Indo além dos bilhões de dólares para a transição ecológica

À medida que a crise climática global se agrava, seus efeitos afetam de forma desproporcional mulheres e meninas, especialmente nas regiões mais vulneráveis do mundo – inclusive, no Brasil.

A crise tende a afetar desproporcionalmente essa camada da população devido a suas responsabilidades sociais pelos cuidados (como a busca de água e preparação de alimentos, e suporte à saúde de crianças e idosos), e o acesso limitado a recursos, o que as torna mais vulneráveis a escassez e desastres climáticos. Além disso, elas tendem a enfrentar maiores riscos econômicos, de saúde e violência em tempos de crise, agravando as desigualdades de gênero já existentes na sociedade.

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A crise climática, portanto, não é neutra em termos de gênero. É no contexto da desigualdade de seus efeitos que projetos de financiamento podem desempenhar um papel fundamental, notadamente aqueles promovidos por Bancos Públicos de Desenvolvimento (BPDs), como o BNDES. Em um momento de redefinição de metas globais para o financiamento climático, é hora de transformar não só o quanto se financia, mas também o como e para quem.

Na última Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, a COP 29, um anúncio emblemático redefiniu os horizontes das finanças climáticas globais: os países signatários reconheceram que os US$ 100 bilhões prometidos anualmente até 2020 já não são mais suficientes.

A nova meta — US$ 300 bilhões por ano até 2030 — dimensiona o salto necessário diante da gravidade da crise climática. Outro marco internacional sinalizou uma mudança de paradigma: a escolha do gênero como foco da reunião anual do Comitê Permanente de Finanças (Standing Committee on Finance – SCF) da Convenção do Clima. Esses dois acontecimentos apontam para a mesma constatação: não basta escalar o financiamento climático, é preciso transformá-lo em direção à equidade.

No que se refere ao SCF, o fórum de 2024 – “Acelerando a ação climática e a resiliência por meio de financiamento sensível ao gênero” – produziu diversos consensos relevantes, como a necessidade de diretrizes operacionais claras para projetos climáticos com enfoque de gênero, a importância de dados desagregados para o monitoramento de impacto, e o papel dos bancos e fundos multilaterais na criação de ambientes financeiros mais inclusivos. As conclusões reforçaram que a igualdade de gênero não é apenas um princípio ético, mas uma condição para a eficácia e a justiça da transição ecológica.

Ao direcionar recursos financeiros para iniciativas que integrem a perspectiva de gênero, é possível garantir que políticas financeiras atendam às necessidades específicas de mulheres e meninas, impulsionando o desenvolvimento sustentável e a inclusão social – para benefício de todos, inclusive de homens e meninos. Além de sofrerem impactos negativos da mudança do clima, como a perda de empregos e problemas de saúde física e mental, eles dependem de uma rede de apoio social e comunitária, que ainda é preponderantemente feminina.

No entanto, apesar da retórica inclusiva cada vez mais presente em fóruns multilaterais, a prática da integração da igualdade de gênero avança de forma lenta e desigual. BPDs, atores financeiros estratégicos na mobilização de recursos, continuam a reproduzir modelos de financiamento que negligenciam as desigualdades de gênero.

Mesmo quando adotam compromissos internacionais relacionados à Agenda 2030 de sustentabilidade da ONU ou o Acordo de Paris, suas políticas climáticas tendem a priorizar soluções tecnocráticas e um foco excessivo em retornos econômicos e investimentos em infraestrutura verde. Há pouca atenção dedicada a impactos sociais e de gênero de projetos financiados — seja no que se refere a critérios de elegibilidade para o financiamento, como em relação a mecanismos de monitoramento ou processos de avaliação de resultados.

Em policy brief que produzimos para o Think 20 no Brasil, procuramos demonstrar que, mais do que um “recorte”, a perspectiva de igualdade de gênero deve ser reconhecida como dimensão estruturante da justiça climática e de suas finanças. Ignorar esse fato significa perpetuar modelos de desenvolvimento que concentram benefícios em setores já privilegiados, reforçam a precarização do trabalho feminino e excluem mulheres e comunidades vulnerabilizadas de processos decisórios e, especialmente, dos fluxos de financiamento.

As grandes coalizões globais entre BPDs, como o Finance in Common (FiCS) e o Clube Internacional de Financiamento ao Desenvolvimento (International Development Finance Club – IDFC), têm assumido um papel crescente na governança climática e financeira internacional.

Essas redes transnacionais, formadas por bancos nacionais, regionais e multilaterais, não apenas implementam projetos, mas também estabelecem normas e padrões operacionais para financiamentos, compartilham práticas bancárias e influenciam o desenho de políticas públicas em âmbitos nacional e transnacional. Abordagens mais transformadoras de gênero em seus compromissos climáticos podem, assim, criar pontes mais efetivas entre discurso oficial e prática.

Nesse contexto, a arquitetura de governança financeira internacional — incluindo não apenas organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board – FSB), mas também os próprios BPDs e suas coalizões — desempenha papel central na definição das regras do jogo das finanças climáticas globais. É fundamental reconhecer que a ideia de neutralidade técnica das finanças é um mito: os instrumentos adotados para mobilizar capital e medir impacto podem reforçar ou, ao contrário, combater desigualdades, a depender de seu desenho e de sua implementação.

Ainda que critérios ESG (Environment, Social, and Governance – Meio Ambiente, Sociedade, Governança) tenham ganhado espaço no debate regulatório, a ausência de marcos vinculantes que integrem gênero e clima de forma sistêmica continua sendo um gargalo central — tanto na governança global quanto na operação concreta de projetos de BPDs.

A urgência em incorporar essa perspectiva já foi reconhecida em espaços centrais da governança financeira global. Em 2024, a presidência do G20 e seus copresidentes no grupo de trabalho sobre Finanças Sustentáveis (SFWG) destacaram a necessidade de refletir sobre o que define uma “transição justa” e oferecer orientações para que instituições financeiras e empresas aprofundem esse componente em seus planos de transição.

A proposta inclui desenvolver princípios de alto nível, criar casos exemplares de transição justa e promover colaboração entre governos, setor privado, trabalhadores, academia e sociedade civil para mitigar impactos sociais e econômicos negativos da transição ecológica. Essas recomendações, ancoradas no Pilar 5 do G20 (Transition Finance Framework), oferecem um ponto de partida importante para que BPDs e suas coalizões avancem de forma concreta rumo a uma transição verdadeiramente equitativa e transformadora.

Se queremos que os bilhões — e futuramente trilhões — investidos em clima promovam uma verdadeira transição justa, é urgente que BPDs, inclusive os bancos brasileiros, como o BNDES, e suas redes internacionais de cooperação incorporem uma abordagem feminista nas políticas climáticas.

Isso implica repensar os próprios indicadores de sucesso de projetos financiados, abrir espaço para outras vozes e territórios, e alinhar suas práticas com marcos de direitos humanos, justiça interseccional e equidade de gênero. A transição ecológica será feminista, ou continuará reproduzindo as desigualdades do passado com impactos negativos para todos – inclusive, para homens e meninos.

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