Programa Salas Lilás e o atendimento às mulheres vítimas de violência

No último dia 25 de março, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou a Portaria MJSP 911/2025, instituindo o Programa Nacional das Salas Lilás para atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica.

A iniciativa objetiva aperfeiçoar o atendimento destinado às mulheres vítimas de violência doméstica e vai ao encontro de inúmeras normas já existentes no ordenamento jurídico brasileiro (v.g., Lei Maria da Penha, Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, Lei 14.737/2023[1], Resolução 243/2021 do CNMP[2] , etc), além de encontrar eco nos parâmetros protetivos oriundos do Direito Internacional dos Direitos Humanos (v.g., Recomendação Geral 33/2015 do Comitê CEDAW sobre mulheres e acesso à justiça).

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O Programa Nacional Salas Lilás possui como destinatário o aperfeiçoamento do sistema único de segurança pública e do sistema de justiça no atendimento às mulheres vítimas de violência, e é constituído a partir da implementação de serviços especializados no atendimento de mulheres (artigo 2º, inciso I, da Portaria 911/2025-MJSP), especialmente mediante o fomento à estruturação das salas reservadas para o atendimento às mulheres vítimas de violência em delegacias de Polícia, instituições estaduais e distritais de perícia oficial e demais órgãos do sistema de justiça, além da respectiva capacitação dos profissionais para a realização do atendimento (artigo 2º, inciso II, Portaria  911/2025-MJSP). Trata-se, portanto, de uma proposta de especialização ainda maior da rede de proteção já disponível às mulheres e meninas vítimas de violência.

Conforme já mencionado, a customização de espaços próprios e humanizados para mulheres vítimas de violência no sistema de justiça não se caracteriza como uma novidade, uma vez que a própria Lei Maria da Penha trouxe consigo a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (artigo 14 da LMP), além de parâmetros para o atendimento das ofendidas pela autoridade policial (artigo 11 da LMP).

No entanto, a instituição do programa em comento pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública reforça a necessidade acerca de um ponto de partida inarredável em matéria de proteção de mulheres e meninas vítimas de violência: a atuação com perspectiva de gênero por todos os funcionários e autoridades públicas durante todo o percurso da ofendida após o episódio de violência.

Ao tratar das salas reservadas, a portaria do Ministério da Justiça e Segurança Pública elenca alguns parâmetros para a realização do atendimento, tais como: ser prestado preferencialmente por profissionais do sexo feminino (disposição análoga ao artigo 10-A da LMP), de forma humanizada e integrada pelo sistema de justiça (art. 3º, parágrafo único, inciso II) e de modo a proporcionar o acolhimento psicossocial e o apoio jurídico com o acionamento, sempre que necessário, das redes de serviços que auxiliam na superação das violências sofridas pelas mulheres, meninas e seus familiares (artigo 3º, parágrafo único, inciso III).         

Em termos arquitetônicos, o Programa Salas Lilás elencou componentes para a caracterização de um ambiente acolhedor às mulheres e meninas vítimas de violência. De início, o MJSP dispôs que as salas deverão contar com no mínimo dois ambientes: a sala de espera e a sala de atendimento (artigo 4º, caput).

Na sala de espera, a Portaria 911/2025 elenca uma série de equipamentos necessários para adaptar o espaço, a um só tempo, acolhedor e informativo às ofendidas. São eles:

  1. materiais informativos sobre direito das mulheres e serviços disponíveis;
  2. equipamentos de informática;
  3. brinquedoteca, com itens lúdicos e educativos para as crianças;
  4. aparelho de televisão;
  5. trocador de fraldas, instalado, sempre que possível, em banheiro de uso exclusivo para as usuárias e seus dependentes; e
  6. mobiliário adaptado às necessidades (artigo 4º, inciso I, e respectivas alíneas).

Destaca-se a acurácia e a sensibilidade do Ministério da Justiça e Segurança pública ao enumerar os itens acima descritos, demonstrando preocupação com os “filhos da violência de gênero”. Neste aspecto, o programa lançado pelo MJSP se assemelha ao ethos, mutatis mutandis, das salas customizadas para a tomada de depoimentos especiais de crianças e adolescentes vítimas de violência no interior dos fóruns de Justiça Brasil afora.

