A Emenda Constitucional 132/2023 inaugurou um novo capítulo no sistema tributário nacional, promovendo uma profunda reestruturação da tributação sobre o consumo. A substituição de tributos como PIS, Cofins, ICMS e ISS pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) certamente irá gerar implicações significativas não apenas na esfera material do direito tributário, mas também no seu contencioso, tanto judicial quanto administrativo.
Neste artigo, propõe-se examinar os impactos da reforma tributária no contencioso tributário, destacando os desafios decorrentes da quebra de paradigmas normativos e processuais, bem como trazer algumas reflexões quanto aos desafios que serão enfrentados com a reforma tributária no âmbito da competência jurisdicional, bem como os mecanismos para a solução de conflitos tributários.
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Contencioso tributário: cenário anterior à reforma
O Brasil é, historicamente, um dos países com maior volume de contencioso tributário no mundo, atingindo valores estimados em aproximadamente 75% do PIB, conforme estudo do Insper. Esse quadro decorre, em grande parte, da complexidade do sistema tributário nacional, dos diversos tributos existentes e da multiplicidade de atos normativos que regem o atual sistema, editados pelos diversos entes federativos.
Entre os principais temas que alimentam o litígio tributário, podemos citar, exemplificativamente:
- créditos da não cumulatividade do PIS/Cofins e do ICMS;
- conflitos federativos como a guerra fiscal e os benefícios fiscais;
- controvérsias envolvendo a definição de competência entre ISS e ICMS;
- disputas sobre o local da prestação de serviço para fins de incidência do ISS; e
- “tese do século” (Tema 69/STF) e suas teses derivadas.
O modelo atualmente vigente se baseia em competências tributárias delineadas pela Constituição Federal, sendo cada tributo instituído por lei do respectivo ente federativo (União, estados, Distrito Federal ou municípios). A definição da Justiça competente para dirimir litígios tributários até então, em regra, é determinada com base no sujeito ativo do tributo, critério que se torna claro pela análise da norma instituidora do tributo.
A reforma e a quebra de paradigmas
A Emenda Constitucional 132/2023 introduziu a CBS, de competência federal, e o IBS, cuja competência é compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, extinguindo gradualmente os tributos sobre o consumo hoje existentes.
Além disso, a EC 132/2023 incorporou ao texto constitucional princípios como simplicidade, transparência, justiça tributária, cooperação federativa e proteção ao meio ambiente (artigo 145, §3º, CF), refletindo a busca por um sistema mais moderno, neutro e menos litigioso.
Contudo, tais avanços materiais, em nossa avaliação, irão gerar desafios para o contencioso tributário. Isso porque, essa nova configuração, em especial no que tange ao IBS, rompe com o paradigma da unicidade do sujeito ativo, criando desafios na sua identificação em lides tributárias.
Ademais, a existência de dois contenciosos administrativos distintos para tratar de tributos (CBS e IBS) praticamente idênticos, somado à ausência de normas claras sobre a competência jurisdicional para esses novos tributos, criam um cenário de insegurança jurídica.
Desafios no contencioso judicial
A Constituição, após a EC 132/2023, atribuiu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio do artigo 105, I, “j”, da CF, a competência para solucionar conflitos entre entes federativos relacionados à CBS e ao IBS. Todavia, não houve definição expressa sobre qual ramo do Judiciário (federal ou estadual) será responsável por processar e julgar os feitos envolvendo tais tributos.
Quando uma lide envolver apenas a CBS, por ser tributo federal, parece não haver dúvidas quanto à competência da Justiça Federal (artigo 109, I, da CF).
Quando o tributo em discussão é o IBS, de competência compartilhada entre estados e municípios, a competência tende a ser da Justiça Estadual.
Surge, assim, o risco de decisões conflitantes para situações idênticas: um mesmo fato gerador pode ter tratamento distinto em ações tramitando em Justiças diversas. Tal cenário compromete a isonomia e a previsibilidade do sistema jurídico.
