gasto. Significa dizer que a prestação de contas não se limita apenas à verificabilidade da legalidade formal, mas abrange critérios relativos à sua eficiência, moralidade, economicidade e publicidade.

E o parlamentar? Poderá ser responsabilizado pela construção da quinta escola no município “A”, quando o município vizinho, “B”, não tenha escola alguma? E se destinar verba para construir escola no município “C”, que não consiga pôr em funcionamento por ausência de recursos próprios para contratação de professores, gestores escolares e sua manutenção?

Autor de emenda parlamentar que destine verba para compra de aparelho de ressonância magnética em certa municipalidade, que sequer tenha em sua rede de saúde unidade hospitalar com infraestrutura adequada à instalação desse equipamento médico de alta tecnologia, será responsabilizado de que forma pela destinação desses recursos públicos?

Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal mostram que o sistema de controle e fiscalização das emendas parlamentares, em especial das “emendas Pix”, é bastante precário e incipiente.

Por outro lado, constata-se a insuficiência de critérios mínimos na Lei Complementar 210, de 25 de novembro de 2024, que “dispõe sobre a proposição e a execução de emendas parlamentares na lei orçamentária anual”, sobre eventual responsabilidade parlamentar na hipótese de malversação das verbas públicas ou ausência de qualidade da despesa pública, decorrente de emenda parlamentar.

Sequer se avançou, com a LC 210/2024, na possibilidade de suspensão da execução de emendas de parlamentares, que estejam comprovadamente envolvidos em irregularidades relativas à execução de suas próprias emendas.

Considerando que somente no exercício fiscal de 2025 a estimativa é que sejam destinados quase R$ 60 bilhões[9] para execução de emendas parlamentares, dos quais cada deputado federal terá à sua plena disposição, ao menos, R$ 37 milhões e cada senador em torno de R$ 68 milhões, esses temas precisam ser urgentemente levados em consideração.

É que, com a configuração dessa nova competência de formulação multifacetada e altamente fragmentada de políticas públicas por via orçamentária, a ideia do regime de governo em que o (chefe do) Executivo conduz a nau estatal segundo um plano preestabelecido e legitimado nas urnas cede espaço a um mosaico de possibilidades que caminha em múltiplas direções, sendo incapaz de atingir objetivos e resultados claros em âmbito nacional.

Fato que se agrava pelo fato de essa autonomia orçamentária para livre disposição parlamentar de quantia significativa do orçamento público projetar o Legislativo para uma espécie de “protagonismo hegemônico” em detrimento dos demais poderes, o que até aqui não se tem revelado uma genuína expressão do Estado Democrático de Direito, tampouco de uma harmônica relação de interdependência entre os poderes.


[1] SILVA, José Afonso da. Estrutura e funcionamento do Poder Legislativo. Revista de Informação Legislativa: a. 47 n. 187 jul./set. 2010, p. 137-154.

[2] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 310.

[3] Disponível em: https://guides.loc.gov/federalist-papers/text-61-70.

[4] “Art. 166. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do regimento comum. (…) § 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso”.

[5] Ressalte-se que, à luz da Constituição Federal de 1988 e sucessivas modificações, as emendas parlamentares voltadas à destinação das verbas públicas podem ser genericamente divididas em (a) emendas coletivas (de bancadas ou de comissão): aquelas apresentadas pelas bancadas estaduais do Congresso Nacional (deputados e senadores de um mesmo Estado) ou aquelas apresentadas exclusivamente pelas comissões permanentes do Congresso ou (b) emendas individuais (transferências especiais ou transferências com finalidade definida), aquelas apresentadas por deputados federais ou senadores para o orçamento do governo federal ou por deputados estaduais para o orçamento do governo estadual, com o objetivo de financiar obra ou projeto público em seu Estado ou região

[6] Dentre outros julgados, vale conferir a ADI 5274/SC (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 19/10/2021), em que o STF reconheceu que as ECs 86/2015 e 100/2019 deram ensejo à evolução de sua jurisprudência no sentido de que a lei orçamentária não se revestiria apenas de caráter formal e autorizativo, pois criaram emendas impositivas de caráter vinculativo.

[7] Cf. Dayson Pereira Bezerra de Almeida. Transferências Especiais e Incentivos Parlamentares. Brasília: Senado Federal, 2022; Rodrigo Faria. O redesenho das instituições orçamentárias, a explosão das emendas de relator geral RP-9 e o julgamento do orçamento secreto pelo STF. Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento. Brasília: Volume 13, e2302, 2023, p. 1-24; Caio Gama Mascarenhas. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção. Revista Eletrônica da PGE-RJ, Vol. 6, n. 1, 2023, p. 1-40; Giovani da Silva Corralo e Lucas Monteiro Alves de Oliveira. O Orçamento Público e as Emendas Parlamentares Impositivas em nível municipal: limites e possibilidades. Revista de Direito Tributário e Financeiro. Encontro Virtual |v. 9| n. 1 | p.92–109| Jan/Jul. 2023

[8] O art. 70 da Constituição prevê: “Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder” (grifos nossos).

[9] Fonte: Agência Câmara de Notícias (https://www.camara.leg.br/noticias/1142848-orcamento-de-2025-tem-mais-recursos-para-atendimento-das-demandas-de-parlamentares/)

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