Já as salas de atendimento são conceituadas pela Portaria 911/2025 como um “ambiente voltado ao atendimento individualizado de mulheres e meninas[3]”. As especificidades da prestação do serviço estarão necessariamente atreladas à instituição do sistema de justiça responsável pelo atendimento.

As salas de atendimento inseridas nas repartições da Polícia Civil deverão ser utilizadas para:

  1. registro do boletim de ocorrência;
  2. oitiva da vítima;
  3. preenchimento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR);
  4. solicitação de medidas protetivas de urgência e;
  5. demais atendimentos e encaminhamentos para serviços de saúde, abrigamento, perícia, atendimento psicossocial, assistência jurídica e outros serviços da rede de atendimento às mulheres (artigo 4º, inciso II, alínea A, 1, 2, 3, 4 e 5).

Em hipóteses nas quais as salas lilás estão situadas em unidades de perícia criminal, o espaço deverá ser utilizado para:

  1. realização de exames periciais;
  2. coleta de material biológico;
  3. elaboração de laudo pericial; e
  4. demais atendimentos e encaminhamentos para serviços de saúde, atendimento psicossocial, assistência jurídica e outros serviços da rede de atendimento às mulheres. (artigo 4º, inciso II, alínea B,  1, 2, 3 e 4).

Por fim, quando o atendimento for prestado por outras instituições do sistema de justiça, as salas lilás serão voltadas para: a) atendimento jurídico, psicológico e social, com o objetivo de fornecer o suporte necessário à vítima e; b) encaminhamentos para os serviços da rede de atendimento às mulheres, conforme as necessidades específicas. (artigo 4º, inciso II, 1, 2, 3 e 4).

A Portaria 911/2025 do Ministério da Justiça e Segurança Pública ainda estabelece uma obrigação ao Estado de assegurar a privacidade das mulheres e meninas vítimas de violência doméstica em atendimento, elencando como métricas obrigatórias o impedimento de qualquer contato das vítimas, seus famílias e eventuais testemunhas com os homens autores de violência ou com pessoas a eles relacionadas (artigo 4º, §2º, inciso I), além de dispor de acesso distinto do principal e banheiro exclusivo às vítimas (artigo 4º, §2º, inciso II).

Assim, a partir de uma leitura sistemática da nova iniciativa do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, e possível perceber uma preocupação genuína do Programa Salas Lilás em preservar a dignidade, a privacidade e a intimidade da vítima, sobretudo em tempos de superexposição em mídias digitais.

Além disso, diante de todas as diretrizes elencadas pelo artigo 4º da Portaria 911/2025-MJSP, o órgão parece estar bem informado acerca da realidade prática e da existência – ao menos em muitos locais do Brasil – de um tratamento muito aquém do necessário em termos de qualidade às mulheres e meninas vítimas de violência de gênero.

Por isso, louvável que o Programa Salas Lilás proponha parâmetros a serem observados pelo Poder Público desde o primeiro contato da ofendida, o quê geralmente ocorre com o ingresso da vítima em uma delegacia de polícia, até a finalização de eventual processo perante o Poder Judiciário.

Alias, a Portaria 911/2025-MJSP foi além, não apenas descrevendo elementos básicos do ponto de vista estrutural e arquitetônico para proporcionar um atendimento customizado e acolhedor, mas também ressaltando a obrigatoriedade da capacitação dos profissionais responsáveis pelo atendimento na Sala Lilás, em curso o qual deverá contar com no mínimo quarenta horas/aula.

A preocupação do Ministério da Justiça e Segurança Pública com o letramento em gênero dos profissionais vai ao encontro de medidas adotadas no mesmo sentido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[4] e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[5].

O artigo 5ª da portaria em comento elenca os seguintes temas como de abordagem obrigatória na capacitação prévia a ser realizada:

  1. violência contra a mulher: definição, origens, conceitos, causas, impactos e relações de gênero (inciso I);
  2. políticas de prevenção e enfrentamento à violência contra mulheres e meninas (inciso II);
  3. técnicas e procedimentos para o atendimento especializado e humanizado (inciso III);
  4. aspectos técnicos e jurídicos da legislação aplicada ao atendimento de mulheres e meninas em situação de violência de gênero (inciso IV);
  5. conhecimento, integração e encaminhamento para a rede de atendimento às mulheres e meninas (inciso V); e
  6. avaliação de risco (inciso VI).