Também se identificam entraves relacionados à formação de litisconsórcio necessário entre os entes federativos, especialmente em ações que envolvam simultaneamente o IBS e a CBS. A rigidez da competência absoluta entre as Justiças Estadual e Federal, em tese, impede a reunião de processos conexos (artigo 54 do CPC), o que poderá dificultar a construção de decisões harmônicas.
A criação, por meio da Portaria CNJ 96/2025, de um grupo de trabalho composto por ministros do STF e do STJ, conselheiros do CNJ, advogado-geral da União, procurador da PFN, presidente da Associação de Magistrados, procuradores dos estados e dos municípios e pelo advogado e professor Heleno Taveira Torres, encarregados de elaborar proposta de reforma processual tributária, é um indicativo de que o Judiciário reconhece os riscos sistêmicos da atual configuração.
Desafios no contencioso administrativo
O contencioso administrativo seguirá trajetórias distintas para cada tributo.
A CBS continuará sendo julgada pelas Delegacias da Receita Federal (DRJ) e pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), nos moldes do Decreto 70.235/72.
Já o IBS será regulado pelo Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2025, que institui um Comitê Gestor com poderes para fiscalizar, lançar e julgar o tributo, criando instâncias administrativas próprias e paritárias, à semelhança do Carf.
Essa dualidade gera um “duplo contencioso fiscal”: um contribuinte poderá ser autuado simultaneamente pela União (CBS) e pelo CG-IBS (IBS) por fatos semelhantes, obrigando-o a se defender em processos paralelos, com prazos e ritos distintos.
O PLP 108/2025 propõe ainda a criação de um Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, com a missão de uniformizar entendimentos sobre a CBS e o IBS. Contudo, antes disso ocorrer, muitos processos poderão ter desfechos conflitantes, com encerramento em momentos diferentes, trazendo insegurança jurídica para o contribuinte.
A eventual divergência de entendimentos entre os entes federativos também compromete a segurança jurídica: é possível que, para um mesmo fato, a CBS seja exigida e o IBS, não — ou vice-versa —, a despeito de serem tributos com base de cálculo e hipóteses de incidência similares.
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Conclusão
A reforma tributária brasileira, apesar de virtuosa em seus objetivos de simplificação, transparência e justiça fiscal, revelou fragilidades de natureza processual que precisam ser sanadas para garantir sua efetividade.
Há dúvidas se o Comitê Gestor do IBS, mesmo com amplos poderes, será capaz de harmonizar os interesses de mais de 5.500 prefeituras e 27 estados. Sua atuação será determinante para o sucesso — ou fracasso — do novo modelo fiscal.
Ademais, a ausência de disciplina constitucional e infraconstitucional clara sobre a competência jurisdicional e a organização do contencioso tributário pode gerar: 1) insegurança jurídica para contribuintes e entes federativos; 2) sobreposição de competências entre Justiça Federal e Estadual; e 3) proliferação de litígios simultâneos e decisões contraditórias.
A unificação das instâncias de julgamento é um imperativo lógico-sistêmico. Nada justifica a manutenção da insegurança jurídica de decisões conflitantes trazidas por tribunais diversos.
A CBS e o IBS são tributos praticamente idênticos e merecem tratamento igual na apreciação administrativa e judicial. A sociedade brasileira, por seus representantes eleitos, precisa garantir que o processo tributário caminhe na mesma mão de um sistema mais amplo, menos custoso e que traga a tão sonhada segurança jurídica.
Diante desse cenário e, evidentemente, sem o intuito de exaurir o assunto, propomos algumas possíveis soluções para reflexão, como a criação de um contencioso administrativo unificado para a CBS e o IBS e a criação, ainda que por outra emenda à Constituição, de uma Justiça Especializada, dentro da estrutura federal, para apreciar lides envolvendo CBS e IBS, a fim de garantir unidade decisória e previsibilidade.