Além da grade curricular e o número mínimo de horas/aula, os órgãos que aderirem o Programa Nacional das Salas Lilás deverão, também, ofertar capacitações continuadas para a manutenção e atualização dos conhecimentos adquiridos (artigo 5º, §2º).

Em relação ao número de funcionários à disposição no interior das Salas Lilás, o Ministério da Justiça e Segurança Pública foi categórico ao afirmar que “as salas reservadas deverão contar, sempre que possível, com a presença de ao menos um profissional da área de saúde ou serviço social, a fim de garantir a abordagem integral e o acompanhamento adequado às necessidades das vítimas” (artigo 6º).

Ainda, em caso da ausência dos referidos profissionais, a mulher vítima de violência deverá ser prontamente encaminhada para os serviços da rede de atendimento às mulheres e meninas, estabelecidos em políticas públicas de proteção e apoio às vítimas de violência (artigo 6º, parágrafo único). Sobre este ponto, trata-se de importante fluxo estabelecido pelo Programa Sala Lilás, objetivando sempre a redução do risco de revitimização e da caracterização de novos traumas à vítima, desta vez por parte de funcionários públicos.

Quanto ao formato do atendimento a ser prestado no interior das Salas Lilás, o artigo 7º da Portaria 911/2025-MJSP estabeleceu nove diretrizes a serem observadas. As três primeiras são:

  1. as salas reservadas serão localizadas em espaços que garantam a separação da vítima de seus agressores, de investigados ou suspeitos e de pessoas a eles relacionadas, de modo a preservar sua segurança e privacidade (inciso I);
  2. todas as etapas do atendimento, em cada instituição, deverão ser realizadas na mesma data e, preferencialmente, pelo mesmo servidor, para evitar retornos desnecessários e relatos repetitivos da violência sofrida (inciso II); e
  3. o atendimento será realizado de forma individualizada, com o objetivo de preservar a intimidade e a privacidade da vítima (inciso III).

De imediato, novamente é possível constatar uma preocupação central do novo programa do Ministério da Justiça e Segurança Pública em evitar – a todo custo – qualquer possibilidade de revitimização da ofendida. A tríade de diretrizes iniciais elencadas pela Portaria 911/2025-MJSP encontra-se em absoluta consonância com os parâmetros idealizados pelo Comitê CEDAW em suas Recomendações Gerais 33 e 35 a respeito do assunto.

Em seguida, as diretrizes contidas nos incisos IV e V preocupam-se com a dignidade da vítima e com as crianças e adolescentes filhos(as) da ofendida, muitas vezes atingidas pela violência vicária praticada pelo homem autor de violência[6].

No inciso IV, o Programa Sala Lilás determina que: “os órgãos que atuarem no atendimento prestado às mulheres e meninas deverão, sempre que necessário, para resguardar sua dignidade, fornecer materiais de higiene básicos e vestimentas que preservem sua intimidade, caso elas estejam danificadas ou em condições inadequadas para o uso em razão da violência sofrida”.

Em relação aos filhos menores de idade da vítima, o MJSP demonstrou sensibilidade ao prever que: “as crianças que acompanharem a vítima não deverão ser expostas aos relatos de violência, devendo permanecer, sempre que possível, na sala de espera durante o atendimento”. A diretriz em comento encontra-se alinhada com a exigibilidade de equipamentos lúdicos e brinquedos para crianças e adolescentes na estruturação básica das chamadas “salas de espera” (artigo 4º da Portaria 911/2025-MJSP).

Já as diretrizes elencadas nos incisos VI a XI do art. 7º versam sobre o iter procedimental do atendimento propriamente dito. Logo no inciso VI, o Programa Sala Lilás dispõe que: “a coleta de imagens de lesões e as cópias de mensagens eletrônicas e outras provas da materialidade dos fatos, bem como de quaisquer outros elementos informativos relevantes para a apuração da violência deverão ocorrer apenas quando não expuser indevidamente a intimidade da vítima e sempre com sua autorização, respeitada a cadeia de custódia de que trata o art. 158-A do Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal”.

A métrica vai ao encontro de inúmeros movimentos realizados pelo legislador objetivando proteger a dignidade das mulheres e meninas vítimas de crimes (v.g., promulgação da Lei Mariana Ferrer, aprimoramento constante do texto da Lei Maria da Penha, criação de tipos penais (ou causas de aumento de pena) envolvendo condutas que possuem como objetivo expor a intimidade da ofendida, inclusive no mundo virtual etc.).

Ainda – e na mesma linha –, encontra-se o padrão de conduta a ser adotado em consonância com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade da realização de fotos da vítima em repartições policiais, desde que colhida a sua anuência de forma livre e desembaraçada[7].

No incisos subsequentes, a Portaria 911/2025 prevê:

  • a obrigatoriedade do uso do Formulário Nacional de Avaliação de Risco (inciso VII);
  • a utilização – preferencialmente – de viaturas policiais descaracterizadas para o atendimento e transporte de mulheres e meninas em situação de violência de gênero;
  • a realização atendimento por equipe multidisciplinar de forma humanizada e acolhedora antes da realização de audiências ou outros atos processuais (inciso IX); e
  • o acompanhamento, se necessário, de profissional especializado durante o procedimento judicial ou extrajudicial, mediante autorização da autoridade responsável (inciso X).

Por fim, o Programa Nacional Sala Lilás ainda instituí o dever aos profissionais que atuarem na iniciativa do MJSP de:

  1. encaminhar a mulher em situação de violência à perícia, aos serviços médicos e psicológicos, à assistência social e outros serviços conforme as necessidades identificadas durante o atendimento, para favorecer a superação do ciclo de violência enfrentado pela mulher e seus familiares e garantir sua integridade física e psicológica (artigo 7º, inciso XI, alínea A) e;
  2. encaminhar a mulher em situação de violência para os serviços de assistência jurídica, com o objetivo de ampliar e qualificar o seu acesso à justiça (artigo 7º, inciso XI, alínea B).

As obrigações mencionadas refletem – e reforçam – o ethos de dispositivos já existentes na Lei Maria da Penha e no Código de Processo Penal.

Realizado um panorama sobre o Programa Sala Lilás instituído pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública neste ano de 2025, é possível concluir que a iniciativa é válida e constituí um avanço protetivo às vítimas, já que densifica e esmiúça inúmeros estandartes de proteção às mulheres e meninas vítimas de violência já existentes em nosso ordenamento jurídico doméstico e no Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Nesta perspectiva, a iniciativa possui como mérito reconhecer que, a despeito da existência de inúmeras normativas em relação ao tema do atendimento às mulheres e meninas vítimas de violência do gênero, o serviço ainda é prestado aquém dos padrões de qualidades exigidos para fins de preservação da dignidade, intimidade e privacidade das ofendidas. E, a partir daí, o Programa Salas Lilás exsurge como uma possibilidade de aperfeiçoamento do atual estado de coisas.

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Como toda e qualquer iniciativa, o Programa Salas Lilás também não é isento de críticas, e poderia, por exemplo, ter destacado de forma mais abrangente o papel do Ministério Público na promoção dos direitos das mulheres e meninas vítimas de violência de gênero, já que o legislador incumbiu ao parquet a defesa das mulheres vítimas de violência doméstica em inúmeros dispositivos da Lei Maria da Penha, além da atuação em plenário no Tribunal do Júri em casos de feminicídio.

No entanto, este autor reitera: diante do atual estágio em que a temática do atendimento às mulheres e meninas vítimas de violência se encontra em nosso país, há muito a ser feito e, sem sombra de dúvidas, o Programa Salas Lilas deve ser festejado, já que fornece o caminho para o aumento dos padrões de qualidade no atendimento daquelas que sofrem violência de gênero em todo o território nacional.

Espero que tenham gostado.

Até a próxima!


[1] Prevê o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde públicos e privados.

[2] Dispõe sobre a Política Institucional de Proteção Integral e de Promoção de Direitos e Apoio às Vítimas.

[3] Art. 4º, inciso II da Portaria nº 911/2025-MJSP

[4] Resolução 492/2013-CNJ (Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero).

[5] Recomendação nº 03/2025-CNMP (Corregedoria Nacional).

[6] Para um aprofundamento a respeito do tema, ver: HEEMANN, Thimotie Aragon. Violência vicária contra a mulher e o Direito das Famílias: um debate necessário. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/violencia-vicaria-contra-a-mulher-e-o-direito-das-familias-um-debate-necessario Acesso em 02.05.2025

[7] STJ, AgRg no HC n. 781.943/PR, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 14/2/2023

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